O Fim da Picada

Eu estava passando por uma fase difícil na vida. Minha predileção por tudo o que de antemão já tinha plena certeza de que ruiria estava fazendo com que as paredes se fechassem ao meu redor. Seja no emprego, seja no amor, seja na sorte.

Eu recém havia rompido um namoro de longa data e me sentia meio perdido diante da liberdade que se descortinou à minha frente. Livre de famílias. Livre de filmes. Livre de insegurança alheia. Livre.

Em contrapartida, meu coração estava partido. Mas não tanto. Meus amigos propuseram uma balada pra me colocar pra cima e, de última hora, desistiram. Acabei indo sozinho ao tal pardieiro, mais na intenção de fundamentar meu preconceito com gente baladeira do que qualquer outra coisa.

Queria me punir.

Queria provar pra mim mesmo que o destino de um homem é ficar em casa com a namorada, se empanturrando de gororoba e arrolhando peidos, e não em lugares cheios de pessoas patéticas e felizes, suando, enchendo a cara e demais ritos de acasalamento.

Queria isso, apesar de saber que, de um jeito ou de outro, somos todos uns imbecis insatisfeitos.

Pobre que sou, saí da estação de metrô, acendi um cigarro e fui andando até o local. A fila na porta estava comprida. Pensei em desistir. Mulheres de vestidos curtos e coloridos, de calças apertadas, insinuantes; shortinhos jeans desfiados; decotadas, perfumadas, com a cara cheia de maquiagem, falando alto; algumas tímidas, meio perdidas, como quem entrou de gaiato naquela história. A rapaziada era um misto de roupas coloridas e apertadas, sempre de marca, sempre as mesmas marcas; falavam alto os que estavam acompanhados com várias mulheres; os que se resumiam a grupos de solteiros caçadores falava de forma mais comedida, comentando uma coisa ou outra.

Entrei na fila e fiquei sentindo alguma coisa se quebrando dentro de mim. Passei o tempo todo na fila tentando descobrir se era a dignidade ou a vergonha na cara. Aquelas pessoas não paravam de chegar com suas roupas de marca e com seus carros e motos. Fiz o possível para ignorá-las, enquanto elas não faziam o mínimo esforço pra haver reciprocidade. Era terrível.

Ao entrar na tal balada, me senti um pouco melhor depois que arrimei os cotovelos no balcão do bar e fiquei apreciando um show de covers dos sucessos joviais da minha contemporaneidade; essas músicas que a gente detesta, mas sabe a letra de trás pra frente.

Percebi que as pessoas gostavam bastante de vodka com energético. Ou de uísque com energético. Como minha personalidade já estava bem pra lá de maculada, decidi acompanhar a moda. O drink veio num copo forrado com gelo e pouca bebida; reclamei com o barman e ele me olhou feio. Enquanto ele despejava os cubos de gelo no lixo e entornava a garrafa de vodka de maneira decente dentro do copo, avistei uma moça - de nome Angélica - que trabalhava na mesma empresa que eu.

Fiz o que pude pra evitar contato visual, mas ela acabou me reconhecendo e veio na minha direção, sorrindo. "Fingida do caralho", pensei.

Não gostava dela. Ela me irritava. Boa parte das coisas que davam errado comigo durante o dia tinham uma parcela de culpa dela. As pálpebras coloridas dela me davam nos nervos. As maçãs do rosto cheias de blush me encrespavam. Sua falta de bunda pra muito quadril me exasperava. Falar com ela era um teste de paciência dos grandes. Eu julgava haver reciprocidade nesses meus sentimentos singelos, mas ela, ali, vindo na minha direção, botou isso de lado.

- Eu só queria ter certeza de que não estava vendo uma miragem... VOCÊ? AQUI?

- Você viu como a vida é?

- HAHAHAHA - ela riu, com um copinho de caipirinha na mão - Tudo bem? O que houve?

- Eu que te pergunto. - Falei, apontando o copo - Pensei que você era da Igreja...

- Ah, mas não sou de ferro, né?

- Aham.

Nessa, meu drink chegou.

- Tim, tim - propus o brinde. Tocamos os copos.

- Você veio sozinho?

- Sim. E você?

- Mas, gente, como alguém vai pra balada sozinho?! Só você mesmo...

A conversa tomava um rumo que eu sabia que ia tomar. Claro, isso me irritava. Fiquei com preguiça. Fiquei pensando no que eu poderia falar, sem ser exatamente rude, para que ela se tocasse e desaparecesse da minha frente. Eu estava de olho numa baixinha de cabeça raspada que parecia mais perdida do que eu naquele circo de horrores e ela, Angélica, havia percebido.

- E você - por fim, falei - veio com quem? Com as amigas?

- Sim, sim...

- Legal!

Dei um gole e lancei um olhar enigmático pro além.

- Quer ficar lá com a gente? - Perguntou ela.

"Deusolivre", pensei.

- Pode ser. - Respondi.

Fez as apresentações. As amigas, todas beldades, com cara de quem, como essa fulana minha "amiga", ganhavam bem. Tinha também uns dois ou três caras que não ficaram muito felizes com a minha chegada. Estávamos perto do fundo do lugar, perto dos banheiros, e perto da escada de madeira - madeira bonita, que parecia ser cedro - que levava aos "camarotes". Dava pra ver umas calcinhas de onde eu estava. Gostei do lugar. Coloquei o pé na parede e fiquei com cara de otário, vendo todo mundo interagindo. Minha amiga tinha ido ao banheiro com uma loira. Acompanhei as duas indo até lá. A loira era fenomenal: envelopada num vestido verde, montada num tamanco preto.

Voltaram.

Angélica encostou em mim. A preguiça que eu sentia dela parecia ser diluída a cada gole. Começamos a falar de trabalho e fomos puxando os ganchos até engatar num papo sobre o que interessava: bolinação. O fim da picada foi quando, após renovarmos nossos copos, encostamos no balcão do bar e eu, num impulso, disse:

- Você tem cara de frígida. De quem só faz papai e mamãe. De quem não chupa.

A bandinha de covers, que havia dado um tempo, subiu ao palco nesse instante e começou a dischavar os clássicos da babaquice dos anos 90.

Angélica pegou no meu pau de leve, desceu um pouquinho a mão, agarrou meu saco e apertou-o; senti a pontada característica no pé da barriga; grunhi; agarrei-a pelos cabelos e começamos a nos beijar de maneira tarada e forte, como se o ódio fosse o estopim da nossa troca de cuspe, a força motriz do nosso tesão repentino.

Tocaram uma, duas, três músicas. Aí, paramos de nos atracar. Ao abrir os olhos e vê-la, ali, colada ao meu rosto, senti algo esquisito. Como se aquilo não estivesse acontecendo.

Eu estava com um volume considerável pro lado esquerdo; metade no bolso da calça.

- Preciso ir ao banheiro. - Falei.

- Cuidado com o que você vai fazer lá - disse ela - deixa um pouco pra mim.

"Vagabunda", pensei, e fui indo na direção do banheiro. Ao chegar perto de onde o grupinho amigo dela estava, dei meia-volta, me enfiei no meio da pista de dança e saí porta afora. A noite estava fria. A lua estava cheia. As estrelas cintilavam. Acendi um cigarro e caminhei até o metrô.

Chegando em casa, abri a janela da varanda, sentei no sofá e espichei as pernas ao lado das gatas, que dormiam aninhadas. Fiquei contemplando o prédio da frente. Algumas janelas abertas com as luzes acesas. Outras, com os bruxuleios azulados de televisão. Tirando o atrito dos pneus dos carros com o asfalto e do ranger dos freios, a noite estava silenciosa. Me senti em paz. Resgatei uma ponta jogada num cinzeiro e acendi.

"Que merda que fiz saindo daqui", pensei.

Depois de queimar o lábio, levantei e peguei minha câmera fotográfica. Fotografar minhas gatas era o meu passatempo favorito. Na verdade, era mais por falta de opção. Meu sonho de me tornar um fotógrafo esportivo e viajar o mundo tinha se resumido a isso. Já não doía mais. Aliás, muita coisa já não doía mais. O lado doce de uma vida amarga é que, com o passar do tempo, as dores todas vão sendo naturalmente atenuadas. Então eu me agachava e ficava clicando os bichanos, que me olhavam com a habitual e característica expressão felina de desinteresse e saco cheio.

"Esse filho da puta não para de encher nosso saco mimimimimiiiii fica o dia inteiro com essa porcaria apontada pra nossa cara" - E clicava os bichos.

Larguei a câmera e fui ao chuveiro. Além de uma ereção sem propósito, tive também uns insights promissores. As gatas, sentadas na tampa da privada, me observavam através do box. “Bicho estranho”, murmurei, atravessando a casa enrolado na toalha, na caça de uma lata de cerveja. O resto da noite seria longo.

Sentei diante do computador e demorei o tempo de duas latas e um cigarro para concluir um texto. Imprimi a folha. Li.

“A gente perece sem saber qual a utilidade real que tivemos. Possivelmente nenhuma. Apenas mais um grão de areia deslocado pelo vento do Tempo. Temos sorte quando atingimos o olho da História, e causamos coceira e desconforto. Às vezes penso que sou um cisco dentro de mim mesmo; causo minhas próprias penúrias, e as atribuo aos vendavais do destino. A humildade da aceitação da outorgação indébita do fracasso ao inanimado e incognoscível como uma qualidade minha; eu sei, eu sei. Às vezes me pego em introspecções tão modorrentas que me sinto um sobrevivente de guerra toda vez que percebo que estou vivo nos minutos subseqüentes ao clímax delas. É difícil. É sufocante. Gritar, gritar, gritar no abismo e nem mesmo o eco ter a gentileza de responder aos meus gritos. Só queria uma resposta, uma certeza. Uma, que me dissesse que, sim, que algo valeria o esforço que eu pudesse despender. Às vezes penso que estou na montanha mais intrincada do planeta, com uma bússola inerte em mãos, inutilizada pelas reservas de ferro, com o norte magnético enlouquecido; tendo, descalço, que enfrentar lascas pontiagudas de pedras, andando a esmo no mais hostil dos ambientes, sem propósito nem esperança, com um horizonte densamente neblinado surgindo à minha frente; o ranço de um fim indecente amargando na boca; sentindo como se meu corpo se deslocasse tendo um pedaço de pele preso a uma cerca; o pedaço de pele mais importante desse meu corpo fadado ao apodrecimento. É estranho... É estranho demais! Me dar conta de que ainda sou capaz de sentir apreço por algo, por alguém e por um lugar que outrora me acolheu tão bem, que me foi aprazível sem pensar no troco. Entende? Sinto uma daquelas tristezas inexprimíveis e sem razão, que apertam a garganta e fazem o coração doer; uma tristeza que não admite nem análise nem síntese. Devo senti-la bruta como ela é? Devo escapar desses cânions e voltar ao covil de cabeça erguida? Devo apertar os olhos para não me ver espremido num trem de manhã e à noite? Esquecer que enquanto chacoalho me encarando no vidro sujo de um ônibus, minha vida escoa por um ralo como tudo que é indesejável; sem sentido, sem prazer; do início ao fim; um dia após o outro; uma sucessão infindável de aborrecimentos, tendo exceção em alguns parcos momentos acordado e os de inconsciência do sono intranqüilo; nada de louvável acontecendo; nada, nada, nada; nada além do desejo atroz de não ser; do desejo de encontrar alguma luz nesse planeta inóspito e escuro que é a vida - desejo esse debelado de maneira impiedosa pelos ponteiros do relógio, que gritam que o Nada sempre será meu Tudo, e que o tudo é algo inabarcável onde navego e navegarei, nessa barca furada que é a minha inexistência.”

Por uma fração de segundo, me arrependi de não ter ficado na balada até descolar um rabo que preenchesse por algumas horas o vazio da minha cabeça, da minha alma. Era o que eu merecia, conquanto repudiasse.

Desliguei o computador, andei até a varanda, encostei o isqueiro aceso na folha e fiquei observando os tições flutuando ao sabor da brisa.

Era o fim da picada.

Entrei. Dormi.

14/06/2012

Samiam - Demon

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 25/07/2012
Reeditado em 25/07/2012
Código do texto: T3796600
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