Amistoso

Por muito tempo ficou em segredo a saga protagonizada com um amigo. A discrição, a vergonha e o pudor juvenil foram ingredientes suficientes para manter inédita a odisseia.

Para começo de história, meus dias infanto-juvenis foram vividos em Jaguaribe, bairro central de João Pessoa, sempre povoados por promissores sonhos de me tornar jogador de futebol. Era, certamente, o desejo de todos que liam as páginas de esportes dos jornais da época. Mas, apesar da felicidade vivida nos campos de pelada, a situação financeira permanecia na banheira, vencida pela zaga implacável daqueles dias, carecendo de dribles fantásticos, verdadeiramente acrobáticos, para superar as dificuldades de então. Por outro lado, os eventos esportivos que aconteciam na cidade, dignos do prestígio dos futuros jogadores, andavam cada vez mais raros.

Certo domingo de maio, um importante time de futebol pernambucano veio jogar contra o Botafogo de João Pessoa. Alí estava a oportunidade de ouro! A expectativa criada em torno do evento estava nas ruas, nas caras, nos comentários dos apreciadores de um bom espetáculo. Mas o desejo, novamente, esbarrou na carência, no bolso vazio.

De repente, após uma de nossas peladas, um amigo lançou uma ideia inusitada.

- E se pularmos o muro do Estádio?

A proposta soou como uma bomba, provocando outra repentina reação. Pior, o sujeito raquítico tinha menos que um metro e meio de altura:

- Você tá louco, cara? Não consegue sequer pular o muro da vizinha…

- Não? Pois, então, fica com sua moleza, eu vou conseguir, sim!

E zarpou desembestado para casa.

Ele parecia realmente decidido a fazer o que propusera. E, embora a ideia não fosse bem aceita, começou a tomar vulto na minha cabeça. Já não parecia tão absurda quanto a possibilidade de não ver o jogo. Acabei concordando.

Finalmente, chegou o tão esperado dia. Partimos a pé em direção ao Estádio da Graça, no bairro de Cruz das Armas. Andamos cerca de cinco quilômetros quando chegamos em frente à Praça de Futebol. Uma gigantesca multidão se aglomerava alí. “Haverá de ser um espetáculo magnífico”, pensei.

- Cara, vamos direto ao ponto! Temos que dar a volta, precisamos encontrar um local adequado na parte dos fundos. – Disse-me, enquanto corria lépido, dando a volta pelo muro. Não me restava alternativa senão segui-lo. Percorremos quase todo o perímetro da arena. “Aqui é um bom lugar!”

O muro de concreto se erguia com aproximadamente dois metros e, sobre ele, havia mais uma cerca de arame com farpas pontudas, com mais um metro de altura. Era realmente uma tarefa hercúlea. A muralha parecia intransponível. Meu desapontamento estava visível:

- Vai desistir?

Não poderia mais desistir. Juntamos troncos secos de coqueiro e colocamos junto ao muro para facilitar a escalada. Ele tentou primeiro. Subiu ao tronco da palmeira, deu mais um salto e agarrou-se lá em cima. Depois, com as pernas esticadas, esfregou os pés na parede até alcançar o alto.

- Vem, agora é a tua vez. – Sussurrou das alturas.

Respirei profundo. Subi ao tronco, me concentrei para o salto gigante e me agarrei no alto do muro. Fiz os mesmos movimentos que ele para alcançar também com as pernas. Estava todo arranhado.

Mas, enfim, já dava para ver toda a beleza de uma arena lotada. Só faltava a parte final: o arame farpado. “Temos que agir com rapidez, senão os guardas vão perceber”, disse-me enquanto passava uma perna sobre a cerca, depois a outra e, em poucos segundos estava no chão.

- Vem logo, seu molenga! – Disse-me, gesticulando com os braços.

Mais uma vez repeti os seus movimentos e senti a farpa do arame enganchar na minha calça. “Pula logo, senão o guarda…” O jeito era pular. Pulei e um pedaço da calça ficou preso nas farpas do arame em cima do muro. Praguejei contra o inventor da cerca e corri trôpego entre o público. Alcançamos a arquibancada e sentamos ofegantes, soprando os arranhões, lambendo as feridas. Decerto, valeria a pena o sacrifício. O jogo estava por começar.

Um amigo comum, que nos viu passar correndo, veio sentar ao nosso lado:

- Que houve, Cara, aconteceu alguma briga?

Fiz sinal de silêncio e olhei em volta, como a procurar algum guarda, depois falei no seu ouvido:

-Pulamos o muro.

E ele se espantou:

- Mas por quê? A entrada hoje é grátis, em comemoração ao Dia do Trabalho!

E o amistoso acabou em confusão!