O quadro de cortiça
Era uma tarde de sábado de inverno atípico. O calor estava sufocante, havia saído há pouco da barbearia, caminhava em direção a minha casa.
No caminho procurava alguma sombra na estreita calçada da rua Lins de Vasconcellos.
Em plena subida, uma cena me chama a atenção: eis que atravessa uma moça maltrapilha e descalça com algumas sacolas de plástico, um feltro e um quadro.
Ela interpela alguns passantes, mostra-lhes um quadro típico de avisos, mas eles balançam a cabeça negativamente.
Quando, de súbito, ela se aproxima de mim e me diz:
"Moço, tenho fome, preciso inteirar o dinheiro para comprar uma quentinha, só tenho dois reais".
Antes que eu pudesse lhe dirigir a palavra, ela prossegue:
"Não tenha medo, eu não vou lhe fazer mal, só queria lhe vender este quadro de cortiça por oito reais, aí dá para mim comprar a comida".
"Tome, pode pegar e veja que está em bom estado".
Acenei com a cabeça e lhe dei dez reais, mas lhe disse que ficasse com o quadro, fosse comprar a sua quentinha e se alimentasse (seu estado era deplorável, olhos fundos, muito abatida).
Ela então disse que o quadro era meu, e abriu uma bolsa que estava em uma das sacolas, pegou uma nota amassada de dois reais e me disse:
"Obrigado, senhor, aqui está seu troco", demonstrando uma satisfação e dignidade.
Eu disse a ela que está bem, levaria o quadro, mas que ela ficasse com os dois reais para comprar um suco ou um copo de leite.
Ela relutou, disse que não gostava de pedir, que vivia nas ruas, vendia papelão e latinhas de alumínio para comprar comida e crack para esquecer dos problemas da vida.
Antes que pudesse dizer qualquer coisa, ela virou-se e se pôs a caminhar.
Ao chegar em casa, olhei para o quadro de cortiça arrematado por um prato de comida e nele pendurei as dores do mundo e, refleti que nem de longe, as minhas dores se comparam a daquela pobre mendiga que atravessou o meu caminho nesta tarde.
AjAraujo, o poeta humanista, descreve um fato real ocorrido em 25-Ago-12.