O TREM E A VIDA
O TREM E A VIDA
CAPÍTULO I – APRESENTAÇÃO
Personagens –A locomotiva, a frustração, os executivos e a que subiu no trem para ver a vida.
Queria viajar de trem, um que a levasse e trouxesse para ver a vida e as pessoas e foi a locomotiva quem lhe contou sobre tudo, mastigando devagar um pouco de lenha, as costas carcomidas pela corrosão e a fuligem escorrendo por suas costas e ela lhe narra como foi apresentada ao trem-bala japonês como se apaixonou e como ele era tão severo e com outros costumes – nunca permitiu que ela andasse pelas estradas movimentadas, só pelas interioranas onde crianças se lambuzam com rapadura e acenam da janela. Esse marido faleceu num descarrilamento muito comentado. Vagões nasceram dessa união tão seca e ela agarrou os filhos após a morte do parceiro e é onde ela encontra agora. Nessa estação, os canteiros são arrumados em forma de círculos, margaridas, amores-perfeitos, campânulas azuis e rosas, as hortênsias ficam na beirada pois que são mais gorduchas. O vendedor de amendoim japonês passa com pressa e ela se pergunta se o amendoim tem olho puxado, o algodão doce se enrosca no olhar do menino, sol está distraído olhando o mar ao longe; ela sobe nesse trem cheio de pessoas, o trem é comprido não se vê o último vagão. Os que ficam na janela sonham, os que ficam no corredor, tem pressa, são executivos que não param de falar sempre seguidos pelos ”aplaudistas” que seguem seu superior. No último assento do vagão está a frustração – é magra, está com um vestido de gola alta cinza, os olhos irritados, os comentários dos executivos sobre a demissão de um elemento tido como muito ético, atrapalhando o projeto, o Fagundes está uma fera, vai pra bem longe azar o dele, a fazem murmurar baixinho-maldita vida em facadas, mas só ela a ouve, só ela, os outros estão tão entretidos!
II CAPÍTULO – ESTAÇÃO DA PAIXÃO
Personagens – os noivos, os que têm projetos, a corajosa.
O trem para e os noivos descem na estação da Paixão, Paixão, estação da Paixão, pedimos aos passageiros que não esqueçam seus pertences e, voltem sempre, todos sorriem de prazer, alguns jogam arroz nos noivos, são fortes, alegres, jovens; desce muita gente nessa estação, jovens na maioria, alguns mais velhos com seus cavaletes, tintas máquinas fotográficas, instrumentos, sim tenho um projeto, faço com gosto, vamos em frente, caminham a passos largos rindo, choveu um pouco, cheiro de mato alegre, uma charrete com flores vermelhas vira a esquina do arco-íris e os noivos acenam ao longe; a frustração esboça um meio sorriso no rosto pálido e retruca baixinho essa vida com a tonta da paixão enquanto alisa as pregas do vestido tão antigo mas só ela a ouve, só ela, os outros estão tão entretidos!
Ela volta-se para o outro lado e depara-se com uma mulher jovem com embrulhos no assento; ela lhe dá um sorriso, misto de surpresa e esperança, sabe se o trem faz baldeação, responde que não, só veio ver a vida., a outra a olha com admiração, a vida? Que interessante! Prazer, meu nome é Janete, também quero ver se arrumo uma nova vida entende, meu casamento foi um desastre, meu marido era médico, tornou-se tão exigente, eu tinha que engomar os jalecos que ele usava, não se podia fazer barulho em casa crianças começaram a ficar com medo, tão quietas, dava dó e eu com tanto medo dele os filhos choravam e viviam tensos, quando me viu conversando com um amigo na rua levei uns tapas na cara, tão sem ética,as crianças acordaram com os berros dele, resolvi me separar, meus filhos estão no interior, vou morar lá, meus pais estão me ajudando, na casa de meus pais tem até patinho no quintal, tem tanta fruta e tem varanda e uma cerca verde e um roseiral maravilhoso, cachorrinho,minha mãe faz um bolo de fubá que é uma glória, meu pai lê histórias para os netos, estão tão felizes, tudo vai dar certo,tenho muita fé, me desculpe eu desabafar assim, não precisa se desculpar , é uma vida nova, ela responde com simpatia. A outra ajeita os ombros, recosta-se no travesseiro, uma estrela miudinha desprende-se de seus cabelos castanhos e voa pela janela do trem. A frustração observa as duas e balbucia da tolice dessa vida de esperança, ela pressente na observação um chiado de ressentimento. Ao seu lado, a ansiedade arregala os olhos e espalha uma poeira de tensão. Mas só ela as vê e ouve, só ela, os outros estão tão entretidos!
Nesse trem, alguns não conseguem dormir. Nem o tec tetec do trem embala certas almas aflitas. Agitam as pernas estalam os nós dos dedos,enrolam e desenrolam o cabelo, fumam, levantam-se e andam pelo trem e a ansiedade os observa com a respiração curta; está sentada no último assento ao lado da frustração, tem o rosto redondo onde uma boca miúda quase desaparece, os dentes são pequenos e pontudos e parece sofrer de refluxo. Usa um vestido florido e anéis se acotovelam nos dedos gorduchos. Também ela come sem parar balinhas de goma, vez em quando se entreolham e riem.
CAPÍTULO III – BALDEAÇÃO – ESTAÇÃO JARDIM DA BOA VIAGEM
Personagens – A senhora idosa e a que veio ver a vida.
Alguém bate em seu ombro ela se volta e vê a senhora de cabelos brancos e rede roxa que os prende, subiu com ela no trem; a anciã vai ao toalete, pede que ela olhe seus pertences no assento, fique sossegada senhora eu olho tudo, os olhos da senhora a contemplam com delicadeza longínqua, sabe eu vou para as montanhas para me restabelecer, não se preocupe, eu ando devagar e sozinha, na velhice a gente vai ficando só , meus filhos se casaram eu prefiro assim, enquanto eu tive dinheiro, tive poder- agora – estou interditada pelo meu filho, eu vou com a senhora, espero na porta do banheiro não se preocupe, carrego seus pertences, obrigada filha, hoje estou um pouco cansada, ela olha de relance para a frustração e para a ansiedade, estão extremamente quietas, a cabeça baixa, mas só elas as vêem , os outros estão tão entretidos!! O bilheteiro avisa:
- Baldeação, baldeação! Proóxima estação , Jardim da Boa Viagem é uma baldeação. Atenção para não esquecerem seus pertences e voltem sempre, sorri um sorriso malicioso e cobre a boca com a mão encardida. Da janela ela vê um vendedor-fantoche que oferece correntes, todas iguais só o desenho muda um crucifixo, uma estrela, um orixá, um Bhuda....símbolos...preferidos, ele grita, olha os símbolos preferidos temos para todos os caminhos, todos, alguns o empurram com susto de quase horror, alguns idosos, crianças e jovens assustados, que diabo de estação é essa , ninguém veio me esperar, nossa, estou me sentindo só, da janela ela observa várias charretes escuras com cavalos de penachos que aguardam num raro silencio – desce a anciã de rede roxa nos cabelos brancos, amparada por duas enfermeiras de faces transparentes e capotes que esvoaçam na tarde fria, ela parece não ver olha algo em frente que a emociona estende a mão com surpresa. No último assento, a frustração e a ansiedade continuam estranhamente caladas.
Capítulo IV – ESTAÇÃO DO LIMBO
Personagens: executivos do grupo ansioso, pequeno grupo de executivos tranqüilos “ aplaudistas”- (que vivem para aplaudir o superior e angariar favores) e a que veio ver a vida.
Ela se levanta e segue para o vagão-restaurante, empresários, industriais, executivos e executivas, todos , todos, gesticulam e todos falam ao mesmo tempo, um grupo menor deles conversa com animação e alegria. Num canto, os “aplaudistas” também gesticulam e aplaudem sem cessar seus superiores, gestos de carinho bater nos ombros,sorrir sempre, ela nota suas mãos que começam a sangrar; todos exibem seus troféus, todos exibem suas maletas importadas, todos só ouvem a si mesmos, os”aplaudistas”contam os trocados, alguns estão hipoglicêmicos, não comeram nada ainda para estar ali.Logo, todos descem na Estação do Limbo, com tensão elegante, voltem sempre diz o bilheteiro; o chão dessa estação é de cimento escovado, árvores de alumínio dispostas em fila, o ar vem em golfadas bruscas, me disseram que era um spa maravilhoso, o que é isso, que lugar tétrico, alguém vai me pagar por isso, os “ aplaudistas” tentam lavar as mãos na água em pó, o pequeno grupo alegre consegue ainda alcançar o trem que parte, ela ainda os vê socando-se e mordendo-se com ferocidade, ainda se ouve seus gritos quando o trem entra na próxima curva.
IV CAPÍTULO – JARDIM PRIMAVERA
Personagens- os esperançosos, a frustração e a ansiedade, a que veio ver a vida.
Jardim Primavera, Jardim Primavera, próxima estação senhoras e senhores, avisa o bilheteiro. Pessoas alegres, com seus trajes claros descem sorrindo a estação é uma profusão de flores, pessoas cumprimentam-se com alegria, te esperei tanto, agora vamos ficar juntos para sempre,te amo por demais, olha você grande amigo, fez boa viagem, aqui é o paraíso irmão, o paraíso; ela olha surpresa para a frustração que, de joelhos, olha pela janela, balas derretem-se em suas mãos, a expressão de seu rosto é de esperar natal, ao seu lado a ansiedade ri muito e aponta para o casal que se abraça chorando , é a vida renascendo, renasc...rena, escapam pela janela em partículas que se diluem na areia fina, ela corre para ver os assentos só encontra os papéis de bala, passageiros a olham espantados, perdeu alguma coisa moça, sua estação é a próxima, o bilheteiro sorri com esperteza e lhe deseja boa estadia. Ela apanha sua mala, respira fundo e desce. O luar vagueia pela floresta, a estrada é branca, um vaga-lume prestativo lhe indica o caminho. Não consegue ainda ver o nome da estação – o trem da vida some na escuridão.