RÉQUIEM
Quem o visse assim absorto em sua condição de expectador de vitrine não imaginaria o que realmente passava na cabeça dele naquele momento. Sempre acreditara ser indispensável à família, insubstituível em seus afazeres. Mas bastou permear a fila da morte para sentir sua inutilidade. Podia ver claramente que já havia um sucessor, talvez até já fosse o atual. Talvez.
Estava definhando como Prometeu, o heróico Titã, e, assim como ele, sentia em seu fígado tudo o que isso representava. A diabetes tinha evoluído para um quadro de insuficiência renal e agora o fígado deveria ser substituído, antes que ele fosse. Mas para isso havia um longo e árduo caminho, a fila de espera por órgãos. A materialização do inferno, nem Zeus imaginaria tanta eficácia num só processo de tortura.
A morte, mais que nunca, era uma realidade diária. Tanto ele quanto os que estavam a sua volta morriam. Mesmo tendo a esperança viva, não podia negar seu medo da morte. Se ao menos ela usasse minissaia vermelha! Mas não, capuz preto! O que temia, na realidade, não era tanto a morte, mas sim o processo de morrer: a dependência, a impotência, o sofrimento, o desconhecido - e agora o outro, o sucessor.
Andou pensando muito em cortar a fila, em financiar contrabando de órgãos, em suicídio. Mas a idéia que mais excitou o novo Prometeu foi ainda mais cruel. Almejava um final mais espetacular, tanto pra ele quanto para o outro.
Em casa, Prometeu ainda tinha a velha caixa de Pandora, com a velha habilidade de exalar infortúnios. De dentro da caixa retirou uma arma, com a qual deixou seu sucessor em coma e posterior morte cerebral. Sem que ele percebesse, o tempo havia passado, e ele era o próximo da fila.
No dia seguinte ao assassinato, foi transplantado. Um fígado recentemente órfão... Entre o assombro e o remorso, não pôde derramar uma lágrima.