Um homem na contramão
“O homem urbano não tem raízes”. Naquele dia, essa frase martelava em sua cabeça mais como uma percussão que uma canção. Enquanto isso o trem seguia estação após estação, e ele olhava de relance as imagens entrecortadas pelo abrir e fechar da porta. E a cada visão, era uma nova partida. O homem urbano tem rodas: ora sobre os trilhos, ora na estrada. Se a primeira lhe assegura mais firme-za, como um destino certo e indubitável; a outra, embora incerta e insegura, con-vence-o da liberdade. Mas ele volta para casa de trem e justamente quando todos estão de saída. O sentimento que lhe assola é de que ele está sempre na contra-mão. Seu nome é Carlos Michaele (com ch soando k), mas é-lhe oportuna essa ambigüidade, posto que à noite, quando, ao contrário de muitos, trabalha, ele, então, chama-se Michele.
Antes de voltar para casa, é preciso toda uma metamorfose para retornar ao masculino. Toda sorte de maquiagem escorre pela cloaca e aí está ele – Car-los! No trem a caminho de casa. Quando a manhã preponderar sobre o horizonte ele estará dormindo e ainda ouvirá a voz de sua mãe sussurrando: “façam silên-cio, seu irmão está dormindo! Coitado! Não goste de vê-lo trabalhando à noite!” E é assim que correm os seus dias, sempre dividido, mas sempre de retorno, se-guindo o trilho firme daquela voz materna. À noite ele é uma deusa – uma criatu-ra mitológica capaz de seduzir e encantar – e quando o faz, sente-se livre embora haja o álcool, o cigarro e aqueles homens, para quem vive e a quem odeia. Nessas horas ele não se sente ambíguo, porque é pleno e uno, imutável e indivisível – o dia é que lhe dói à pele, e especialmente aquele momento no trem, quando vê os homens indo ao trabalho de terno ou em mangas de camisa, sérios ou debochados e vulgares, firmes em seu destino sobre os trilhos.
Ali ele não se sabe.
E é quando lhe invade o desejo de partir definitivamente, abandonando a incerteza desse trem e entregando-se a estrada, mas desde que morrera seu pai, ele é o homem da casa. Aquele trabalho nunca explicado é o sustento de sua mãe e dos outros três irmãos. Não poderia abandoná-los justamente agora quando é admirado e respeitado, ao contrário de quando lhe vivia o pai, para quem ele não passava de um veadinho inútil. Não, definitivamente não. Era preferível a dor de seu retorno a casa, sentindo ainda o rosto lavado e despido de sua máscara, a se desfazer daquele prestígio mágico em que vivia. Todavia, enquanto dizia isso a si mesmo, aquele outro pensamento lhe batia: “O homem urbano não tem raízes”. Que demônio seria aquele a atormentá-lo? O ruído férreo do trem completa a sin-fonia, e a frase se repete: o homem urbano não tem raízes... prefiro a dor... não tem raízes... voltar para casa... tem raízes. Iria enlouquecer, pois estava fadado àquela eterna bipartição. Até porque sabia que embora sofresse com aquele Car-los incógnito e desconhecido para si mesmo, ainda com a cara de menino a chorar ante o berro do pai – seu veadinho! – estava vivo a cada volta e não entregue às rodas do destino pela estrada.
“O homem urbano não tem raízes”. Essa frase martelava em sua cabeça mais como uma percussão que uma canção. Enquanto isso o trem seguia estação após estação, e ele olhava de relance as imagens entrecortadas pelo abrir e fechar da porta.
E foi então que aconteceu.
Ergue-se pela primeira vez antes do tempo. A três estações do seu destino, pôs-se de pé. Aberta a porta atravessou pela soleira, mesmo sabendo que era um suicídio. O trem partiu, e ele deu então uma última olhada para trás. Ficou ali pa-rado como uma estátua de sal, sem sequer saber por quanto tempo. Subiu pelas escadas da estação e viu o céu azul-cinzento da cidade. À sua esquerda o cemité-rio e à sua frente o trânsito ininterrupto de automóveis. Foi quando então aquela moça de vermelho, passando pela calçada, olhou-o nos olhos e mergulhou na multidão.
Seguiu pela primeira vez o fluxo de todos.