O escritório
O ESCRITÓRIO
O começo é a parte mais difícil do trabalho.
Platão
José Cipriano sentiu que aquele era o seu dia. Ainda não eram nem seis horas, mas a ansiedade não o deixava dormir... Olhou pela janela, ainda estava escuro. Sono? Nenhum, apesar de não ter pregado o olho a noite inteira... Ouviu uns cachorros latindo bem longe e, também, o barulho do caminhão de lixo. Esqueci de tirar o lixo de novo, pensou.
Levantou. Ligou o chuveiro bem quente e o rádio bem baixinho – era muito cedo e não queria incomodar ninguém. “O trânsito promete estar complicado hoje, a crise provocou mais demissões na região da capital, cinco morrem em confronto”. O mesmo de sempre. Desligou o rádio. Afinal, o que os ouvidos não ouvem, o coração não sente...
Pela janelinha do banheiro já dava para ver que estava clareando. Fez a barba, escovou os dentes, cortou as unhas. Era o seu dia. Pegou a melhor camisa, os sapatos perfeitamente engraxados e o terno mais bem passado. Vestiu. O cinto, combinando com os sapatos, é claro. A gravata, a da sorte; aquela do Natal de 2006.
Quando saiu do apartamento, o sol já começava a dar sinal de vida. Desceu pelas escadas para ir mais rápido. O seu Naziazeno, o porteiro, cochilava como sempre.
- Bom dia, seu Naziazeno!
- Bom dia, seu José!
O pobre do homem quase caiu da cadeira. Normalmente, José Cipriano se esgueirava para não perturbá-lo. Mas hoje, não. Ele tinha que ser visto. Todos tinham de vê-lo. Desceu a rua cantando. Como será o amanhã? Responda quem puder...
A padaria já estava lotada. Sem problemas. O seu Luís – Luís da Silva, o dono da padaria, um sujeito grandalhão e sempre muito animado – trouxe logo o café e o pão, bem clarinho e com muita manteiga. Já sabia de cor, afinal, servia-lhe todos os dias.
- Bom dia, seu Luís!
- Bom dia, seu José!
Comeu mais rápido que o normal. Estava quase na hora do ônibus. Pagou, despediu-se do seu Luís e foi para o ponto. Na hora certa; em menos de cinco minutos o 138 apontou na esquina. O ônibus estava bem cheio. José Cipriano pagou a passagem e, em pé, encostou próximo a uma janela. Aquela gente toda lhe dava uma tremenda falta de ar...
No caminho para o centro da cidade foi pensando em como as coisas haviam mudado. Desde o dia em que vira o anúncio no jornal, até a entrevista, foi tudo muito rápido. “Empresa no ramo do conhecimento contrata. Homens entre 25 e 45 anos, com formação superior na área das ciências humanas e fluentes em, ao menos, duas línguas estrangeiras, devem se dirigir, no dia oito, entre doze e dezoito horas, ao saguão do Edifício Gabriela Horcades, situado à Rua das Orquídeas, número 425. O candidato deve ter disponibilidade para viajar. Favor levar documentos pessoais, originais e cópias, e, também, duas cópias do currículo”. Em um primeiro momento, achou o anúncio um pouco estranho. Empresa no ramo do conhecimento, pensou, que será isso? E também não falava duas línguas estrangeiras; o francês tudo bem, mas o inglês... bem, tentaria o espanhol... Não dava para pensar demais, já eram quase dois anos na rua. Classificados na mão, um monte de entrevistas, uns bicos para pagar as contas. Quem sabe era a hora.
Achou a entrevista ainda mais estranha...
- Documentos e cópias do currículo?
- Pronto.
- Pode viajar?
- Sim, claro.
- Tem família?
- Tenho, mas não mora comigo. Mãe, dois irm...
- Mora sozinho?
- Sim.
- No final do dia, colocaremos a lista com os contratados ali naquele vidro.
- Obrigado.
- Até mais e boa sorte.
Esperou por ali mesmo. Faltavam pouco mais de duas horas para o fim do horário. Comprou um jornal e ficou lendo em uma praça que ficava na esquina da rua onde ficava o edifício com uma grande avenida. Mais de uma hora depois, a fome bateu e resolveu comer alguma coisa em uma lanchonete que ficava logo em frente.
Distraído, quase não viu que o ponto estava chegando. Deu o sinal e com muita dificuldade desceu. Atravessou a rua e virou na primeira esquina. O prédio era o maior de todos. Nunca antes havia entrado lá. Quando viu seu nome na lista, nem precisou anotar o endereço da firma. Qualquer um na cidade sabia onde ficava o gigantesco Edifício Atena. Ficou pensando no porquê da entrevista ter sido em um lugar diferente da sede da empresa. Bem, e daí? O que ele tinha a ver com isso?
Por dentro o prédio parecia ainda maior. Só o saguão de entrada já ganhava da garagem do seu condomínio. Um enorme painel luminoso à esquerda continha o nome e a localização de todas as firmas, companhias, agências e instituições encontradas no Atena. Estava lá: Kendricks and Fitzgerald Knowledge Association, 22º andar. Será que era o 22º andar inteiro? No centro do saguão, em um balcão circular todo prateado, ficavam umas atendentes muito sorridentes e solícitas; um pouco artificiais, é verdade, mas, de qualquer forma, sorridentes e solícitas. Como José Cipriano não conseguia ver onde estavam os elevadores, resolveu perguntar:
- Bom dia!
- Bom dia!
- Como eu faço para subir?
- Para qual o andar o senhor quer estar indo?
- 22º...
- O senhor vai estar apenas visitando ou é permanente?
- Sei lá, acho que permanente. É que eu fui contratado pela firma do 22º.
- Ah, sim! O senhor é contratado da Kendricks! Que bom...
- É...
- Perfeitamente. O senhor pode estar deixando seu documento de identificação aqui comigo que eu já vou estar providenciando a sua inserção em nosso cadastro.
- ...
- Só um minuto, por favor... só um minuto, por favor... pronto! Agora o senhor pode estar fazendo o seguinte: vá até aquela porta maior e vire para a direita. O senhor vai estar vendo um corredor muito grande. Vá até o final dele; o elevador panorâmico para os andares pares fica lá. Não se assuste, os seguranças vão te revistar antes de você estar subindo no elevador. OK?
- Tudo certo, obrigado.
- Por nada... Bom trabalho!
A mocinha era mesmo prestativa, pensou, meio chata, mas prestativa. Foi até a tal porta e logo viu o corredor. Era grande mesmo. E tinha muita gente transitando por ele. Passou rapidamente por ali e logo viu o tal elevador. Era imponente. Mais, era grandioso... Os seguranças fizeram a revista. Após alguns minutos, a porta se abriu:
- Subindo.
Dava medo. Não eram só as paredes do elevador que eram transparentes, o chão também era... Ele subia bem vagarosamente. Devia ser para que quem estivesse dentro conseguisse, afinal, ver o que estava lá fora. E José Cipriano via; o estádio, o aeroporto, a prefeitura... E José Cipriano lembrava; o papel no vidro, 18:13 no relógio, finalmente, o fim do martírio: estava contratado! Até que enfim estava contratado! Só apareciam cinco nomes na lista; e ele estava lá! O segundo... No meio de tanta gente – devia ter mais de cem no dia da entrevista –, por fim, chegara a sua vez!
- Vigésimo segundo... Vigésimo segundo!
Distraído, não percebeu que havia chegado. Era o vigésimo segundo, o “seu” andar! Agradeceu e saiu. E ficou espantado. A tal firma era muito maior do que imaginava. Da porta do elevador, já se via a recepção. Dezenas de pessoas aguardavam – e outras dezenas as atendiam. Passando pela porta principal é que pôde ver melhor os detalhes: eram nada menos que vinte atendentes muito elegantes atendendo a todos; as pessoas retiravam uma senha em uma maquininha ao lado das mesas de atendimento e aguardavam em confortáveis poltronas revestidas por um belo veludo azul – com direito a cafezinho e Billie Holiday no som ambiente. No lado contrário ao das atendentes, havia um balcão com uma placa reluzente onde se lia “Conferências e demandas”, duas mesas enormes – sendo que em uma delas parecia estar havendo uma reunião –, e várias outras mesas menores ocupadas por rapazes, também muito elegantes, com seus computadores. O chão era coberto por um bonito carpete vermelho e pelas imensas janelas da recepção voltava-se a ver a cidade. Entre as moças bem vestidas e os rapazes alinhados, via-se uma outra porta, idêntica à da entrada. No centro do ambiente, um espantoso lustre dourado em forma de esfera pendia do teto. Em tudo lia-se Kendricks and Fitzgerald Knowledge Association.
A questão era o que fazer? Com quem deveria falar? Para onde ir? Lembrou-se, mais uma vez, da lista: “Aviso aos contratados. Comparecer no dia vinte desse mês, 8 horas, na sede da empresa. Levar os documentos pessoais. Favor comparecer adequadamente trajado(a). Endereço: Edifício At...”
- Pois não?
Um rapaz alto, ligeiramente calvo, vestindo um grosso terno preto, aproximou-se; educadamente, repetiu:
- Pois não?
- Bom dia, eu fui contrat...
- Ah, sim! Perfeitamente! Você está entre os novos contratados, não é mesmo?
- É...
- Você está com o seu RG? Poderia deixá-lo comigo por uns instantes para que eu possa te registrar e, daí, providenciar um crachá?
- Claro. O que eu faço enquanto isso? Espero?
- Não, não precisa. Pode ir andando lá para a sua sala. Deixa eu ver aqui... Sua sala é a 79. Está vendo aquela outra porta ali? Diz para o rapaz que está tomando conta que você é código 6 e que você vai trabalhar no setor do Borges; seu nome está em uma lista com ele. Ele vai indicar para onde você tem de ir. Mais tarde eu deixo com você o seu RG e o seu crachá.
Foi até o tal rapaz e passou-lhe as informações necessárias:
- Sinta-se à vontade. Segue reto por aqui e sobe aquela escadinha lá no final. A sala 79 fica do lado direito do corredor lá de cima.
Mais um corredor. Mais uma escada. Mais gente compenetrada e elegante. Achou, do lado direito, a pequena placa, 79. Empurrou e a porta abriu. Foi um choque... Era o seu dia! A sala “dele” era espetacular! Uma bela mesa envernizada e uma grande cadeira cinza ficavam no lado contrário à porta; atrás delas uma enorme janela deixava ver, novamente, toda a cidade. O chão era todo coberto por um carpete igual ao da recepção e do teto pendia um lustre também igual ao de lá – em tamanho reduzido, é claro. Na “sua” mesa havia um computador bem moderno; no lado esquerdo da sala via-se uma pequena tela de plasma, um frigobar e uma mesinha com bebidas e uma cafeteira. No lado direito, um grande arquivo preto. Ao lado do arquivo, outra porta – devia ser a do banheiro. Entrou na sala. Em cima da mesa, um bonito letreiro mostrava: “José Cipriano Vidigal; administração de recursos intelectuais, acadêmicos e lógicos; Kendricks and Fitzgerald Knowledge Association”. Administração? Claro, pensou, não devia ser só ele. Devia ser o setor comandado pelo tal do Borges. O relógio em cima da mesa marcava nove e vinte e três. Que fazer? Decidiu sentar e esperar...
...
Passaram-se quase duas horas e nada acontecia. O relógio marcava onze e dez e já tinha lido todo o jornal. Resolveu usar o sistema de comunicação interno. Teclou 0, “informações”:
- Olá...
- Pois não?
- Desculpa, eu me enganei...
Afinal, falaria o quê? “Oi, eu fui contratado hoje”. Bobagem, já estava com fome. Depois do almoço pensaria melhor...
...
Não viu o rapaz calvo. Deveria, naquela hora, ter perguntado o nome dele. Perguntou para o rapaz que tomava conta da porta que dava acesso às salas:
- Como eu faço para falar com o Borges?
- Com o Doutor Borges?
- É...
- Viajando, não volta tão cedo. Parece que está na Europa.
- Obrigado...
De volta à sua sala, resolveu ligar o computador. Inútil. Na tela toda escura, pedia-se uma senha. Decidiu, então, vasculhar o arquivo. Eram cinco grandes gavetas: “Dilapidações e mandatários”, “Articulações e numerários”, “Posturas, análises e gráficos”, “Trabalhos acadêmicos” e “Formulários, fichamentos e resumos”. As gavetas estavam repletas de pastas numeradas. Abriu uma delas. Um monte de papéis em francês... Tinha, também, umas fotos. Um moço – parecia ter uns vinte e poucos anos – muito branco, com cabelos compridos e uma barba espessa, aparecia em todas. A pasta devia ser relacionada a ele. Procurou um nome, mas não achou. Nas outras pastas, a mesma coisa. Muitas fotos, papéis em francês – e em espanhol –, nada de nomes. Que fazer?
...
Ia passando rapidamente pela porta que dava acesso às salas:
- Ei!
- Oi, desculpa...
- O pessoal do RH deixou o seu RG e o seu crachá aqui.
- Ah, obrigado... Até amanhã...
- Até amanhã.
...
Que fazer? Trinta e oito dias se passaram... Nada do Doutor Borges, nem do rapaz calvo. O computador agora funcionava – a senha lhe fora passada pelas moças do saguão de entrada –, mas, também, não ajudava em nada. Dia após dia, mais e mais papéis chegavam; numerários, análises, gráficos, formulários... A mocinha – parece que se chamava Inês – vinha todos os dias renovar o estoque do frigobar. Os jornais já estavam na mesa assim que chegava, pela manhã.
Fez um café bem quente e sentou. Ficou olhando para o lustre redondo e reluzente. Que fazer, pensou.