Homem-macaco

O menino era miúdo. Tinha cabeça de jerimum, com orelhas das mais protuberantes, uns beiços que davam meia cara, braços, mãos e pés longos e teimava em andar meio curvado. Desde cedo que o chamavam “Macaquinho”, carinhosamente. O nome de batismo já tinha sido esquecido – nada mais natural: Felisberto.

Com dois anos trepava na sua primeira goiabeira, uma bem mirrada, no quintal da avó. Mas a façanha não foi por isso menos aplaudida. Todas as tias guinchavam de susto, a mãe nem se fala, mas logo que viram que o garoto não corria perigo, começaram as exclamações de “Que fofinho!” e “Que sapeca!”. Os homens da família riam do menino, e davam-se ares importância porque o Felisberto já tinha habilidade que muitas crianças nunca desenvolviam. E o pai, orgulhoso, comentava à socapa que já tinha colocado o menino numa arvorezinha para perder o medo. Se era verdade ou não, ninguém se interessou em averiguar.

A família era humilde, rural, e a infância do macaquinho passou de galho em galho. E também a família tinha uma estranha fixação por primatas. No videocassete (sim, a história não é tão recente) só se via “Buddy, o gorila qualquer coisa”, “King Kong”, “O planeta dos macacos”, o macaco que jogava basquete, o que foi pro México, e tudo nesse nível. Uma vez foram visitar o zoológico e Felisberto conseguiu entrar na jaula dos saguis e fazer amizade com os bichinhos. Ficou muito encantado.

Em casa Felisberto era feliz daquele jeito. Ainda mais que havia pé de banana no quintal e a mãe era uma cozinheira criativa: bananinha, bananada, torta de banana, sorvete de banana, banana frita, banana split, banana caramelada, vitamina de banana! Apesar da magreza natural, conseguia até manter uma barriguinha.

Mas então o menino foi para a escola. Aí macaquinho já não era mais apelido carinhoso, e sim zombaria. Os meninos o cutucavam e ficavam coçando a cabeça e o lado, fazendo grunhidos baixinhos para a professora não ver. As garotas riam e corriam dele, enojadas, quando o pequeno tentava falar-lhes. Não que ele fizesse isso muitas vezes. Era um piá quieto e pensativo.

No começo chorou e contou para a mãe. Ela foi na escola e fez um escândalo, deu uma lição de moral, mas terminou com “E quem ousar falar do meu macaquinho...” – e até a professora riu disfarçadamente. Depois disso, sendo então chamado de “macaquinho da mamãe”, resolveu aguentar firme pra tirar pelo menos o “da mamãe” do epíteto. De qualquer forma, até esta senhora estava reconhecendo que era hora de o filho moderar com as árvores, e passou a colher apenas do abacateiro do quintal para deixar isso claro.

Felisberto sofria calado. E sofria mais em ciências. Evolução natural era sua maior tortura. Até que ele mesmo resolveu abdicar das árvores. Passou a falar mais, até andava ereto, mas no íntimo sofria. Não entendia o que é que havia no viver em árvores que o fazia menos humano. Tinha muitas saudades. Mas a turma o aceitara, e como a essa altura ele já estava com 15 anos, isso era mais importante que sua satisfação pessoal. Um dia marcaram com ele na sorveteria. Todos os amigos estariam levando garotas. Felisberto quase não aceitou, porque não tinha jeito com meninas, mas os outros lhe asseguraram que eles dariam jeito nisso, era só vir.

Quando o rapaz chegou lá, viu seus amigos sentados em volta de uma mesa, sob o toldo, e uma cadeira vaga pra ele, ao lado de uma ocupada. Ao chegar mais perto, ele notou que a cadeira ocupada continha uma grande boneca da Chita do Tarzan, com um vestido de chita. Os outros explodiram em gargalhadas. Felisberto ficou vermelho. Saiu correndo pra chorar em algum lugar e nunca mais falou com eles.

Mais tarde Felisberto arrumou um emprego, ajuizou-se e foi fazer faculdade. Administração, como sugerira a tia. Mesmo assim conheceu gente esquisita lá. Falavam sobre liberar sua verdadeira natureza. Que a sociedade não devia oprimir nossos impulsos naturais. Alguns ali eram tigres, outros tubarões, cobras ou até borboletas. Felisberto notou que havia um bosque grande numa parte do terreno da universidade. E começou a matar aula e ir lá. Estranharam, mas ninguém falou nada até o dia em que ele chegou no trabalho pulando de poste em poste. Não deu prejuízo à rede elétrica porque, como já foi dito, ele era miúdo. Mas no caminho alguém já havia chamado a polícia, e na loja chamaram a tia dele.

Quando ela chegou, quase não reconheceu seu sobrinho. Ele, sempre tão tímido, estava cercado por uma pequena multidão de curiosos, e gritava para os policiais que eles não tinham por que censura-lo, que ele trabalhava dignamente, estudava, contribuía para o progresso da nação... Era o que interessava, não era? O resto era problema dele.

A tia teve alguma dificuldade para livrá-lo daquela confusão. Por sorte, era conhecida do delegado. Ligou para a irmã, manteve o sobrinho sob rígida vigilância, e no sábado colocaram o moço no meio da sala, onde ele foi submetido a um interrogatório familiar.

Entrou ali envergonhado, mas foram tantos lamentos, as ameaças, os “Onde foi que eu errei”, que ele se viu compelido a dizer tudo. “Não nasci pra ser humano não”, falou. “Minha alma é de macaco. É isso que eu sou e já está mais do que na hora de assumir.”

Pra quê! Foi aquele rebuliço. Choro, protestos, gritos histéricos, ameaças de surra, manicômio... Chegaram a avançar pra bater nele mesmo. Mas ele endureceu. Estava mesmo obstinado. Quando viu que não apoiaram sua decisão, saiu porta afora e foi procurar abrigo com seus amigos-bichos da universidade. Ele era o caso mais radical que eles já tinham visto, e começaram a não querer envolvimento demais para não atrair publicidade negativa para o grupo. Mesmo assim um conseguiu um trabalho para ele em um parque temático de fama dúbia e Felisberto largou os estudos e a loja, passando a trabalhar no show em troca da porção diária de bananas.

Na solidão que os intervalos dos shows lhe proporcionavam, Felisberto matutava. As pessoas consideravam-no estranho e pouco ligavam para ele. O apreço que tinha por gente, que já não era muito, foi diminuindo até reverter-se em desprezo. Em compensação havia alguns animais no parque, e entre eles macacos, e Felisberto se afeiçoou a eles, embora não se possa dizer que foi exatamente correspondido: os macacos olhavam pra ele com desconfiança, e respondiam a seus estímulos como a um brinquedo curioso.

Pouco a pouco Felisberto acreditou que já entendia o que os macacos diziam. Imitava seus guinchos com perfeição, e como nenhum humano lhe procurava para conversar, acabou esquecendo boa parte do seu vocabulário. Uma idéia o consumia: queria ir para a floresta. Amazônia ou Pantanal, África ou Oceania – não interessava bem onde, contanto que estivesse perto de seus “irmãos”. Por esse tempo ele já morava em uma árvore. Barba e cabelo crescido davam a seu rosto um ar ainda mais animalesco. Mas ele sentia que sua transformação não estava completa. Podia pendurar-se nos galhos pelos pés ou pelas mãos, mas faltava o principal. Foi aí que ele decidiu fazer um transplante de rabo.

Voltou então a fazer uso de suas faculdades humanas. Começou a anunciar isso a todos com quem tinha contato, e mesmo no parque lhe diziam que era loucura. Não se importou, e mesmo não tendo encontrado seus velhos amigos universitários, saiu atrás do que queria. A família, apesar de te-lo renegado, sabia de tudo que lhe acontecia, ficou ainda mais contristada.

Tanto Felisberto fez que foi para nos casos bizarros da imprensa. E então apareceu um empresário multinacional, que se dizia apoiador das causas libertárias e inimigo do preconceito, disposto a financiar a caríssima de rara cirurgia. Não era a primeira vez que ele o fazia. Já pagara a fenda na língua de indianos-naja, o afilamento dos dentes de um tigrão, e os olhos de gato de uma atriz. E era uma vergonha que a saúde pública não tivesse uma verba para esse tipo de cirurgia.

No dia marcado, grupos de manifestantes com cartazes estavam fazendo vigília em frente à clínica elegante onde aconteceria a operação. Gente a favor e gente contra. Uns gritavam que a liberdade é um dos principais direitos humanos – mas não a liberdade de não ser humano, respondiam os outros. E assim, havia uma tremenda balbúrdia.

Felisberto se sentia esquisito. Enquanto vestia a camisola para os procedimentos cirúrgicos, viu passar o rabo que lhe haviam de colocar. Olhou pra si mesmo e pela primeira vez questionou se queria realmente aquela coisa em si. Então veio o enfermeiro e aplicou-lhe uma anestesia. Em poucos minutos ele estava desacordado

Felisberto, o “macaquinho”, morreu na mesa de operação.

A família ficou com vergonha de reclamar o corpo. O milionário tratou de desviar a atenção da imprensa daquele fracasso, improvisando alguma extravagância. E os macacos do parque temático tampouco sentiram falta dele.