Quase de Carne
 

            Tio Vando era um homem muito rico.
            - Vai cair de podre de tão rico, diziam os parentes mordidos pelo verde da inveja.
            Quando o visitávamos em sua mansão, todos ansiosos por abocanhar a herança farta, gostava de fugir de todos e de me enfiar pelos corredores, infinitas escadas, quartos imensos, alçapões, sacadas e armários sem conta daquele palacete inóspito, desajeitado, que fora sendo aumentado pedaço-a-pedaço. Suas porções eram sem medida, como se um arquiteto tresloucado em momento de delírio alcoólico, ou pior, houvesse erguido cada parede.
            Por fora, excluindo-se o portal de entrada, com colunas remetendo ao período gótico, encimadas por gárgulas vampirescas, todo o resto era um monumento ao improviso. De longe, o castelo parecia querer desmoronar, mantendo-se em pé por força de pura magia, de uma magia antiga e pagã.
            Era-me impossível conhecer todos os quartos, pois, a cada temporada de férias em que voltávamos, novos cômodos eram acrescentados e outros modificados. Um corredor era fechado e se abria ao meio. Outro corredor nascia dali indo dar a novos cômodos, ou simplesmente a lugar algum.
            - Além de rico é louco e fica gastando o nosso dinheiro em maluquices, diziam meus tios.
            - Temos que interná-lo por insanidade ou somente restará esse monte de entulho, falavam referindo-se ao castelo.
            Indiferente, circulava por aquele fantástico e inusitado labirinto. Às vezes me aborrecia, pois um quarto ou sala de que gostava simplesmente sumia, ou era mudado para outro extremo. Intentei fazer um mapa. A medida valia apenas para cada estadia, pois da vez seguinte em que tornava tudo mudara.
            - Tio? Por que muda as coisas de lugar? – Perguntei-lhe certa vez. Sorridente, respondeu-me certa vez:
            - Será que as coisas mudam ou quem muda somos nós? – Não respondeu coisa alguma e fiquei só, com meu enigma. Certa noite, acordei ouvindo gemidos de algum ponto. Com uma lanterna, vasculhei os corredores buscando a origem enquanto todos sonhavam com a fortuna que um dia talvez herdassem. À medida que me aproximava, tornavam-se mais intensos e claros. Dei em uma sala estranha, percebendo por baixo do vão da porta uma luminosidade oscilante. Abri-a com cuidado. Fraquíssimas lamparinas movidas a gás iluminavam-no suspensas por lustres milenares. Encontrava-se repleta por esculturas cobertas por lençóis. Quando me aproximei de uma delas, ouvi um forte sussurro de dentro da própria sala e não havia ninguém. Tremia como se as pernas fossem hastes de hortelã.
            Corri a lanterna por cada uma das dezenas de vultos cobertos e não percebi nenhum movimento. O coração batia acelerado, naquele ritmo descompassado e frenético. Era descobrir o mistério ou correr dali. Enchendo-me de coragem, ou atendendo a algum impulso reflexo, despi uma das esculturas do pano que a cobria. Fiquei mudo de espanto. Uma bela figura de mulher, nua, feita de cera, encontrava-se diante de mim. Sendo um macho jovem e adolescente, não pude deixar de pensar certas coisas e, temerário, rendi-me ao toque sutil para verificar suas belas e perfeitas formas.
            - Parece estar viva e feita de carne, disse.
            Subi em uma cadeira para admirar-lhe os olhos. Petrificados, azuis, de um profundo tom marinho, fiquei encantado. De repente ela piscou. Desequilibrei-me da cadeira e, gritando em pânico, corri apavorado casa adentro. Por mais que corresse, por mais que gritasse, não conseguia encontrar meu corredor e o quarto e não ouvia resposta de ninguém. Até que ao dobrar um canto, deparei com meu tio Vando, segurando um castiçal iluminado por três velas vermelhas. Temendo que me descobrisse e diante dos calafrios daquele horror, fiquei calado atribuindo meu destempero a pesadelos. No dia seguinte, tentei contar a meu pai que acreditou que tudo era obra da minha imaginação adolescente. Fiquei o resto do verão apreensivo e tratei de dormir junto aos meus outros primos.
            Nas próximas férias não retornamos à casa. De modo inacreditável, o palácio fora consumido por um monumental incêndio. Meu tio não falecera no mesmo e passou a viver em outra cidade, iniciando a construção de uma nova e ainda mais estranha morada. Ao novamente visitá-lo, demos por várias esculturas de cera espalhadas pela casa. Logo à entrada estava a mulher, só que vestida como sacerdotisa de algum templo grego esquecido. Aproximei-me e procurei olhar dentro dos seus olhos profundos. Não se movia e permaneciam estáticos, nisso, uma lágrima correu pelo canto de um dos olhos, colhi-a com o dedo e provei. Tinha o gosto salgado de uma lágrima real. No entanto, novamente, ninguém acreditou em mim.
            Chegou o dia tão sonhado em que tio Vando morrera e deixou para cada um uma parte da herança, o que gerou muitas brigas. Para mim, no entanto, ficou apenas aquela estátua da mulher em seu pedestal de gesso. Levei-a para casa, pois nesta época já morava sozinho e era independente. Deixei-a na sala do apartamento e, nas madrugadas insones, escuto o seu gemido, afago-a em meus braços e limpo, com um lenço de seda, suas lágrimas que nunca cessam...