Reclusão voluntária

Lá estava ele, sempre no mesmo horário religiosamente sério e ensimesmado.

Um banco de praça vagabundo solícito autruísta convidando ao passatempo despreocupado, o flamboyant majestoso acompanhando passo a passo o seu trabalho requintado, as flores da estação recebendo seu carinhoso afago, as tagarelices dos pássaros saltitando entre as ramagens, o coreto saudoso mergulhado em nostalgia, os transeuntes com seus fardos nas costas e seus respectivos pesos a que tinham direito por merecimento ou por decisão penal aplicada em decorrência de descumprimento de obrigações de natureza culposa, as moças bem trajadas no vigor da jovialidade em olhares furtivos e amorosos aos seus pretendentes desempregados, os velhos desocupados embaralhando seus baralhos ordinários e trapaceiros, os girassóis amarelados brincando de girar feito baratas tontas sob o sol brilhante mesmo em tempo chuvoso, o alvoroço dos alunos retornando do ensino improdutivo e alienante, o sino no campanário convidando os fiéis ao sermão da tarde proferido pelo sacerdote convertido sumariamente num autêntico ateista abstrato abatido pela total descrença nas escrituras sagradas após a leitura sem autorização superior da Lenda do Grande Inquisidor de Dostoievski, as senhoras linguarudas carpideiras vomitando seus venenos e suas lágrimas nos velórios e etc etc e tal.

Enfim, o mundaréu de gente vidas e coisas acima reportadas, direta ou indiretamente eram nobres conhecidos daquelas mãos franzinas, delicadas, calejadas também, robustas e silenciosas imbuídas na dedicação profunda do ofício da jardinagem.

Daqueles cabelos esbranquiçados, além do domicílio que resumia num mocambo sem eira nem beira localizado na travessa das misérias, era tudo que se sabia. De resto inferia-se. Diziam que a pobre alma dividia a vida com a amiga e inseparável companheira solidão.

Pois bem. O sujeito edificou um abrigo confortável ao longo da jornada. Eu explico. Estou me referindo a sua moradia interna de foro íntimo, não a que ele residia na travessa das misérias.

Continuando. Tijolos por tijolos assentados com exímia proficiência de dentro para fora com determinação ferrenha e suficiente esmero, bem respaldados sobre um alicerce sólido.

Na medida em que o refúgio desenvolvia tomando forma de um hermético bangalô amargo, obstinadamente o jardineiro tratou de reunir os elementos e objetos necessários para uma temporada indefinida, porquanto, ao que se tem notícias, segundo seus planos o edifício não comportaria porta de entrada e obviamente nem porta de saída emergencial. Não tenho certeza se obviamente.

No casulo solitário projetou somente uma pequena janela envidraçada observatória na qual lhe seria possível quando muito, olhar o movimento lá fora sem ser visto. Com a conclusão da obra, fixou a idéia renitente de viver o restante de seus dias afastado de todos que lhe trouxera aflição, angústia, dissabor, cansaço e decepção durante a existência. Entendidos nesse contexto, os laços de família que no seu entender já eram mancos naturalmente, as amizades que não cultivou e adubou na temperatura propícia ao solo como fazia com as plantas sob suas responsabilidades, o companheirismo evitado gratuitamente sem motivo aparente, qualquer outro tipo de convivência social, aliás convivência há muitos anos declinada, e sobretudo os amores que perdera por absurda negligência.

A indiferença tornou-se a causa que abraçou definitivamente e no seu âmago hasteou a bandeira da reclusão representando o latifúndio de um homem só sem pátria nem fronteiras. Por algum motivo a ele pertencente, a felicidade foi deixada esquecida em alguma encruzilhada no caminho.

No dia seguinte nada voltou ao seu lugar. A chuva chorou sofrida enlutada.

Se não contei tudo, foi tudo que eu pude contar, caro leitor.

Wagner de Oliveira
Enviado por Wagner de Oliveira em 30/03/2012
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