O observador
Era tudo uma questão de tempo. Já fazia horas que eu estava ali naquela janela. Talvez procurasse alguma coisa, mas o olhar era perdido no tempo. A ja-nela dava para um jardim abandonado, e eu via os répteis escamoteando-se entre as folhagens secas, arrodeadas de mato que cresciam em desalinho. Observava tudo despretensiosamente. Vez ou outra passavam crianças barulhentas e riso-nhas, quando não – pessoas apressadas. Mais a frente um muro estiolado, ferido de tempo e abandono, cuja pintura sangrava nódoas escuras causadas pelas últi-mas chuvas tão freqüentes naquela época. À esquerda prédios de apartamento igualmente decadentes cortavam agressivamente a paisagem deixando apenas um cubículo de céu azul acinzentado e tinto do vermelho fosco do final da tarde. “Em breve seria noite”, sentia sem pensar, “e então estariam cobertas as vergonhas daquele lugar despido ou mal vestido”.
Mas, em verdade, quando caía a noite, outra nudez se expunha: a das pu-tas. Encostadas nos muros, poder-se-ia imaginar que brotavam naquele jardim de flores mortas, elas mesmas mais mortas do que vivas. Quem por ali passava co-lhia-as sem o zelo do jardineiro que tencionasse fazer um arranjo floral. Muitas vezes me pus ali à janela observando também aquele comércio. Mas agora ainda não era noite, muito embora suas sombras ameaçadoras já lançassem seus tentá-culos aqui e ali, como se um artista sem inspiração que pretendesse desmanchar (ou manchar) uma imagem que se fizera inútil.
Eu já residia ali há pelo menos dois anos, desde que abandonara a casa ma-terna com a intenção de fazer uma faculdade. Sem emprego, dependendo de favo-res e trabalhos esporádicos, além de não dispor de certa pertinácia moral, acabei por abandonar o curso de publicidade. Passava as tardes ociosas contemplando aquele canto de muro quando não era chamado para um outro trabalho pela vizi-nhança sedenta de caridade. Via naquela sobrevivência passiva e inútil o meu próprio reflexo, como se fosse aquele muro um espelho opaco, único capaz de refletir a minha efígie. Tanto quanto ao muro, o mato crescia ao meu redor, figura que quando me ocorria lembrava-me da “Linda rosa juvenil”, um brinquedo de roda de minha infância, que, em outras tardes, quando ainda amparado pelo con-forto de minha mãe, enchia-me de atividade e alegria.
A linda rosa juvenil, juvenil, juvenil
A linda rosa juvenil, juvenil
Vivia alegre no seu lar, no seu lar, no seu lar
Vivia alegre no seu lar, no seu lar
Um dia veio uma bruxa má, muito má, muito má
Um dia veio uma bruxa má, muito má
Que adormeceu a rosa assim, bem assim, bem assim
Que adormeceu a rosa assim, bem assim
O tempo passou a correr, a correr, a correr
O tempo passou a correr, a correr
E o mato cresceu ao redor, ao redor, ao redor
E o mato cresceu ao redor, ao redor
Um dia veio um belo rei, belo rei, belo rei
Um dia veio um belo rei, belo rei
E despertou a rosa assim, bem assim, bem assim
E despertou a rosa assim, bem assim.
Mas nessa tarde eu sabia que não era uma rosa e minha juventude já me escapava entre os dedos. Também não haveria uma bruxa má que malsinasse o meu destino. E, se houvesse, teria eu mesmo sido a minha bruxa má? Restava apenas o mato a crescer em torno de mim e eu a fincar cada vez mais os pés como raízes naquela decadência. Tampouco esperava o salvador que me erguesse do chão lançando-me aos ares de uma vida vívida, apenas contemplava o muro se-guindo o fluxo sanguíneo daquelas recordações, pois ainda não me movera o de-sejo de esquecer como a única salvação.
Enquanto isso a tarde morria...
...e o ocaso, como a câmara escura de um fotógrafo, mostrava em negati-vos as manchas do muro com maior nitidez. Foi quando finalmente o vi. Aos o-lhos não iniciados nem conhecedores de todas as nuanças daquela parede erguida sobre um jardim, talvez não passasse de mais uma mancha. Mas não a mim. Eu era o observador daquele muro. Era minha arte e meu ofício. Fora capaz de ver todos os seus contornos: era a figura de um homem igualmente a contemplar-me. Eu via nitidamente seus olhos escuros e sombrios e o bigode pesando sobre os lábios finos. Ele me olhava. Não sei há quanto tempo, desde quando chegara, mas estava ali.
Havia algo de ameaçador em sua presença, como se a me censurar não sei se a inércia ou o fato de olhá-lo há tanto tempo sem percebê-lo. Não fosse por já me ter desfeito de toda crença e superstição, esvaziando o espírito tanto quanto o corpo, muito bem poderia tomá-lo por uma presença maligna, tão forte era a im-pressão que me causava. Quisera escapar-lhe ao olhar, fugindo da janela, mas sequer podia desviar-me de vê-lo, tamanha era a sua força magnética.
Olhei-o!
Foi quando me arrebatou o segundo susto, afundando o chão sob meus pés. Olhos nos olhos, não restava dúvida: era eu mesmo o observador gravado naquele muro. Eu era aquele demônio inerte e vivo. Petrificado, petrificava-me como a Medusa. Devorávamo-nos mutuamente – com a diferença de que era em mim que os efeitos nocivos do olhar fincavam suas raízes. Não sei por quanto tempo fui tragado por aquela imagem no espelho. Sei que a descida aos infernos cega o homem. E de lá só se escapa de olhos vendados sem olhar para trás, do contrário ficaremos presos em nossa própria imagem refletida. Quando todo o muro fora coberto pela sépia da noite e minha mancha se unificara a todas as de-mais, corri, mais desamparado que Orfeu sem sua Eurídice, pois sequer a música restava a consolar-me. Sentia a minha alma devassada e em carne viva. E como em pouquíssimas vezes me ocorrera, eu chorei até tornar o sol.
No dia seguinte desfiz-me das poucas coisas e parti. Nunca mais passei naqueles arredores, mas trago em mim a mácula daquela imagem. Grafada em minha memória, ainda hoje busco desfazer-me de seus tentáculos, mas sei que o demônio mora em mim...
...como esquecê-lo?