Carcará
A festa tava pra começar. Os homens tudo em frente da barraca. As mulheres iam chegando, carregando as panelas. E aquele cheiro de mugunzá tomando conta do lugar.
Bate um vento. As bandeirinhas mexem tanto, parecem que algum bicho invisível tá pra arrancar elas dali.
Chico Preto se treme todo. Os homens só fazem olhar. Carcará chegou.
Era a imagem da própria morte: capa preta, o chapéu cobrindo os olhos. Só deixava de fora metade do rosto seco. No pescoço, um colar com pena de gavião. O coldre com couro de cascavel.
Deu três passos e se escorou na parede.
Os caboclos resolveram dar uma volta, só pra se preparar para a dança.
Dona Mirtes, depois de terminar a buxada de bode, deu o toque para o Menino. Ele abriu a festa com os acordes da sanfona. Cada qual ia passando pela mesa no canto do salão, beliscando um quindim, pegando um pouco da buxada ou da moqueca com pequi.
Cachaça por conta de Seu Américo. As meninas-moça no outro canto esperam o seu par. Gerusa, carinha de anjo, esperava o seu príncipe encantado. Calhou do dragão aparecer: Carcará lhe tirou pra dançar.
Espanto nos dois lados do salão.
A sanfona nem se importou, continuou a tocar - Menino já estava quase em transe.
A menina tremia-se, ele, no entanto, não tentou lhe beijar a força. Na verdade, lhe tocava com tanta delicadeza. Estava confusa. Do seu par só conhecia a fama (a má fama...) e o bigode. De onde ele veio? Como são seus olhos?
A festa prometia varar a noite, graças á cachaça de Seu Américo e a sanfona de Menino (ele não parava, era uma máquina!). Chico Preto estava caindo de bêbado, para desgosto de Dona Mirtes. Enquanto todo mundo se divertia naquele forrozão animado, lá fora alguns casais se acariciavam.
Num canto quase deserto, do outro lado da casa de Zé das Mulas, a menina-moça e o matador conversavam baixinho. Prosa estranha, sem palavras, só carícias. Ela já não estava certo de quem era aquele homem, mas ainda assim queria estar com ele.
Em nenhum momento lhe desrespeitou. Seus gestos eram de fidalguia. Seu sorriso não tinha nada de macabro.
Então, um beijo aconteceu.
Logo, veio outro. E mais outro, esse no pescoço. E foi subindo. Parou no pé do ouvido. Carcará se acabrunhou, por alguma coisa.
-O que é? Não gosta de mim?
Negou, mas não disse do que se tratava. Resolveu botar pra fora todas as perguntas que estava na cabeça a noite toda. Ele desconversava com uns pigarros, mas continuava alisando o seu cabelo.
-Sei que amanhã o senhor nem vai falar comigo, eu sei, só queria pedir de sua senhoria uma coisa...
-Diga.
-Me mostre seus olhos.
O sorriso sumiu.
Silencio. Ela á espera da resposta, ele á espera da desistência.
-As pessoa acham que o carcará mata pelas garras, mas num é não. A arma do carcará e a visão. Do que adianta ter a melhor carabina do arraial se você não sabe onde atirar? É o olho dele que sentencia os bicho á morte...
Gerusa não entendia, a prosa tinha tomado um rumo estranho, mas queria realizar o seu desejo. Restava pouco para o baile acabar e cada um voltar pra seu pedaço de solidão. Ela precisa ver os olhos dele, agora mais que nunca. Tirou-lhe o chapéu, foi mais rápida.
Duas bolas em fogo apareceram. No fundo delas, viu toda a desgraça que podia imaginar. Sentiu facada no coração, uma facada invisível. Tombou no chão. Ele ajoelhou ao seu lado, tentando reviver a tadinha. Mas nada. Chorava, era inútil.
No outro dia, a vila amanheceu com um corpo pra ser velado e um bandido cego ás lágrimas na cadeia pra ser linchado.