.:. Alexandre, o grande .:.

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A cama ainda estava vazia e desarrumada. Guardaram-se os vestígios da angústia. Havia uma calça de brim azul-marinho, uma cueca infantil com estampas (quase rejeitada pelo filho pré-adolescente que insistia em lembrar ao pai estar crescendo), e uma camisetinha branca, completando o uniforme da escola. Era tudo. Desaparecera sobre a cama o peso do franzino menino; extinguira-se o calor característico da vida, reflexo dos sonhos daquele casal. O filho partiu doente sentindo dores de cabeça e vomitando, fazia cinco dias, para nunca mais voltar.

Segunda-feira. Dia das correrias. Período em que aceleramos os passos. Passamos pela segunda, terça, quarta... Desaconselha-se a marcha-a-ré, mas desaceleramos – é necessário o arrefecimento das preocupações cotidianas impostas às famílias. Levaram-no ao hospital. Bem que poderia ter sido uma gripezinha, um resfriado tolo...

Era uma família simples, mas feliz. Quando se encontravam, a inocência manifestava-se intimamente carinhosa, parceira da felicidade, parecendo ativistas da mesma causa: o sopro de uma alavancava torrente da outra. Simplicidade, fazer o simples, entretanto, não é tão fácil assim...

Que seria o sonho? Para aquela família o mais importante era que sonhassem juntos. E fizeram isso. Sorriram juntos. Brincaram, aconchegados uns aos outros, e discutiram dificuldades, angústias e medos em comunhão. Alexandre e a irmã eram sonhos concretizados no amor dos pais. Os filhos sonhavam e embarcavam nos braços de cada devaneio – às vezes, quando os voos eram altos demais, era em forma de gargalhadas que refreavam os excessos, restabelecendo-se o comedimento.

O pai, sozinho, sentado no chão do quarto do filho, ao lado da cama, olhos fechados, relembra a primeira cicatriz incrustada no corpo do rebento. Fora um corte profundo na testa de quando Alexandre era criança – os pontos até que deram charme e combinavam com os cabelos castanhos e lisos do menino; recorda de quando o filho quebrou o braço numa queda horrível! O menino daria bom estilista ou costureiro. O danado possuía enorme afinidade com agulhas, linhas e pontos – sem se perceber, o pai sorri, displicentemente. Noutro relance, lembra o dia em que o garoto chegou a casa sangrando, mão ao queixo, reclamando sentir muita dor. Resultado: mais quatro gentis pontinhos, nova linha, mais agulhadas e novo sorriso do silente pai. “Quanta saúde e disposição tinha meu filho” – internaliza o pai naquele momento. As marcas do corpo a gente cuida. O médico alivia a dor e o sangramento. A mãe afaga, faz cafuné. O tempo faz secar, cair a casca, regeneram-se os tecidos – ficam as cicatrizes, mas a caminhada nos exige que prossigamos.

O coração daquele pai, sentado e humildemente prostrado junto ao chão, implora cuidados. É um coração exposto que necessita de atenção. A ferida permanece aberta. O corpo não dói, mas a alma parece estar desejosa, quer desprender-se dele e partir com o filho que se foi. Para onde iriam não se sabe. Que importa a sina? Para aquele pai, mais importante que o itinerário ou pra onde se estaria indo, era com quem se faria a caminhada. O que aquele pai desejava compartilhar era a caminhada, ignorando o ponto final.

Meu filho – fala o inconsolado homem – por que partiu sozinho? Quanto egoísmo. Você nos deixou sem avisar, sem dar pistas, sem deixar endereço. Nenhum convite foi feito, filho! Você antecipou a caminhada. Por que agiu desse modo? E nossas confissões mútuas, nossos segredos de homens, de amigos, que sua mãe e sua irmã desconheceriam? Tínhamos sonhos e planos nossos... Ah, meu filho, você não foi legal comigo ao me deixar aqui. Diga-me quando volta ou, pelo menos, venha me avisar se demoraremos a nos reencontrar. Sinto-me abraçado agora, meu filho. Seria você tentando me aliviar, confortando-me nesse momento de imensa dor?

No velório, especulam a causa da morte repentina. Descaso? Erro médico? Demora no diagnóstico correto?

Ele sentia dores de cabeça e vomitava muito. As dores eram tão intensas que as artérias da cabeça surgiam grossas, pulsando. Pareciam querer sair! – explica alguém da família para mais um curioso. Nessas horas, sentimos a impotência causada pela efemeridade das relações humanas. Mesmo sofrendo temos que ter o senso de, educadamente, entender a curiosidade mesquinha do homem. Parece que o mais importante é a causa e não o efeito. Que importa como morreu para os que o amavam? O que faz sentido, nessa inexplicável sucessão de adeus, de encontros e desencontros, é que uma criança, iniciando a vida, faleceu.

Noutro ponto das exéquias[1] novas explicações foram trazidas pelo vento plúmbeo[2] que circunda o ambiente:

“Surgiram manchas arroxeadas pelo corpo dele. Cinco dias no hospital. Vários médicos o viram. Foi a médica do primo dele quem pediu mais exames e descobriram a meningite. Quando decidiram levá-lo para um hospital com mais suporte, houve muita demora até a chegada da ambulância. Quando foram pegá-lo no leito, na presença dos pais, tios, primos, avós e da irmã, o bichinho já estava morto” – a curiosa que repassava a informação para outra estranha, alheia à dor da família, simula uma lágrima contida pela perfídia[3].

O pai se levanta do chão, segura a blusa do filho e a beija, enxugando lágrimas que caem, lubrificando as dores da alma. Olha ao redor do quarto e prossegue:

“Perdoe-me a covardia, meu filho! Não tive coragem de acompanhar você até sua última morada. Por que faria isso? Cada passo que desse seria punhalada em meu coração. Meu corpo, agora debilitado, perdeu o animus da vida. Você me perdoa, filho, por esse acovardamento? Você entende o peso de caminhar carregando você dessa forma, num caixão que antecipou nossa separação? Adorava carregar você nos meus braços... Lembra-se de quando contei pra você a história do filho que reclamou ter sido abandonado pelo Pai no momento de maior dificuldade, durante a caminhada, lembra? A resposta do Pai, filho, foi providencial: ‘Foi nessas horas, quando havia somente duas pegadas, que carreguei você nos Meus braços’. Era assim, filho, que queria carregar você, sempre, nas suas angústias extremas: nos meus braços”.

– Pai! – pergunta a filha, ao entrar. – Pai, chegamos!

– Aqui, filha! Estou no quarto do seu irmão.

Os familiares entram e encontram o pai abraçado às vestes do filho. Palavras não são ditas, mas a harmonia das lágrimas que descem é suficiente para nos encher de esperança, acreditando que o amor, mesmo nas despedidas, não pode esmagar nossas esperas, abrindo espaço para difamações. O amor não finda com a distância. A saudade não é providência equivocada, pois quem teve o coração costurado pela dor sabe o valor que tem a invasão das agulhas e o verdadeiro sentido que a junção das linhas nos dá quando nos fere a pele. Sem as cicatrizes não vivemos. São nossas marcas individuais que nos diferenciam dos outros.

Alexandre: anjo, guerreiro, essência que não findou com a partida. Emane da casa do Pai linhas de compreensão que fechem as cicatrizes da nossa saudade, costurando, com fios de meiguice, em todos nós, a esperança e a certeza do reencontro.

A cama é desfeita. As roupas são guardadas e todas as malas da resignação se abrem para esperar a hora da Ave Maria. A noite findará em breve e os raios do Sol, mansa e caprichosamente, anunciarão novo dia.

Crato-CE, 21 de agosto de 2011.

21h31min

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[1] Cerimônias ou honras fúnebres.

[2] Da cor do chumbo. [figurado] Sombrio.

[3] Falsidade.

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 30/09/2012
Código do texto: T3909068
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