Um táxi para o nada

Noite escura. Ruas desertas. Lares com as luzes apagadas. É tarde da noite, o som do silêncio embala minha descontínua e lenta caminhada. Tantas coisas novas que sempre estiveram ali, porém nunca as percebi porque sempre estive correndo em busca do futuro, da conquista, da vitória. Paro em uma praça antiga, por mim superficialmente conhecida. Nunca me detive para contemplar sua beleza. Percebo uma mulher esculpida em pedra sabão, mas sem face. Admiro-a atenciosamente, sinto-a triste. Interrogo-me como nunca havia visto tão bela arte. Uma sensação estranha toma conta de mim. Novos ares, velhas emoções. Percebo ser o mesmo de muito tempo atrás, mas diferente. Logo um inexplicável bem estar me deixa eufórico, sinto-me feliz como um menino. Deve ser a falsa sensação de liberdade, penso. Vejo também alguns que trabalham na noite; há mulheres, de um lado da calçada, vestidas com mini-saias, há também homens, do outro lado da Rua, vestidos de mulher. Os operários do prazer fazem grande movimento em um trecho da avenida.

Continuo meu passeio noturno e encontro um bar aberto, apenas algumas mesas estão ocupadas. Um rapaz beberica um forte conhaque e conversa com seu amigo. Em outra mesa, um senhor solitário de semblante triste briga com uma garrafa de Fogo Paulista, ele lhe fala despautérios enquanto a esvazia. Sento-me, peço uma cerveja e uma porção de torresmo. Uma moça adentra no bar. Sua presença preenche o ambiente. Altiva e sensual dirige-se ao balcão, fala com o barman que lhe serve uma dose de gim com vinho tinto. Ela pega sua bebida e entorna-a goela abaixo. Pede outro drinque idêntico e acomoda-se na mesa mais discreta do recinto. Sua presença provoca-me. Tenho que falar com ela, mas falta coragem. Em minutos a morena de cabelos longos se vai apressada, porém mantendo sua postura arrogante e sensual.

O céu começa a mudar de cor, é quase manhã, hora de retornar para casa. Durante a caminhada de regresso não paro de pensar naquela mulher, sinto-me estranho, decido pegar um ônibus. Procuro a parada mais próxima e permaneço a espera da minha condução, exato momento em que ouço um som de lamurias vindo de um terreno baldio próximo. Impulsivamente vou ver o que está acontecendo. Encontro a jovem, outrora altiva, debulhando-se em lágrimas. Não me contenho e dirijo-me para lhe prestar socorro. Ela está sentada no chão de terra com vários pacotes da naftalina ao seu redor. Pergunto-lhe se precisa de ajuda, se quer que eu a leve para casa, mas não obtenho resposta. Indago-a novamente e ela diz que não quer conversar. Sento-me ao seu lado e permaneço calado. Logo percebo que ela está colocando as bolinhas de naftalina em sua vagina, e falando baixinho “maldita hora em que isso aconteceu”. Então fico desnorteado, sem saber como agir. Levanto-me e pergunto novamente o que foi que aconteceu, ela fala, não para mim, mas para ela; “não quero esse filho, fruto da minha dor, da minha vergonha, da minha violação”. Agora percebo o que se passa. Digo-lhe que tem direito ao aborto legal, neste caso, e que poderei ajudá-la. Ela, entre prantos, diz-me ser pressionada pela família para ter o bebê. Que seus pais são religiosos demais e não aceitam, de forma alguma, o aborto. Sem resposta consoladora para lhe dar, fico mudo. Após alguns instantes ela começa a passar mal e desmaia. Rapidamente pego-a em meus braços, corro para Rua que ainda está deserta. Passa um carro e grito pedindo socorro, mas em vão foi minha súplica. Telefono para um táxi.

O hospital está carregado de gente. Alguns com enfermidades realmente sérias, outros apenas com ferimentos leves. O cheiro de iodo misturado a sangue e dor me dá náuseas. Após alguns minutos, depois de me alterar verdadeiramente, consegui atendimento. Imediatamente os enfermeiros constataram o óbito, em seguida o médico apenas ratificou o que já havia sido examinado. Rapidamente seus pais foram informados e chegaram à casa de saúde, escandalosos e indignados. Eles estão revoltados com a perda, não conseguem entender o porquê de ela estar tão triste a ponto se matar, pois eles iriam ajudá-la em tudo. Agora, seu corpo gelado, engavetado, etiquetado, não se incomodará mais com tais questionamentos.

Guilherme Queiroz
Enviado por Guilherme Queiroz em 23/09/2012
Reeditado em 16/12/2014
Código do texto: T3897487
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.