A REVOLTA DAS CALOTAS
Nota: quem desceu a Mogi Bertioga na noite do dia 6 de setembro e na manhã do dia sete de setembro próximo passado, não pode deixar de notar o grande número de calotas de automóvel abandonadas no acostamento da estrada. Podiam ser contadas aos milhares. Calotas novas, velhas, intactas na maioria, algumas delas quebradas. Esse fato já havia sido observado por nós em outras oportunidades, principalmente em dias de grande tráfego por aquela estrada. Não conseguimos até hoje encontrar uma explicação plausível para esse fato, uma vez que só o pudemos observar na Mogi- Bertioga em ocasiões de grande concentração de tráfego, e não em outras rodovias similares, como a Tamoios, a Via Anchieta, a Rio Petrópolis, em iguais condições. Permanece um mistério para nós.
***
Indiferença. Quem já sofreu desse mal sabe bem como é. A gente se sente como se fosse um estorvo no mundo, uma espécie de criado-mudo posto em desuso, esquecido num canto do quarto, que está ali só porque alguém se esqueceu de tirá-lo do lugar, e aquele é um canto do quarto que ninguém pensou ainda em usar. E a gente fica ali, acossado como um velho animal que já serve para mais nada, um cão sarnento que ninguém mais nota, a não ser para dar alguns pontapés, quando ele consegue vencer a timidez e tenta se enroscar na perna de alguém em busca de um carinho de ocasião.
Ah!, como é triste a indiferença. É como se a gente não existisse. Indiferença é pior do ser enjeitado. O enjeitado, pelo menos é notado. As pessoas sabem que ele existe, e está presente no ambiente. Ele incomoda. Por isso as pessoas viram o nariz para ele, fazem uma careta de desgosto na sua presença, afastam-no com um empurrão e ás vezes até com um pontapé na bunda.
O enjeitado provoca sentimentos nas pessoas. Sentimentos de repulsa, de nojo, asco, constrangimento, mas de qualquer forma, são sentimentos. O indiferente não. E como se ele não existisse. Ou se existe, não serve para nada. Nem ódio nem amor. Nem presença nem ausência. É algo que não merece existir no universo sartreano, onde tudo que existe se destina a preencher o vazio existente entre o Ser e o Nada.
Eu sou assim. Sou um ser que existe, mas sequer é notado. No sentido comum da existência sartreana, eu sou nada. Só existo porque as pessoas me vêem. E porque faço parto de um conjunto, onde a minha presença se destina meramente a preencher uma lacuna, que de outro modo seria notada com desgosto. Afinal, quem gosta de ficar olhando para um buraco negro? Pois é, eu sirvo para isso: para encobrir um girante buraco negro, que outro modo seria visto apenas como um anel escuro que gira.
Certo que existe algumas pessoas que tratam de mim como se eu fosse um quadro na parede. Sirvo só para enfeitar. Se eu não estiver por perto para ser colocada, as pessoas vão embora sem mim porque eu não tenho nenhuma utilidade prática, a não ser enfeitar. Sou como um brinco, uma pulseira, um colar, um pierce, mas sem a importância que as pessoas dão a esses ornamentos. Pobre de mim.
Eu não sou uma criatura única. Tenho milhões de irmãs, e a uma boa parte delas é muito bonita. Algumas de minhas irmãs ostentam até uma beleza artesanal, desenhada com muita arte e fabricadas com muito esmero. E algumas são até bem tratadas, pois recebem adequada higiene corporal, são lavadas com produtos de beleza, lustradas, escovadas, enfim, como se fosse um ornamento agradável à vista.
Mas no geral, isso é raro. Na maioria das vezes, é a indiferença que permeia nossa vida, desde o nascimento até à morte. Indiferença para os outros, mas não para nós. Pois somos nós que sofremos a maior parte dos agravos que são feitos ao conjunto ao qual pertencemos. Suportamos o calor do atrito que esse mundo do qual fazemos parte faz quando está em movimento; somos as primeiras a ser comprimidas contra a calçada quando ele pára, e suportamos o embate das pedras que o atrito contra o chão provoca. Somos como escudos de gladiadores, que recebe e amortece os golpes que são dados contra eles.
São poucos os que reconhecem a nossa importância. Quando ficamos velhas somos retiradas e jogadas no lixo. Somos constantemente mutiladas por guias e sarjetas, arranhadas, amassadas, quebradas, cobertas de lama. Somos os últimos dos últimos.
Por isso é que já há algum tempo estamos planejando um dia de protesto. Finalmente ele acontecerá. Escolhemos a Rodovia Mogi-Bertioga para fazer isso, por que por ali passarão neste fim de semana esticado mais de quinhentos mil carros. Então nos desligaremos do aro onde estamos presas e ficaremos na beira da estrada, em permanente exposição, a dizer a todo mundo que nós existimos e queremos ser notadas.
Quem passar por lá não deixará de nos notar. Estaremos espalhadas por toda a extensão da serra, estiradas no acostamento, com um mudo apelo a todos os motoristas: por favor cuide de nós da mesma forma que vocês cuidam dos companheiros que fazem parte desse mundo que vocês tanto amam: o seu automóvel. Nós também somos da família. Não nos comprimam contra as guias. Não nos deixem ficar sujas e descascadas, cheias de riscos, amassadas, mutiladas. Queremos ser respeitadas. Queremos ser amadas. Queremos ser notadas. Sete de Setembro é o dia da Independência do nosso país. Que seja também o dia da nossa redenção. Viva as calotas.
Nota: quem desceu a Mogi Bertioga na noite do dia 6 de setembro e na manhã do dia sete de setembro próximo passado, não pode deixar de notar o grande número de calotas de automóvel abandonadas no acostamento da estrada. Podiam ser contadas aos milhares. Calotas novas, velhas, intactas na maioria, algumas delas quebradas. Esse fato já havia sido observado por nós em outras oportunidades, principalmente em dias de grande tráfego por aquela estrada. Não conseguimos até hoje encontrar uma explicação plausível para esse fato, uma vez que só o pudemos observar na Mogi- Bertioga em ocasiões de grande concentração de tráfego, e não em outras rodovias similares, como a Tamoios, a Via Anchieta, a Rio Petrópolis, em iguais condições. Permanece um mistério para nós.
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Indiferença. Quem já sofreu desse mal sabe bem como é. A gente se sente como se fosse um estorvo no mundo, uma espécie de criado-mudo posto em desuso, esquecido num canto do quarto, que está ali só porque alguém se esqueceu de tirá-lo do lugar, e aquele é um canto do quarto que ninguém pensou ainda em usar. E a gente fica ali, acossado como um velho animal que já serve para mais nada, um cão sarnento que ninguém mais nota, a não ser para dar alguns pontapés, quando ele consegue vencer a timidez e tenta se enroscar na perna de alguém em busca de um carinho de ocasião.
Ah!, como é triste a indiferença. É como se a gente não existisse. Indiferença é pior do ser enjeitado. O enjeitado, pelo menos é notado. As pessoas sabem que ele existe, e está presente no ambiente. Ele incomoda. Por isso as pessoas viram o nariz para ele, fazem uma careta de desgosto na sua presença, afastam-no com um empurrão e ás vezes até com um pontapé na bunda.
O enjeitado provoca sentimentos nas pessoas. Sentimentos de repulsa, de nojo, asco, constrangimento, mas de qualquer forma, são sentimentos. O indiferente não. E como se ele não existisse. Ou se existe, não serve para nada. Nem ódio nem amor. Nem presença nem ausência. É algo que não merece existir no universo sartreano, onde tudo que existe se destina a preencher o vazio existente entre o Ser e o Nada.
Eu sou assim. Sou um ser que existe, mas sequer é notado. No sentido comum da existência sartreana, eu sou nada. Só existo porque as pessoas me vêem. E porque faço parto de um conjunto, onde a minha presença se destina meramente a preencher uma lacuna, que de outro modo seria notada com desgosto. Afinal, quem gosta de ficar olhando para um buraco negro? Pois é, eu sirvo para isso: para encobrir um girante buraco negro, que outro modo seria visto apenas como um anel escuro que gira.
Certo que existe algumas pessoas que tratam de mim como se eu fosse um quadro na parede. Sirvo só para enfeitar. Se eu não estiver por perto para ser colocada, as pessoas vão embora sem mim porque eu não tenho nenhuma utilidade prática, a não ser enfeitar. Sou como um brinco, uma pulseira, um colar, um pierce, mas sem a importância que as pessoas dão a esses ornamentos. Pobre de mim.
Eu não sou uma criatura única. Tenho milhões de irmãs, e a uma boa parte delas é muito bonita. Algumas de minhas irmãs ostentam até uma beleza artesanal, desenhada com muita arte e fabricadas com muito esmero. E algumas são até bem tratadas, pois recebem adequada higiene corporal, são lavadas com produtos de beleza, lustradas, escovadas, enfim, como se fosse um ornamento agradável à vista.
Mas no geral, isso é raro. Na maioria das vezes, é a indiferença que permeia nossa vida, desde o nascimento até à morte. Indiferença para os outros, mas não para nós. Pois somos nós que sofremos a maior parte dos agravos que são feitos ao conjunto ao qual pertencemos. Suportamos o calor do atrito que esse mundo do qual fazemos parte faz quando está em movimento; somos as primeiras a ser comprimidas contra a calçada quando ele pára, e suportamos o embate das pedras que o atrito contra o chão provoca. Somos como escudos de gladiadores, que recebe e amortece os golpes que são dados contra eles.
São poucos os que reconhecem a nossa importância. Quando ficamos velhas somos retiradas e jogadas no lixo. Somos constantemente mutiladas por guias e sarjetas, arranhadas, amassadas, quebradas, cobertas de lama. Somos os últimos dos últimos.
Por isso é que já há algum tempo estamos planejando um dia de protesto. Finalmente ele acontecerá. Escolhemos a Rodovia Mogi-Bertioga para fazer isso, por que por ali passarão neste fim de semana esticado mais de quinhentos mil carros. Então nos desligaremos do aro onde estamos presas e ficaremos na beira da estrada, em permanente exposição, a dizer a todo mundo que nós existimos e queremos ser notadas.
Quem passar por lá não deixará de nos notar. Estaremos espalhadas por toda a extensão da serra, estiradas no acostamento, com um mudo apelo a todos os motoristas: por favor cuide de nós da mesma forma que vocês cuidam dos companheiros que fazem parte desse mundo que vocês tanto amam: o seu automóvel. Nós também somos da família. Não nos comprimam contra as guias. Não nos deixem ficar sujas e descascadas, cheias de riscos, amassadas, mutiladas. Queremos ser respeitadas. Queremos ser amadas. Queremos ser notadas. Sete de Setembro é o dia da Independência do nosso país. Que seja também o dia da nossa redenção. Viva as calotas.