Requinte
Requinte
Sentia-se inspirado esta noite. Aprontou-se com apuro. O espelho devolveu-lhe a imagem perfeita em black-tie. Com um sorriso sensual, passou a mão pelos cabelos e, cantarolando, desceu as escadarias.
O imenso salão do castelo estava primorosamente arranjado, com flores e velas entre fugazes cortinas e espessos tapetes. A grande mesa ao centro, bem preparada.
Deixou a rubra taça sobre o aparador. Um gole lhe bastava.
Sentou-se no único lugar, a ele destinado, bem em frente à imensa salva de prata ao centro da mesa. E, ajeitando o guardanapo de linho branco, com elegante gesto, destampou-a.
Delicioso aroma flamejou-lhe as narinas. Maravilhou-se com o refinamento do cardápio. Entre perfeitas cerejas, cachos de uva, alguns dourados pêssegos afundados em ninhos de fios de ovos e salpicados fígados de pombos, estava a mais delicada iguaria que já lhe fora servida: esplêndida mulher jazia em repouso, apenas coberta a pele de marfim por seus cabelos de ébano.
Educadamente, secou os lábios de vinho e iniciou o ritual do banquete.
Com sábias mãos, percorreu o macio corpo, sentindo que seu calor atingia, assim, quase a elevada temperatura desejável. Envolveu os seios com mãos conhecedoras. Não resistiu, fugiu a todas as regras de etiqueta: provou-os com leves mordidas. E como a carnuda boca o tentasse também, lambeu-a e explorou-a por dentro.
Ao discreto pigarrear do mordomo que entrava, caiu em si. E, de faces coradas pelo deslize, ou talvez, pelo apetite, com finos gestos, tomou dos talheres de prata.
Abriu-lhe delicadamente o peito e devorou-lhe o coração, com tanta elegância que, sequer um pingo de sangue lhe comprometeu a bem aparada barba azul.
(do livro Rituais, 1997. Belo Horizonte / MG)