Perdido
Quando abriu os olhos Miguel viu uma estação passar rapidamente à sua frente. O trem balançava de uma maneira reconfortante e nesse embalo tinha adormecido. Ouviu uma voz feminina dizer: “Estação Jaguaré, embarque pelo lado direito do trem”.
Ele fazia aquele caminho há dois anos, trabalhava em uma empresa metalúrgica no parque industrial de Jaguaré. Já sabia todas as estações de cor e salteado, sendo aquela a última da linha.
Desceu e sentiu um arrepio; a madrugada estava fria. Desde que tinha mudado para aquele horário, se questionava se tinha sido uma boa escolha. A empresa ficava a vinte minutos de caminhada da estação, nada muito longe, mas durante o dia era uma coisa, já naquele horário...
Seguia por uma rua que ia beirando a linha do trem, iluminada por um sem fim de postes que derramavam sua luz alaranjada - era um lugar bem sinistro. Caminhava calmamente, não tinha pressa de chegar pois sempre estava adiantado, "Deus ajuda a quem cedo madruga" dizia seu pai.
A caminhada era longa e solitária, raramente havia pessoas andando por ali, o Parque Industrial era afastado do centro da cidade, logo, tirando algumas casas, tudo ali eram enormes quarteirões ocupados por empresas de todos os tipos.
Caminhou sozinho novamente naquela madrugada, absorto em sua música, pouca atenção prestava nos arredores. Isso era bom! Ficar olhando para os lados o deixava preocupado, via sombras e tudo o mais escondidos entre casas e árvores. Mas não tinha medo do sobrenatural, aquilo era baboseira, tinha realmente medo era das pessoas. O mundo tinha ficado horrivelmente violento e nada o aterrorizava mais do que morrer ali na mão de algum delinquente.
Enquanto caminhava, o celular parou de tocar suas músicas. Pegou-o do bolso e olhou: piscava freneticamente! Deu umas pancadinhas mas de nada adiantou. Voltou a colocar no bolso e retirou os fones de ouvido.
- Só me faltava ess....
Antes de completar a frase olhou para frente e viu que um dos postes no fim daquela rua tinha apagado, olhou atentamente na hora em que o segundo também apagou. O seu coração se acelerou um pouco. Outro poste se apagou e, no mesmo espaço de tempo, o seguinte também. Onde a luz deixava de existir uma profunda escuridão se instalava. Deve ser uma queda de energia, nada de mais! Pensou, enquanto saía do meio da rua. Embora quase nunca passassem carros ali, ele não queria estar ali caso passasse um.
Os postes vinham se apagando um pouco mais rápido agora. Continuou a caminhada mesmo com as mãos geladas e molhadas. Faltavam três postes para apagar até chegar nele, quando sentiu o chão tremer. O ar ficou rarefeito e sentiu dificuldade para respirar. O chão tremia horrivelmente agora e mal conseguiu ficar de pé. Era um maldito de um terremoto.
Abaixou-se perto do muro e ali ficou até o tremor passar e só então conseguiu soltar a respiração; nem tinha percebido que a prendera. Os postes foram reacendendo no mesmo ritmo em que se apagaram.
Estava tão nervoso que sentiu suas tripas retorcerem e o coração quase explodir. Apoiou-se na parede e se levantou - tudo estava normal. Tentou ficar calmo e até conseguiu soltar um sorriso. Que loucura!
Suas pernas ainda tremiam quando retomou a caminhada. Conforme andava, repassava o momento de desespero na cabeça e pensava que dali a algumas horas veria no noticiário que um terremoto, inédito naquela região, pegou as pessoas que dormiam, desprevenidas. Antes que concluísse o raciocínio observou uma coisa estranha. Uma placa que deveria estar apontando para a direita e indicando uma rodovia estava pendura no local onde deveria estar.
- O tremor deveria ter der... – tentou dizer em voz alta pra se tranquilizar.
Mas sabia que não era a placa em si que o perturbara e sim o que estava escrito nela. A palavras estavam escritas numa língua completamente diferente do português habitual. Olhou novamente e tentou ler mas não entendia nada, a placa ainda balançava levemente.
Entrou na rua que a placa indicava e acelerou o passo, a empresa não estava muito longe, andava cada vez mais rápido. A rua era toda feita de paralelepípedo, o que dificultava um pouco - estava tão apavorado que começou a correr.
De nada adiantou, quando chegou no portão da empresa e viu que as luzes estavam acesas, um pouco de paz invadiu a sua alma antes de ser completamente coberta com o desespero. Onde deveria estar o nome da empresa havia um emaranhado de letras. Tentou ler, mas como a placa próxima à linha do trem, nada fazia sentido.
Queria gritar o nome de alguém, gritar por socorro, por qualquer coisa, mas antes que algum som saísse da sua boca um ser tão negro como a noite passou por cima da sua cabeça e se empoleirou no telhado da empresa. Parecia uma ave gigante, seus olhos eram verdes e brilhavam terrivelmente. O monstro alado olhou em volta e pareceu fixar aqueles terríveis olhos diretamente nos dele.
Lentamente foi se distanciando do portão que estava agarrando com tanta força; suas mãos estavam marrons por causa da ferrugem. Ouviu um grunhido quando o monstro abriu sua boca cheias de dentes afiados. Aquele som gelou até seu último fio de cabelo. Virou-se e correu.
Correu o máximo que pode enquanto pensava “ Mas que porra está acontecendo...”. O medo saiu dos seus olhos em formas de lágrimas quando ouviu o horrível som de bater de asas atrás dele. Antes que tivesse qualquer chance de fugir o monstro agarrou sua mochila com suas patas escamosas e garras gigantescas.
Subiram cada vez mais alto. Ele pensou em se soltar da mochila, mas a queda iria matá-lo. Olhou para cima e viu o monstro mais de perto, uma mistura de morcego e réptil, com uma cauda longa e cheia de escamas, enquanto o corpo era coberto por pelos negros; suas asas eram membranosas e cheias de veias negras.
Voaram para bem longe dali, estava tão apavorado que mal conseguia processar as informações que entravam na sua mente: há cinco segundo atrás estava indo trabalhar como sempre e agora estava preso nas garras de um monstro voador terrível.
Desmaiou.
Acordou com uma pancada na cabeça, abriu os olhos lentamente e sentiu um vento em seu rosto. Achou que ainda estava no trem e alguém tinha aberto uma janela; o pensamento o confortou um pouco. Mas quando abriu os olhos, tudo foi por água abaixo: estava em queda livre, dois monstros voadores estavam brigando logo acima dele. Virou seu corpo e olhou para o mar que vinha em sua direção, estava pronto para se dar um abraço; sabia que ia morrer ali.
Devia estar bem alto pois demorou alguns minutos até morrer, o sol nascia no horizonte e tingia o mar de laranja. Quando estava prestes a bater na água, fechou os olhos. A dor foi uma facada só e logo tudo ficou negro.
Mas antes de morrer um último pensamento flutuou para o além.
Perdido.
2
Sentado no trem, Miguel acordava com um salto. Tinha tido um terrível sonho. Sua cabeça doía muito. Uma agonia se instalou em sua mente, um tipo de desespero, mas logo passou. Ia descer em Londres, após 2 dias de viagem, finalmente tinham chegado. Miguel era engenheiro e participava do percurso inaugural do Trem que ligava os Estados Unidos até a Europa. Tinham sido 3 anos e 100 bilhões investidos. Mas valera a pena.
Esqueceu do sonho assim que desceu do trem e cumprimentava seus colegas.