A Gaiola
Você acorda banhado em suor, apesar do ar-condicionado quase congelante do ônibus executivo que faz a linha noturna Caxias do Sul/Porto Alegre. O contato da camisa empapada em suas costas com o encosto da poltrona lhe dá a esquisita sensação de que um enxame de vorazes formigas está a picar sua carne. Seu primeiro impulso é o de arrancar a camisa do corpo e se estapear furiosamente, para ver-se livre dos terríveis insetos, mas você se detém a tempo. Os demais passageiros julgariam que enlouquecera. Então, respira fundo. Inclina-se para frente, desgrudando as costas do espaldar pegajoso. Abre os botões até quase embaixo e se abana com a revista esportiva que repousa sobre seus joelhos. Fora um erro ter jantado, você pondera. Quanto ao litro de vinho, outra de suas extravagâncias. Devia ter-se contentado com um lanche rápido, e água, nesses casos, nunca é demais. Que pesadelo, meu deus!... Bem, já devem estar chegando. Lança um golpe de vista ao mostrador azul-turquesa do celular. Ah, acenderam as luzes. Ótimo. Sua parada deve ser a próxima. Ah, lá está ela. Com licença. Desculpe. Com licença... Faz você, atabalhoado, equilibrando-se precariamente no corredor do ônibus em movimento.
Você salta do ônibus uma parada antes da rodoviária. Definitivamente, você não gosta de chegadas.
A simples visão do carro manobrando no terminal de desembarque, do estacionamento evidente, da confusão de corpos se espreguiçando, do manuseio de malas, dos sorrisos afetuosos, dos abraços acalorados sob a luz dinâmica, quase irônica dos terminais, o faz ofegar sob o peso da impotência humana em face de sua compulsão para formalidades. Por que frisar tão pedantemente um começo, se na realidade vamos à esteira de um ato contínuo! É no que você acredita. Mas imediatamente considera a necessidade muito humana que todos têm, inclusive você, de se compenetrar de pequenas tarefas e dá-las por terminadas, e outra vez recomeçá-las, para poder sentir certa autonomia, imprescindivelmente vital, apesar de pateticamente ilusória, naquele fluxo ininterrupto no qual se processa a marcha de todos os dias.
Mesmo assim, você cospe um “foda-se”, furioso. Ainda pensa no pesadelo que tivera. Já está farto de suas estúpidas prevenções que, por não acatá-las como deve, até mesmo em sonhos vêm importuná-lo. A verdade, você sabe, é que vem agindo como um cretino caminhante de final de tarde, aquele que, surpreendido pela chuva, apressa o passo, receoso de sua saúde e conforto.
Promete a si mesmo que daqui para frente agirá diferentemente. Ou seja, procurará abordar o futuro sem senso de antecipação. O que quer dizer não procurar enfeixar, à semelhança de um embrulho discriminado e datado, sua vida fluida, inapreensível.
Animado com essa resolução, você já antegoza seus desdobramentos quando ouve, às suas costas, chamarem-lhe pelo nome. Você se vira abruptamente, lastimando o fato de o estarem importunando, como se na realidade andasse entre conhecidos, numa praça costumeira. Mas, para sua surpresa, você se depara com a rua deserta, e pouco a pouco vai tomando consciência de sua localização, ao mesmo tempo em que vai se perturbando com a paisagem noturna.
Pelo pavimento esburacado e pela aparência maltratada das casas, logo percebe que se encontra em algum subúrbio miserável.
Mas você não consegue atinar como viera parar ali. Tudo o que lembra... Estaca. Um arrepio gelado percorre-lhe a espinha, indo repercutir atrás da nuca como uma martelada. Lembra-se subitamente de sua promessa; do propósito sincero de não procurar prescrever o futuro e suas eventuais consequências.
Estremece. Força-se a pensar: Não, seu grande tolo. As coisas não funcionam assim. Existe uma sequência lógica, um encadeamento conforme dos fatos. Então, vejamos. Saltei do ônibus a poucos quilômetros do centro; disso tenho certeza, pois havia uma passagem elevada e... Olha no celular. Faltam cinco minutos para a meia-noite. Você quase grita, enorme é sua estupefação. Tem certeza que havia descido do ônibus às quinze para a meia-noite. Então, como era possível ter-se afastado tanto em tão pouco tempo?!
Estão nesse pé suas cogitações quando reboa novo chamado. O tom casual, indiferente da primeira vez, foi substituído agora por uma nova vibração – mais urgente, mesmo desafiadora. O efeito é singular. Premonitório de algum evento extraordinário. Pois, na crescente obscuridade, como se a noite não houvesse caído de toda, como se houvesse ainda mais trevas para entronar definitivamente a noite, aquele chamado sabe à loucura e angústia infinita.
Vacilante, com o coração aos saltos, você se volta para o local de onde, parece-lhe, veio a voz.
Recortada contra a escuridão, sob a luz difusa de uma pequena lâmpada amarela, curiosamente colocada muito acima do umbral, assoma a fachada de uma construção de madeira, constituída de dois pavimentos e perceptivelmente inclinada para a direita. Esta é cortada diagonalmente por uma escada precária, cambaleante, aparentemente sustentada no vazio, e que se projeta em direção a uma abertura negra, na extremidade oposta da casa, a cinco metros do chão.
Toda a aparência da velha mansarda fala de ruína, de decrepitude, de fria, de inafiançável desolação.
Você é sacudido por um sobressalto quando algo, inopinadamente, induz-lhe a interpelar a voz que o exige com tanta urgência. Com os punhos cerrados e uma expressão de desafio no olhar, você aborda a construção combalida. Quem quer, afinal, que se oculte naquele pardieiro terá de se haver consigo. Mas, estranho, no momento mesmo em que você galga os degraus, é tomado pela sensação insólita de que não encontrará ninguém. A possibilidade de não poder extravasar sua indignação contra o provocador daquela situação grotesca enche-lhe de cólera e de uma violência irrefletida, que mina quase completamente suas energias.
É num estado de semi-alienação, como a mover-se num pesadelo, procurando desesperadamente o que pode devolver-lhe a banalidade da paisagem, que você transpõe, trôpego, o limiar da estranha moradia.
Parece-lhe, de chofre, estar diante da própria arquitetura da existência.
Uma sucessão de imagens, superpostas no quadro de um caótico plano transformista, dá a impressão de barrar seu avanço, ao mesmo tempo em que compele sua razão para uma ideia pervertida do mundo. Assim, estando solidamente preso ao chão por força de uma abundância de prevenções espirituais, você acredita flutuar muito acima da solidez do mundo e dos seres. Esta ideia, contudo, extingue-se muito rapidamente para confrontá-lo com o horror; logo, pacificado pelo medo, você procura se orientar na desordem do ambiente.
Inegavelmente, impera no recinto desusada bagunça.
Uma quantidade absurda de madeira apodrecida, empilhada desastradamente, confundida com latas de tinta vazias e caixas de papelão mofadas, espalha-se em profusão pelo quadrado irregular da peça. Pode-se ver ainda, em meio aos trastes, submersos na poeira, os restos de uma mobília arruinada. A um canto, resguardada por seis grossas traves, formando uma espécie de cercado, ou, antes, tosca gaiola de cerca de dois metros de diâmetro, avista-se uma enxerga e, sobre ela, uma forma estorcida delineia-se debilmente. E tudo está como que em repouso, encapsulado pelo manto protetor de imensa, vaporosa, diáfana teia de aranha.
Sem o menor aviso, você se vê dominado por enorme cansaço. O ar viciado e viscoso, cheirando a mofo e a excremento de ratos, sufoca-o. Você sente uma pressão no peito; uma angústia, como se detivesse um segredo mortal; ou, pior: a chave para um segredo mortal.
Você quer recuar. Mas, atônito, vê-se acercar da “gaiola”.
O espectro, até então tênue, ganha em contorno e substância; e tendo apenas levantado meio corpo, puxa-o violentamente para dentro...
Você acorda banhado em suor.