O ENCONTRO INSÓLITO

 

 

 

                                                                            Para Eunina Hermano de Britto,  Sanina, luz em forma de mulher. (inspiradora, criadora e mantenedora da instituição humanitária Lar das Meninas de Santa Gertrudes, em Goiânia.)

Aos auspícios de um dia ensolarado, Cyrillo amanheceu com a boca doce, regada pelo sabor da suculenta pêra portuguesa. Com a alma desfraldada por iluminado regozijo, estava, por assim dizer,  mais para o deleite do açúcar do que para as adstringências do sal.
Refeito por profunda paz interna, pôs-se porta afora. Embora desconhecesse a origem, o rapaz trazia nos lábios o sorriso dos felizardos recompensados, levando-o a distribuir incomuns saudações e renovada jovialidade à vizinhança. Renascido em meio as maravilhas ao seu redor tudo lhe era novo, colorido, interessante, e a ninguém mais espantava se, por vezes, saltitasse tamanha a euforia encontrada. Seu encanto era visível; sua vontade de viver, intensa! Nunca dantes percebera tal energia de doação a lhe fluir pelos poros, e pressentia todo o universo conspirar a seu favor. A não bastar, em tudo que olhava lá estava a expressão plena que pudesse trazer e fazer a felicidade humana. Certa leveza ora se apoderara dele, assegurando-o a certeza de poder levá-lo agora a qualquer lugar antes inimaginável; as pernas de outrora, sofridas por dores lancinantes, permitiam o seu deslocamento apenas pelos arredores. Mas por ora recuperado e embevecido prosseguia rua afora ao sabor das alvíssaras, quando os olhos pousaram subitamente num veículo. Eis que dele se aproximava. Quedou-se admirado. Tratava-se de  modesta carroça de madeira puxada por alvíssimo animal, sugerindo-lhe, a seguir, surpreendente imagem a lhe adentrar o cérebro, associando, por sua vez, fatos que lançaram luz ao inusitado sonho da noite anterior. Nesse estranho sonho, as pernas lhe doíam penosamente! Lembrou.  Longe de casa, nos ermos da cidade, mal trocava os passos a exaustão severa lhe cobrava o descanso. Numa dessas paradas, recordou, certa mão salvadora o acolhera. Ocorria-lhe ainda ser puxado facilmente para o assoalho da condução que, inesperada, aparecera ao largo. Embora a aparência externa do veículo se mostrasse tosca, em seu interior sentia-se plenamente acomodado, qual estivesse num amplo e confortável ambiente. Tudo muito estranho. Notava. Conduzia o misterioso veiculo certa figura magnética e bizarra. Não por acaso, a basta cabeleira extremamente branca do condutor a lhe moldurar a face austera, transmitia, à primeira vista, serenidade e confiança. Finalmente Cyrillo lembrava --- daquele instante no sonho ---, do persistente silêncio do homem e do quanto a sua cabeleira alva o impressionara! Dada as circunstâncias nada perguntou, pois, afinal, o veículo se dirigia rumo a sua casa, seguindo a única via por ali existente.
Recolhido à exaustão emudeceu; apenas observava o silêncio e a serenidade do velho desconhecido que entregava inteiramente a guia da condução ao belo corcel branco a trotar passos largos. Os buracos se sucediam em meio a terra solta da estrada que ficava célere para trás, inobstante não haver poeira no ar, tampouco solavancos; cavalo e carroça, na percepção de Cyrillo, deslizavam acima do chão! Muito estranho tudo isso! Desconfiou o carona desde então deslumbrado. Para início de seu desconforto, o veículo que tranquilamente rumava de volta à sua região, repentinamente, à revelia de comando, tomou um novo destino. Antes que Cyrillo manifestasse sua apreensão o velho condutor bondosamente o atalhou: “Não te preocupes!... Irás comigo prestar um socorro!”
“E minha volta?... Minha casa?” Devolveu-lhe o passageiro surpreso.
“Repito: Não te preocupes!... Em breve estarás lá!”
A recomendação veio revestida de certa autoridade que Cyrillo                                                               entendeu não questioná-la.
Um vento brando, porém frio, cortava aquela planície árida desprovida de vegetação, inexistindo também,  por lá, quaisquer indícios de vidas. O carona percebera agora a ausência do sol. Aliás, dera-se conta que desde o desvio da rota o sol desaparecera; o dia, antes claro, transformara-se em tarde plúmbea e desolada. O enigmático condutor nada dizia, apenas fixava o horizonte e seguia.
Não muito depois, divisaram ao longe, à semelhança de um vilarejo, se confirmando após serem míseros casebres de madeiras amontoados à revelia de urbanismo, senão das demais condições mínimas de civilidade. A curiosidade de Cyrillo levou-o a observar que o local não trazia nenhuma indicação; em seu julgamento, tratava-se de um reduto pestilento e discriminado. Poucos dos que ali moravam apareceram. Sorrateiros cuidavam fugir dos forasteiros envolvendo os rostos nos andrajos, desaparecendo rápidos entre as casinholas, evitando, a custo, a presença dos visitantes. Sem perda de tempo o velho apeou decidido; a um aceno seu, o acompanhante o seguiu. O caminho prosseguia ladeado por trechos de precárias cercas de arame, enquanto Cyrillo se esforçava na tentativa de saltar as poças malcheirosas abertas no solo negro, levando-o acompanhar  com dificuldade o velho que se adiantara, já prestes adentrar o casebre à frente. No mísero catre, exposta, à entrada desprotegida da única porta do cômodo, indigente mulher definhava agonizando no abandono. O quadro comoveu a ambos. O velho homem de cabelos brancos se adiantou rumo a infeliz amparando-a nos  braços, numa ação de cioso vigor e carinho no trato da infeliz prostrada. Cyrillo, de pé, observava os movimentos do homem que finalmente disse algumas palavras no ouvido da anciã; dito, pediu a aproximação do companheiro. Ainda em seus braços o condutor repassou-a incontinenti a Cyrillo recomendando-o agasalhá-la na carroça. Os movimentos em si transcorreram prodigiosos com extrema facilidade e docilidade nas ações, até que, finalmente, a infeliz anciã viu-se plenamente embarcada.
“Chegou a hora, meu caro!”
Cyrillo se encontrava junto a carroça ultimando cuidados a velha senhora assistida. Em volta, um silêncio perturbador. A voz às suas costas o assustou fazendo-o virar-se. O velho assistente se  aproximava. Conversaram.
“És um homem de bom coração, --- dizia-lhe o condutor ---  vi em ti sincera inclinação para auxiliar a quem necessita; o pouco que aqui fizeste representou muito para os meus experientes olhos, mas, a tua viagem em minha companhia termina aqui!” A ordem impactara Cyrillo premido naquele mundo sombrio, assustando-o.
Nada de mal fizera ou desobedecera, então qual seria a razão do desterro?
"Não podes me deixar! Nem sei que lugar é este?!!!
Argumentou indo às súplicas. Em vão. Que ao menos o deixasse aonde anteriormente se encontrava, na cidade! Protestou.
“Acalme-se, amigo!...É para o seu bem.” Obtemperou o outro.
“Me deixarás nesse ermo sombrio?... a sós?!!!... e ainda dizes que é para o meu próprio bem?"
“Nada temas!... Aproxime-se!”
Cyrillo moveu-se três passos entre surpreso e receoso postando-se à frente daquele misterioso homem. O condutor então, de mão espalmada, tocou-o no peito. Ao toque, Cyrillo sentiu ir se apagando suavemente junto a realidade que também se desvanecia até desaparecer por completo ante seus olhos.
Na manhã seguinte, veio-lhe a inusitada euforia; leve sonolência ainda restava resultado prazeroso de um relaxamento benevolente. Há muito não encontrava prazer em dormir tão bem assim! Ao espreguiçar-se deu conta da doçura na boca e da certeza de viver um prolongado bem estar. As dores das pernas, antes lancinantes, não o martirizava mais. 
Muitos estão por aí a procurar por esta desejável paz de espírito ou por estados de alegria e satisfação perenes. Cyrillo, plenamente feliz, reconhece por ora que nada é permanente ou eterno no plano material, e que, para tal, é preciso trabalhar na seara do amor, das ações que enobrecem o caráter humano. Desde então apela a quem souber do paradeiro dessa distinta carroça modesta porém extraordinária, puxada por soberbo cavalo branco, e ainda conduzida por alguém de aparência simples embora nobre, que o comuniquem, pois está plenamente convencido que, nele, e em sua missão fraterna de socorrer aos necessitados, assim como em praticar outras formas de promover o bem e a justiça entre todos, está o verdadeiro caminho para renovar esperanças, reencontrar alegrias e viver uma nova  vida!
moura vieira
Enviado por moura vieira em 14/06/2012
Reeditado em 27/03/2022
Código do texto: T3724479
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