Dois Estranhos

Acordei cedo, ainda era noite e iniciava-se meu dia. Levantei da cama após o despertar do relógio, calcei o chinelo de dedo que se encontrava ao lado e andei até o banheiro onde faria a higiene pessoal. Lavei o rosto e ao olhar no espelho percebi que meus olhos estavam com um brilho diferente, havia uma luz distinta e pura nas pupilas dilatadas; a pele do meu rosto estava mais rosada, mais macia e um belo sorriso se abriu quando reconheci que realmente em mim havia vida.

Após os afazeres matinais e rotineiros caminhava rumo ao ponto onde pegaria o ônibus para o serviço. Na primeira esquina me deparei com um homem deitado ao chão, estava maltrapilho, cheirando mal e sujo, dizia palavras estranhas, ininteligíveis; talvez estivesse me pedindo dinheiro, pedindo comida, talvez reclamasse da sociedade sisuda que lhe virou as costas, podia estar orando para um Deus que o esqueceu ou talvez ainda, estivesse apenas reclamando a vida vil que levava. Eu não quis nem tentar entender o que aquele homem queria, há tantos outros iguais a ele, situação trivial. Segui meu caminho sem olhar para trás e mais à frente encontrei um cachorro, filhote, sarnento, fedido; remexia o lixo afoito, ao notar que eu me aproximava o bichinho veio correndo em minha direção, estava todo contente, abanando o rabo e latindo fino, um latido baixo que quase não se ouvia. “ Achei um dono “, talvez pensasse ele, se é que animal pensa. Mas se não pensa ao menos sente, sente a fome, o frio, o medo; sente a falta de carinho e o desprezo. Para o cachorro também não dei bola e continuei em frente, porém o vira lata era insistente e me seguia, apertei o passo para ver se ele desistia, em vão, ele continuava lá me olhando, triste e abandonado. “ Me dê um lar “, talvez dizia ele, bati o pé no chão uma, duas, três vezes até que ele abriu mão e voltou a remexer o lixo.

Cheguei no ponto de ônibus e lá se encontrava uma mulher, sentada e chorando. Achei estranho e por instantes fiquei observando, ela dizia frases desconexas, sem sentido. Quis perguntar o que sentia, mas não o fiz, meu ônibus apontava na avenida, dei sinal, ele parou e eu subi, a estranha ficou para trás. Dei bom dia ao motorista, que não me respondeu, de cara mal humorada, sisudo. Acordei o cobrador que cochilava sobre o próprio braço e paguei a passagem, para ele dei um breve aceno de cabeça ao qual me respondeu com a mesma cara fechada do motorista. No ônibus havia poucos passageiros, sentei num banco ao lado da janela e observava a paisagem urbana quando dois rapazes me chamaram a atenção. Eles conversavam em voz alta, despreocupados, estavam sentados nos últimos bancos no final do corredor, mas achei muito estranho porque nada do que diziam fazia sentido para mim, era uma língua estranha, confusa, não pareciam estrangeiros, pensei serem loucos e resolvi esquecê-los. Quando voltava os olhos para janela veio uma senhora e sentou-se ao meu lado, ela disse algo monossílabo que não consegui ouvir direito, talvez tivesse dado bom dia, ou pedido licença para se sentar, respondi apenas com um aceno de cabeça. No entanto, uma coisa me chamou a atenção nessa senhora, de repente ela começa a rir, ria sozinha, ria e ria sem parar, e o que é mais estranho, falava sozinha, às vezes olhava pra mim e dizia alguma coisa que eu não entendia nada e sem esperar resposta voltava a rir, é, rir e falar sozinha. Resolvi não dar bola, parecia estar louca, bem como os outros dois rapazes. Será que abriram as portas do hospício ,pensei comigo.

Meu ponto se aproximava, dei sinal e desci. Cheguei na firma no horário de sempre, bati o cartão e comecei o serviço. Meu encarregado logo deu as ordens, que as cumpri imediatamente, no entanto, havia algo de errado. “ Isso não é assim ! Quem mandou você fazer isso ? Já disse que não é desse jeito ! Meu encarregado aos berros dizia, parecia furioso, mas com o quê ? Fiz tudo exatamente como ele mandou. Tudo bem, ele é o chefe, tornei a fazer, e mesmo assim ele não ficou satisfeito. Parecia que não falávamos a mesma língua. O dia parecia molesto e o trabalho causava fadiga. Fui conversar com meu patrão, contudo tive que primeiro driblar sua secretária, que não queria me deixar entrar em sua sala, pois não entendia o que eu queria com ele. Tentei explicar por várias vezes, até que ela liberou minha passagem, mesmo sem entender o motivo da minha entrevista com o chefe. Abri a porta, pedi licença e entrei. Ele estava bem alinhado, sentado em sua bela poltrona de couro preto importada, atrás de uma espessa mesa de vidro de igual beleza. Expus os problemas, falei o que havia ocorrido minutos atrás com o encarregado e também com a secretária, coloquei minha posição, falei o que pensava, tudo debalde. Meu chefe não quis saber, fechou os olhos, tapou ou ouvidos, mas não fechou a boca, falava sem parar, ordenando para que eu voltasse ao trabalho e esquecesse o que passou, eu estava ali para isso mesmo, receber ordens, fiz o que me mandou fazer, voltei ao trabalho.

Não via a hora de terminar o dia, de voltar para casa e descansar. Enfim, o fim do expediente, bati o cartão na saída e saí. Peguei o ônibus, com as mesmas pessoas estranhas, não conhecia o cobrador, não conhecia o motorista e nem os passageiros, ao menos conhecia o itinerário, sabia onde estava indo, voltava para casa, finalmente. Eu fui olhando pela janela e vendo as casas que passavam depressa, as pessoas andando e passando depressa, os carros correndo e também passando depressa, tudo passa depressa, menos as horas dentro daquela firma. Continuei olhando pela janela, só com meus pensamentos, lembrei das pessoas estranhas que havia encontrado de manhã, onde estariam agora ? Olhava pela janela, lia os anúncios nos muros e outdoors, as pixações nas paredes, nada de novo, e nada fazia sentido. Eu não raciocinava direito, não conseguia pensar.

Fechei os olhos por alguns instantes, estava com sono, quando novamente os abri, estava sentada à minha frente uma mulher com uma criança no colo, um bebê lindo, menino, pele lisa, olhos claros e vivos, muito pequeno, bem novinho, não parecia nada com a mãe. Ainda não falava, apenas balbuciava coisas sem sentido, mas também nem precisava, eu percebia em seus olhos algo verdadeiro, sincero, eles se comunicavam perfeitamente numa linguagem totalmente diferente de tudo que havia visto. Eu via naquela criança um novo mundo, nem melhor nem pior, um outro mundo. Aquele contato me renovou, senti que algo superior, muito superior a mim existia, era algo intocável, de poder incalculável. Aquela criança mesmo sem dizer uma palavra inteligível conseguiu se comunicar comigo, eu conseguia entender tudo que aquele bebê queria dizer e sentia que ele também me compreendia, pois demonstrou isso com um sorriso nos lábios e num gesto, ao estender-me as mãos.

João Daniel
Enviado por João Daniel em 21/02/2007
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