A LENDA DA PEPITA GIGANTE
A população de Vila do Ouro – ou o que restara dela - já havia se acostumado com o som tonitruante que se propagava todos os dias até os últimos limites do povoado desde que um forasteiro ali aportara, adquirira terras e passara a construir, sozinho, sua própria morada.
O som, um martelar compassado e vigoroso cortava o meio-dia escaldante.
A princípio, a construção do destemido invasor destoava em agudo contraste com os projetos rústicos dos casebres dominantes naquela paisagem agreste, o que causava espanto e admiração aos moradores do lugar.
Extraído de uma novela de Jack London, o intruso tinha um aspecto de lobo-do-mar e demonstrara uma força descomunal no soerguimento dos pesados materiais utilizados em sua prodigiosa obra. Recusava o auxílio daqueles que se ofereciam a ajudá-lo, agradecendo, todavia, a gentileza, exibindo como cortesia um sorriso laranja, fruto do contumaz hábito de fumar cachimbo. Atraíra o amor interesseiro dos gatos em virtude do cheiro cotidiano de peixe que exalava da propriedade ao cair da tarde, elegendo-os – e os bichanos a ele - como a únicos e devotados companheiros.
De onde quer que houvesse saído o inusitado ser, não fazia sentido algum sua presença em Vila do Ouro, um ponto equidistante, perdido nos confins do deserto, onde lagartos e homens dividiam o ambiente com escorpiões e cactos.
Os subterrâneos onde antes continha o ouro que batizava o vilarejo haviam sido esvaziados muitos anos atrás e o lugar fora abandonado quase completamente pelos exploradores. A cobiça atraíra muitos aventureiros ao local logo após a descoberta do minério, mas agora, a paisagem apresentava-se retumbantemente inóspita. À época, a atividade mineradora fora dividida em duas formas de extração, a lavra e a faiscação. A lavra se retirava da jazida assim que não havia mais metais preciosos o suficiente para render um bom retorno econômico, deixando o restante para a faiscação, que era feita por mineradores menores, justamente àqueles que ficaram e que ainda fustigavam a terra em busca de depósitos que passaram despercebidos pela fúria dos antigos conquistadores. Os remanescentes também permaneceram em Vila do Ouro motivados por uma antiga lenda do lugar que falava da existência de uma pepita gigante adormecida em algum ponto daquelas montanhas íngremes.
Os aldeões não reuniam coragem para interpelar o novo vizinho em quaisquer outros assuntos, sobretudo depois de sua curiosidade ter sido repelida drasticamente e, então, não lhes restava fazer outra coisa a não ser assimilarem-no ao cenário, embora sua fantástica construção causasse contínua surpresa e inquietação entre aqueles homens rudes.
Ainda estavam para ver, contudo, algo muito mais impressionante.
Poderia o homem ter erigido seu solar à beira-mar, onde decerto contemplaria as velas esvoaçantes das embarcações no oceano, mas estava tão distante da orla marítima quanto os esquimós estão para as tribos nômades do Saara. Dir-se-ia mesmo que sua indumentária soava inadequada ao estereótipo do século XX e, pra dizer a verdade, não se ouvira dele uma palavra inteligível sequer que fosse compatível com o vocabulário usual da população local. A estranha figura era como uma miragem no ermo desalentador.
À medida em que os dias se sobrepujavam uns aos outros, o ruído dos afazeres do homem fizera-se mais intenso, dando a entender que ele estivesse a correr contra o tempo. Ao cabo de algumas semanas poderia se distinguir algo como uma torre de vigia, mas não se chegou a nenhuma conclusão a respeito. A urgência nervosa da atividade infernal percorria os ouvidos e singrava os espíritos atormentados da vizinhança, à essa já altura bastante familiarizada com a labuta insólita do seu hércules provinciano.
No meio de uma determinada noite, porém, o inquietante barulho cessou, abruptamente.
Ao romper da aurora, os primeiros raios do sol violeta finalmente revelaram a estupenda criação: um imponente farol que lançava luzes incandescentes aos recônditos mais inacessíveis do deserto aterrorizava os mochos e as serpentes, que já não mais distinguiam o dia da noite nem a morte da solidão. Tratava-se de uma réplica da admirável invenção do rei Ptolomeu II, projetada pelo fabuloso arquiteto grego Sostratus de Cnidos, a saber, o Farol de Alexandria, uma das maravilhas do Mundo Antigo.
O herói, ao que parece, despencara do alto de sua torre, pois jazia estatelado ao solo, junto às pedras de granito, mármore, resina e calcário remanescentes de sua elaborada construção. Sua ferramenta ao lado nadava em um rio de sangue.
Horas depois, soube-se entretanto que fora assassinado por uma conspiração cujo intuito seria o de assenhorear-se do ouro que julgavam ter o estrangeiro encontrado – a pepita gigante talvez.
Antes que os conspiradores se refizessem da assombrosa visão, foram impiedosamente tragados por uma gigantesca embarcação fenícia tripulada pelos marinheiros perdidos de Necho, o faraó egípcio para o qual serviam, desbravando turbulentos mares em busca de ouro e metais preciosos para a eminente realeza. Irrompendo violentamente através de um portal do tempo, a barcaça espatifara-se sobre o povoado, pulverizando a todos os que ali se encontravam. O farol fora construído para detê-la, mas o faroleiro havia sido morto prematuramente.
Os poucos sobreviventes enlouqueceram progressivamente e morreram logo em seguida, pois era absolutamente impossível compreender e viver ao mesmo tempo com tão assustador e fantástico acontecimento.
Dizem que atualmente só lagartos habitam a região, compartilhando-a com escorpiões e cactos.
A pepita gigante jamais foi encontrada. Contudo, continua a agitar a cobiça na alma intrigante dos homens.