Mistério Desvendado.

Já passava das dez horas da noite. O som que vinha da rua era contagiante. As músicas misturadas com o burburinho das pessoas que passavam na calçada só convidavam. Afinal, era a festa da padroeira da cidade de Toritama, o maior evento daquela região do agreste pernambucano.

- O que você acha Antonio? Será que ele vai acordar se nós sairmos para dar só uma espiadinha na festa?

Essa era a Maria Aparecida que com seus dezoito anos – cheia do fogo da juventude – perguntava ao marido.

- Não sei não, Cida. Ele é tão novinho pra ficar só.

Antonio, jovem, vinte e dois anos, sempre gostou da noite.

Ela pensava: “Um filho muda tudo, não é? Até homem farrista. Bem que minha mãe dizia”.

O pequeno José dormia que nem um anjo na rede da sala. E era o próprio. Apenas dois meses de vida, dormia satisfeito depois de sugar do seio da mãe, o néctar dos deuses.

- Vamos lá homem. Agente demora só um pouquinho. Depois que o Padre der a benção ao povo, nós voltamos. Comadre Joaquina disse que depois que até os três meses eles mamam de três em três horas. Dá tempo. Vamos lá.

- Ah. Ta bom. Mas agente fica só até o Vigário dá a benção.

E lá se foram os dois. Felizes, de mãos dadas, como um jovem casal de namorados.

- Antonio, compra um cachorro quente pra mim?

- Ta, fica aqui que volto logo.

- Não esquece da coca-cola.

Antonio foi à barraca comprar o sanduíche.

- Quanto é seu Pedro?

- Custa cinco reais com o refrigerante.

- Vixe homem, eu só quero um.

- É o que tão cobrando por ai. Pode perguntar nas outras barracas.

- Ah, ta bom. Dá-me um com uma coca-cola.

“Afinal, pra quê discutir, é festa e é somente uma vez por ano”. Pensava Antonio.

Ele voltou pra perto de Cida.

- Toma mulher. Paguei cinco reais, um roubo.

- Deixa de besteira homem, será que eu não mereço?

Engraçado como os homens têm a mania de valorizar os pequenos gestos que fazem para suas mulheres. Li em algum canto, não me lembro bem, que a mente masculina quantifica enquanto a da mulher é pura emoção.

- Ah. Vocês estão ai seus irresponsáveis. Como é que vocês saem de casa e deixam uma criança daquele tamanho sozinha? Vocês não têm juízo? Voltem agora por que eu escutei um choro muito forte vindo de dentro da casa de vocês.

Era o seu Antonio Manuel. Vizinho de Cida e Antonio. Tinha seus setenta e poucos anos. E como em toda cidade do interior, apesar de não ser parente de nenhum dos dois, falava com a autoridade das pessoas mais velhas e os jovens, respeitavam e obedeciam, por que os pais ensinam que os mais novos devem sempre respeitar os mais vividos. Engraçado, hoje em dia não vejo isto em meus filhos.

Antonio e Cida nem saborearam o cachorro-quente. Saíram em disparada para casa acudir o menino.

- A culpada é você. Eu nem queria sair de casa. - Dizia Antonio.

- Olha, deixa de coisa e anda homem. Deixa pra brigar depois. – Respondeu Cida aflita.

Quando chegaram na porta de casa, nada escutaram.

- Ôxe Antonio, não escuto nenhum choro.

- Será que seu Antonio Manuel não escutou demais? Deve ser a idade.

- Vai homem. Abre essa porta. Vamos logo com isso.

Antonio botou a chave na fechadura e logo rodou a maçaneta e a porta se abriu.

Foram direto para a rede na sala.

- Antonio pelo amor de Deus. Roubaram nosso filho.

- Mas como mulher, a porta tava fechada e não tem ninguém dentro de casa.

- Mas, olha homem. O menino não está aqui.

Cida começou a chorar desesperada. Agonia, medo, remorso, tudo junto.

Antonio foi à cozinha, verificou a porta. Estava fechada. As janelas da sala, fechadas.

Só faltava o quarto. Correu pra lá.

- Cida, corre aqui, depressa.

E Cida, desesperada, nem sentiu quando rasgou o vestido na passagem pela porta do quarto.

Quando olhou para Antonio, viu no seu semblante um sorriso misturado de alegria e espanto.

- Olha mulher, ele ta aqui no berço, dormindo. Mas como pode? Ele tava dormindo na rede na sala. Como veio parar aqui?

O pequeno José dormia, ainda anestesiado pelo néctar dos deuses.

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Trinta e cinco anos se passaram. José não era mais um menino. Homem feito. Formado em Direito. Um doutor.

Estava separado da mulher com quem tinha três filhos. Passava por sérios conflitos existenciais. As velhas questões que assolam a cabeça de todo homem que sai de um casamento que não deu certo:

“O problema deve ser comigo. Eu falhei. Não soube segurar meu casamento. E os meus filhos? Coitadinhos. Vão sofrer muito com a minha ausência. Mas vou dar a volta por cima. Se Deus quiser”.

- Olá Doutor José! Como tem passado? Lembra de mim? Sou o Afrânio. Estudamos juntos lá no Colégio Diocesano de Caruaru. Soube que se formou em Direito. Parabéns. Realizou o seu sonho.

E José, como que apanhado em flagrante na sua intimidade, respondeu um pouco sem graça.

- Claro que me lembro amigo. Como vai você?

- Vou bem. Estou casado – essa resposta é corriqueira. Para mostrarmos aos outros que estamos bem, a primeira coisa que dizemos é que estamos casados – e tenho dois filhos. Um casal.

- Que bom Afrânio. Fico feliz por você.

- E você amigo? Soube também que casou. Quantos filhos têm?

- Eu tenho três filhos. Faz dois meses que me separei da Sonia.

- Que pena. Você me parece um pouco abatido.

- Não é para menos. Ainda estou me acostumando com a vida de solteiro de novo.

- Tenha fé meu irmão. Nos momentos difíceis e de dor o amparo do alto nunca deixa de nos socorrer.

- Você parece que se tornou evangélico?

- Não. Façamos o seguinte. Eu convido você para ir lá em casa na quarta-feira, à noite. Nesses dias, fazemos uma reunião com vários amigos. Compareça, vai ser bom para você.

- Não sei amigo, tenho meus compromissos. E a noite é o melhor momento para analisar os processos dos meus clientes.

- Amigo, tenha força de vontade. Faça um esforço. Somos velhos amigos e nosso encontro não foi mera coincidência. Confie. Anote o meu endereço.

E José, como que sem saber o que fazia, anotou o endereço e se despediu do amigo.

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Quarta-feira. José nesse dia não acordou angustiado. Dormiu bem. Deu tudo certo no fórum. Recebeu até os honorários de um cliente que fazia um ano que estava sumido. Anoiteceu.

“Eu acho que vou à casa do Afrânio. Prometi a ele e é aqui perto. E se for daqueles encontros de fanáticos religiosos? Tem nada não.Eu entro, o cumprimento e vou logo embora. Ah! Tenho mais o que fazer”. Pensava

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- É aqui.

Parou o carro. Fechou a porta. Ligou o alarme. Voltou. Para re-confirmar se estava trancada a porta. Afinal, as coisas não estão fáceis hoje.

- Bora, bora. Vamo lá. Passa o relógio. Carteira. Bora, bora porra. Ligeiro, senão meto-lhe uma bala na cara.

Era um assalto. José ficou ali, parado, obedecia tudo que o bandido mandava automaticamente. Quando caiu em si, o ladrão já tinha ido embora. Deu-lhe uma tremedeira nas pernas e ele encostou-se no carro para não cair.

De repente, ouviu uma voz chamando seu nome.

- José, não fique ai parado! Venha, vamos entrar. Já vamos começar a reunião.

“Reunião? Que reunião que nada. Vou embora. Esse lugar deu-me má sorte”. Pensava.

- O que houve amigo? Estás pálido do jeito que te encontrei da última vez.

- Você não viu? Acabei de ser assaltado!

- Agora? Não é comum isto por aqui. Venha, vamos entrar e tomar um pouco de água.

E lá foi José acompanhado por Afrânio.

- Marilda, venha ajudar-me, por favor.

E saiu pela porta uma mulher morena, com os cabelos pretos e longos.

- O que aconteceu Afrânio?

- Este é o José, de quem te falei. Acabou de ser assaltado na frente da nossa casa.

- Coitado. Venha, entre. Você está muito abatido. Sente-se um pouco.

A casa de Afrânio era simples, mas muito aconchegante. Tinham cerca de trinta pessoas espalhadas pela sala. Algumas sentadas. Outras em pé, conversando. Mas todas olharam para José quando ele entrou com o Afrânio e a Marilda.

- Tome amigo. Beba esta água. Vai te fazer bem. Daqui a pouco começa a reunião e você vai se sentir melhor.

José estava tão entorpecido pelo episódio que ocorrera com ele que nem respondia. Ficou o tempo todo calado. Com os olhos tristes.

“O que estou fazendo aqui? Fui assaltado. Levaram meus pertences e quase perco a minha vida. Maldita hora que vim parar aqui!”. Pensava.

Logo, Afrânio pediu silencio aos presentes e anunciou que a reunião ia começar.

- Vamos todos fazer uma prece ao Pai maior, pedindo harmonia e paz para o nosso encontro de hoje.

E todos silenciaram e Marilda fez a prece. Depois de alguns minutos, Uma senhora que estava sentada em uma poltrona, perto da porta de entrada da cozinha, se levantou e disse:

- Para quem ainda não me conhece, meu nome é Mirtes. Hoje, com a permissão de Jesus, vou dirigir essa reunião. Vamos todos fechar os olhos e orar pedindo a presença dos mentores espirituais que estão aqui presentes.

“Uma sessão espírita? Era o que me faltava. Vou esperar um pouco para não ser mal-educado e vou embora”. Pensava José.

De repente, a Mirtes com os olhos fechados, concentrada, em pé, tombou a cabeça para frente e abriu os olhos.

- Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo!

- Para sempre seja louvado! - Responderam todos.

- Que a paz de Deus esteja com todos nesta casa.

- Graças a Deus! – Responderam todos novamente.

E começou a sessão. A Mirtes, agora “incorporada” com um espírito, sentou em uma cadeira e começou a atender as pessoas.

- Afrânio, me desculpe amigo, mas eu não acredito em espiritismo, sou católico e vou embora. Perdoe-me, mas não estou sentindo-me bem e outro dia virei a sua casa com mais calma para conversarmos.

- Calma amigo. Agüente um pouco. Não demora e você vai conversar com Pai João. Depois, se sentirá melhor.

- Pai quem?

- Pai João D’angola. Um espírito de um preto-velho, muito bondoso e que faz caridade para quem o procura.

- Fala sério Afrânio! Agora é que vou mesmo embora.

- O rapaz que está ai na porta, de camisa azul. Pai João o está chamando. – Disse uma moça que cuidava da fila para chegar até o Pai João.

- Sou eu, Afrânio?

- Sim, é você José. Vá lá. Aproveite.

José foi caminhando devagar. Não sabia como estava indo. Foi chegando perto, mais perto, até que a Mirtes ou o Pai João, segurou a mão dele e o fez sentar.

- Calma meu filho. Fique tranqüilo. Há quanto tempo não nos vemos né?

Surpreso, José respondeu:

- O senhor me conhece? De onde?

- Sim, meu filho o conheço sim.

O Pai João deu uma pausa e continuou:

- Nessa vida, meu filho, eu o conheço desde o dia em que você estava chorando na rede quando era bem pequenininho e eu o tirei com os meus braços e o coloquei no berço para você se acalmar.

José sentiu um calafrio tomando-lhe o corpo. Os pelo se eriçaram e ele começou a chorar.

Como que por encanto, José se descontraiu e falou todas as mágoas que tinha dentro de si ao preto-velho Pai João e, como velhos amigos, conversaram e riram até tarde da noite.

Hoje, José divide o seu tempo atendendo como advogado em seu escritório durante o dia e as noites de terças-feiras e sábados atende como o médium José de Ogum, na Tenda Espírita de Umbanda Pai João D’angola, a todos os necessitados de paz e harmonia em seu ser.

EMERSON DANDA
Enviado por EMERSON DANDA em 22/07/2005
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