Noite de Massarol

Dias atrás recebi um e-mail do site “A Irmandade”, página que publica contos do gênero fantástico, horror, ect., convidando-me, gentilmente, a participar de um de seus concursos anuais, cujo tema, este ano é “Os fatos históricos importantes do Brasil sob a perspectiva fantástica” (para maiores informações consultem www.airmandade.net/desafio-literario/4o-desafio-marco2012.html) creio que o convite tenha-se devido à leitura, por parte de algum de seus idealizadores, do meu conto “A Mansão da Rue Lafayette”, publicado aqui. No referido conto, trato precisamente, embora dentro de uma perspectiva mais ampla, do tema no qual pretende focar-se o concurso. Participaria, sem dúvida, se no momento não estivesse ocupado com o projeto de um novo livro. O gênero fantástico e afins me interessa, certamente, apesar de já ter interessado mais “em meus anos mais juvenis e vulneráveis”, como diz o narrador de Scott Fitzgerald na abertura de “O Grande Gatsby”. Todavia, a maturidade nos torna mais introspectivos, mais ensimesmados, ou talvez mais ranzinzas, o que nos faz desconfiar da legitimidade daquilo a que se chama, nos círculos mais sofisticados e com evidente desdém, de “mera literatura de entretenimento”. Mas, pergunto agora, é possivel fazer uma literatura que, embora entretenha, como os gêneros fantástico, horror e policial sabem fazer, conduza ao mesmo tempo o leitor a outros patamares de fruição? Que não o abandone de mãos vazias e com o sentimento de culpa por ter perdido seu tempo quando virar a última página ou ler o último parágrafo na tela? Já foi feito, dirão. Lembremos de Edgar Allan Poe, de Horacio Quiroga, de Jorge Luis Borges, Garcia Marquez, H. G. Wells, Conan Doyle, Dino Buzzati, Leonid Andreiév. Mas acontece (eis aqui o segredo, a pedra filosofal) que esses autores estavam imbuídos de um espírito universalista e que, a despeito de se concentrarem, eventualmente, em determinado gênero, transcendiam a todos os gêneros. Como prova disso, cito uma pequena novela de Émile Zola, intitulada, “A Inundação”, que começa assim, despretensiosa, inocente, “Meu nome é Louis Roubieu. Tenho setenta anos e nasci da aldeia de Saint-Jory, a algumas léguas de Toulose, a montante do Garonne. Durante quatorze anos lutei com a terra para comer seu pão. Afinal veio a abastança, e no mês passado eu ainda era o fazendeiro mais rico da comuna...” Todos os aficcionados do terror (que procuram a emoção excitante e irreprizável do medo, o verdadeiro medo, ou quem sabe não), deveriam tratar de lê-la. E o mais curioso, como todos sabem, é que Zola não tinha nada de um Stephen King, por exemplo. Mas King nunca escreveu e jamais escreverá um relato tão assustador e com tamanhas implicações terrificantes quanto este de Zola, um escritor, já que estamos falando de gênero, naturalista, extremamente fiel à realidade, sem a mínima vocação ou interesse pelo sobrenatural. Isso dá o que pensar.

Segue mais um conto, este de “cor local”, constante de meu livro “A Mansão da Rue Lafayette”. Espero que apreciem.

– Basta, Vincenzo. Baaasssta! Uiiii!... Aqui! Ahhh!... Ai! Sta’fermo! Bruta bestia! Assim tu me destronca os peitos!

Com o braço, Vincenzo aparou a bofetada indignada. Mas até aí, tudo bem. Contava com o imprevisto de que aquela mão rechonchuda, do tamanho de uma tábua de polenta, mais dia menos dia, se atreveria a achar o caminho até a sua orelha. Ótimo. Preparara-se para aquilo. Apenas não contava com o golpe baixo de sua mui estimada cara-metade. – Uma joelhada violenta nos testículos o faz recuar dois passos, curvado sobre os colhões esmagados e despencar por sobre o corrimão de madeira da varanda, metro e meio abaixo, amassando uma moita de gravatás, e indo dar com a cara num monte de estrume fresco.

– Má, Vincenzo! Vincenzo! Vai, Giuseppe. Corre lá, que ele sufoca!

Gritou, alarmada, a futura sogra de Vincenzo, que passava naquele instante pela porteira. Trazia uma cesta repleta de uvas enganchada no braço.

Vincenzo, submisso, permitiu que Giuseppe o pusesse de pé.

– Como foi isso? O que te deu pra querer afundar as fussas na bosta! Hein, Vincenzo? – troçou o velho, estourando de tanto rir.

– Vê se me deixa ele em paz é, velho bobo. Escuta, bambino, tu tá bem? Não quebrou nada por aí, êco? – dizia a velha, enquanto apalpava Vincenzo para se certificar de que não havia nenhum osso quebrado.

Vincenzo cuspiu um pedaço de estrume e, com as costas da mão, limpou a boca. Nem por um segundo despregava os olhos da figura roliça de Giovanna. Se algum dia um olhar pudesse matar alguém, esse olhar certamente seria o de Vincenzo naquele momento. Sentia-se humilhado no mais alto grau, e para compensar seu dissabor, sentia que precisava fazer algo muito baixo. Agachou-se e, com a mão em concha, apanhou um grande punhado de esterco. Em seguida, tomou a mão de Giuseppe e depositou ali o estrume. Repetiu a manobra, desta vez com a velha.

Giuseppe e Jeni entreolharam-se, atarantados, sem entender nada daquilo.

– Não entenderam? Vá bene. Io explico. Isso daí, pra mim, é o que vale a filha de vocês due de hoje em diante. Um pedaço de bosta!

– Madonna! O que esse daí tá dizendo? E o noivado, Vincenzo! –exclamou a velha, aflita, observando Vincenzo, que atravessava o terreiro com passadas furiosas.

– Acabou-se o que era doce, isso que é. O desgraciato desistiu da tua Giovanna – explicou Giuseppe, lacônico, olhando para o bolo de estrume que tinha na mão.

– E tu, estrupício, vê se me cala a matraca, se não te arrebento. Io juro!

– Não me fala assim com a menina, estúpido. Repara que ela acabou de perder o noivo! – reagiu a velha, em defesa de Giovanna que, aos prantos, batia os pés e se descabelava histericamente feito uma criança mimada. A mãe apressou-se em ir consolá-la.

– É bem feito pra tu também, que não ensinou pra essa daí como se segura um uomo. Má Dío-sánto! Até o palerma do Vincenzo ela me botou pra correr. Esse daí, ela não pega mais. Nem a milho!... Porco zio! Má me observa aquilo!

Giuseppe apontava para a estrada, estupefato, vendo Vincenzo tirar de trás de uma taipa uma tosca geringonça de madeira, que fazia as vezes de uma bicicleta, na qual montou e se foi, estrada afora, com pedaladas vigorosas.

– E a mula! – exclamou Jeni, perplexa.

– Aquilo te parece uma mula, tonta! Má então é véro o que se comenta em toda colônia! O desgraciato não monta nem mesmo em terneiro! – berrou Giuseppe, a todo pulmão, para que Vincenzo o escutasse.

Os soluços de Giovanna redobraram, triplicaram. Desta vez inconsoláveis.

* * *

Escurecia. A sombra sob os parreirais, em ambos os lados do caminho, formava imensos túneis escuros. A estrada, com a restante luz do dia, dividia-os ao meio, como a dois exércitos no campo de batalha, antes do combate. Vincenzo procurava manter a atenção na estrada, evitando olhar para os parreirais, onde a densa escuridão parecia emanar de outro mundo. Tinha a insólita impressão de que a noite começava sob os vinhedos e que, só então, se espalhava para o restante da terra.

Vincenzo apressou o ritmo e só reduziu as pedaladas quando deixou para trás o último trecho de parreirais. Então parou no meio do caminho e foi lavar o estrume do rosto e das mãos numa vertente d’água, que minava da encosta da estrada.

– Madonamía! Tá ficando muito escuro. Mas ainda bem que até em casa não tem mais parreiral. Que sombra tremenda mora lá dentro deles! Mas nada mesmo me faria entrar debaixo de um desses, de noite... Hummm, tô fedendo. Vinha bem uma barra de sabão agora. Sacramento! Tô com a garganta seca – bafejou a palma da mão e a cheirou, fazendo uma careta. – Éca! Mas que bafo de onça! Foi a bosta que me entalou nos gorgomilos. A solução tá num bom vinho... Oh, mas a maledetta da Giovanna, aquela ainda me paga. Devia de ter arrancado os “ubres” da desgraciata. De uma vez!

Vincenzo enxugou as mãos nas calças. Montou na “bicicleta” e retomou seu caminho.

Era noite fechada agora. À distância, as luzes do pequeno vilarejo tremeluziam na escuridão como vaga-lumes estáticos.

Vincenzo se aproximou da entrada da vila, mas evitou percorrer suas ruas, optando antes por contorná-la, enveredando por uma ruela lateral, até desembocar novamente na estrada.

* * *

Um pouco afastada da vila, na curva do caminho, abrigada sob a sombra duns eucaliptos, ficava a bodega do seu Mattioda. Era um barracão de madeira avarandado, comprido e desconjuntado, mais parecido com um celeiro. No terreiro em frente, coberto por uma fina camada de cascalho, carros e pequenos caminhões estacionados dividiam espaço com carroças, cavalos e mulas.

Vincenzo, depois de esconder a bicicleta num matagal vizinho, dirigiu-se para a entrada.

Por ser noite de sábado, o lugar estava apinhado, fervilhando num verdadeiro escarcéu de risadas e imprecações. As mesas estavam tomadas; e, debruçados sobre elas, homens de variadas idades e vestimentas divertiam-se em jogar o truco, o quatrilho, o dominó, a canastra, etcétera, enquanto fumavam e davam compridos goles de vinho em copos grosseiros.

Vincenzo atravessou o tumulto e se achegou ao balcão. O bodegueiro o saudou na mesma hora.

– Salve, Vincenzo!... Má me explica. O que tu me faz aqui, numa noite de sábado. Não devia de ta lá, com a tua noiva?

– Noiva? Que noiva?

– Má qual! A Giovanna. A filha do Giuseppe Rizzi, ora essa!

– Ah, aquela outra! – fez Vincenzo, num muxoxo de menosprezo. – Deve de ta lá, se empanzinando de comida, feito uma porca.

O bodegueiro atraiu Vincenzo para mais perto.

– Me conta, é. Vocês brigaram?

– Justo. Dei uma sova na maledetta de dar dó.

Perto dali, numa mesa, um velhote cutucou com o cotovelo um rapaz, mais ou menos da idade de Vincenzo.

– Bepe. Aquele ali, aboletado com o bodegueiro, não é o Vincenzo, o noivo da tua irmã?

Bepe virou-se na cadeira e olhou na direção apontada.

– Vincenzo?... Êco! Má nôn é que é ele mesmo! – exclamou e, voltando-se para os companheiros de carteado, disse: – Com licença, per favore – depositou as cartas na mesa e se levantou.

– Pshiii! Fala baixo – aconselhou Mattioda. – Má é véro, jura?... Hummm, má que cheiro é esse? Parece estrume!

– Justo – confirmou Vincenzo. – Além da sova, io amassei a cara dela num monte de bosta.

– Tu fez o que com a Giovanna?! – Bepe interpelou, mais cuspindo que pronunciando as palavras, provocando com isso um clima de tensão na atmosfera descontraída do lugar. Os que estavam próximos e acompanhavam tudo, recuaram, na expectativa de uma briga; principalmente aqueles que conheciam o temperamento explosivo de Bepe.

O bodegueiro, adivinhando o desfecho, apressou-se em contemporizar, ainda mais porque não queria um tumulto em seu estabelecimento numa noite de considerável lucro para os negócios.

– Vê lá, Bepe. Io não quero nenhuma confusão por aqui. Se os dois querem brigar, má me vão lá pra fora, porco fumo. Senão me espantam a freguesia toda!

– Brigar? – tornou Bepe, no mesmo tom agressivo. – Má io vou é dar um beijo nesse maledetto!

Todos foram pegos de surpresa, vendo Bepe dar um sonoro beijo no rosto de seu amigo Vincenzo.

A tensão se desfez num segundo. Os que haviam recuado, receosos da pancadaria, aproximaram-se, curiosos. Bepe tomou o braço do amigo e o conduziu para uma mesa, aos fundos.

– Vem comigo. Tu vai me contar essa fábula direitinho... Ô, bodegueiro. Traz vinho. Má do bom, é! Não desse batizado, que tu tem escondido aí debaixo do balcão. E traz logo um garrafão.

– Porca miséria! Vocês me escutaram isso? Pois fique sabendo o senhor, se ainda não sabe, que o meu vinho é o melhor da região. Duvido que exista uma cantina que faça um vinho tão bom quanto o meu. É puro como água! – defendeu-se o bodegueiro, melindrado.

– Justamente. É com a água que tu deita nele que o desgraciato é purificado! – gritou Bepe, bem-humorado. Risadas tomaram conta do recinto. A Mattioda não restou outra alternativa senão rir também.

* * *

Bepe e Vincenzo estavam sentados a um canto, afastados do foco principal da balbúrdia. Sobre a mesa, via-se uma tábua de frios: um grosso salame, queijo e um grande pão branco, tudo bastante rústico. Além disso, havia um garrafão de vinho tinto, que já ia para lá da metade.

Vincenzo já estava meio grogue, em razão de infindáveis copos de vinho. Bepe, por sua vez, também esquentado pela bebida, ria desbragadamente.

– Tu vai me desculpar, Vincenzo. Má não posso deixar de... ah! ah! ah! ré! ré! ré!... Ela te acertou nas “coisas”... ré! ré! ré!... sem dó nem compaixão, e ainda, ainda por cima te joga da varanda, e tu vai dar com a cara num monte de estrume! ah! ah! ah!...

Indignado com a gozação, Vincenzo ameaçou se levantar da mesa. Bepe segurou-o pelo braço.

– Não, Vincenzo. Fica. Fica. Me desculpa, vai... ah! ah! ah! ré! ré! ré!... Tá bom. Já chega. Io prometo.

Bepe, com um esforço sobre-humano, conseguiu, finalmente, se controlar.

– Vincenzo! Vincenzo! Ânimo, meu amigo! Dos males, o menor. Pensa. Tu te livrou daquela bisca. E repara só. Io sei do que tô falando. Ela é minha irmã. Por isso tô certo, como essa luz que me alumia, que ela ia infernizar a tua vida se tu teimasse em levar esse noivado adiante. Olha. Aquela uma, io tô reservando pra um inimigo. Pra um inimigo! Capiche!... Isso, bebe mais vinho. Deixa que eu encho. Assim...

Vincenzo esvaziou o copo com um trago, enquanto via um sujeito alto, ossudo e desengonçado, com as mangas da camisa arregaçadas, aproximar-se de sua mesa.

O homem parou à sua frente, numa postura ameaçadora. Tratava-se do tio e padrinho de Giovanna.

– Oi, tio Carlo! Bebe com a gente! Mais um copo aqui! – disse Bepe, assoviando para a copa.

– Me admira muito, Bepe, te vê bebendo com esse ordinário atrevido, depois do que ele fez com a tua irmã – resmungou Carlo, escandalizado com a leviandade do sobrinho.

– Então algum desocupado já deu com a língua nos dentes! Má nôn é nada disso que te contaram, tio Carlo. O Vincenzo tá inocente na parada. Io posso garantir – defendeu-se Bepe.

– Tu não me garante nada. Trata de ficar calado, inútil. Como então permite que destratem a própria irmã, e ainda por cima fica de arreglo com o descarado! Guarda, Bepe. Teu pai vai ficar sabendo.

– Que se dane! Tu. Meu pai. E todo esse mundinho de bosta. E, se pensa que vou deixar que ofendam meu amigo Vincenzo na minha frente, tá redondamente enganado – reagiu Bepe, furioso.

– Pois tá muito bem. Tome o partido do teu querido Vincenzo. O que vale, afinal, a honra da família pra esses moleques hoje em dia!

Bepe ia dar uma resposta à altura, quando o bodegueiro interveio, taxativo:

– Não, Bepe, não te atreva. E tu, Carlo, já chega, é? Trata de esfriar a tua cabeça. Não fica bem pra um uomo feito tu ficar aí, de bate-boca, com esses frangotes. Vai lá pra fora pegar um ar.

– Vá bene, io vou. Má guarda, Vincenzo. Tu me deve uma pedra. Ainda há de me pagar. Pois fique sabendo, pro teu governo, que io nunca te engoli. Um uomo que não chega perto de uma vaca nem pra tirar o leite que bebe, pra mim não é homem! – disparou Carlo e, bufando, saiu para a rua.

– Não liga, Vincenzo – consolou Bepe. – O tio Carlo é uma besta. O que ele sabe? E quanto a essa balela de “tu me paga”, não te preocupa não. Ele tá com os cornos cheios de vinho... Aliás, como todo mundo aqui hoje. Andíamo. Vamos pra casa. Io te dou uma carona na mula.

Vincenzo teve um estremecimento. Bepe, imediatamente, reconsiderou a proposta.

– Melhor ainda. Vamos a pé. Uma caminhada depois de todo esse vinho haverá de fazer bem. Amanhã cedo, io volto pra buscar a mula.

– Não é uma boa ideia não, meninos. Não é não.

Vincenzo e Bepe foram surpreendidos pela chegada de Benato, saído não se sabe de onde.

Tratava-se de um velhote singular, carcomido pelos anos e muito popular em toda a região em razão de suas histórias de assombração, e por consumir vinho em quantidades verdadeiramente dionisíacas. Invariavelmente, podia ser encontrado em bodegas, sempre em busca de uma vítima que se dispusesse a arcar com os custos de sua necessidade etílica. E uma vez apanhada a presa em sua rede, não a largava mais. A rede consistia nas suas histórias.

– Eh, Benato, vai passando, vai passando. Hoje não tô com espírito pra tuas histórias – Bepe foi logo avisando.

– “Espírito”, tu disse? Má este, justamente, é o ponto, meu jovem – disse o velho, confiado, sentando sem esperar convite – E tu, Vincenzo, concorda comigo? – Vincenzo fez uma cara de espanto. – Mas vai. Porque a noite te reserva uma surpresa e tanto, meu rapaz.

– Do que tu tá falando, velho? – indagou Vincenzo divertido.

Benato, sentindo que fisgara o peixe, riu secretamente e, sem a mínima pressa, olhou em volta com seus olhos injetados.

– Má o quê, Vincenzo! Não percebe que ele tá querendo te tapear, pra que tu financie a carraspana dele?!... Te arranca, Benato. Hoje tu deu com os burros n’água. Vai, vai andando.

– O que é agora? Virou meu protetor? Io sei me defender sozinho. Toma, Benato. Bebe! – engrolou Vincenzo, bastante entorpecido, enchendo o copo e empurrando-o para Benato, que o agarrou avidamente, como se fosse uma joia valiosa.

– E tem mais. Se a história for boa, io banco a tua borracheira... Que tal isso, Bepe? – volveu Vincenzo, com insolência, ao mesmo tempo em que sacava do bolso um punhado de notas amassadas. Bepe, com uma expressão de menosprezo enfadado, levantou-se da mesa.

– Faça o que quiser. Tua cabeça, teu mestre. Pelo meu lado, dou por encerrada a farra. Finito!

– Vai pela sombra, Bepe, que hoje é noite de Massarol – provocou Benato, vendo Bepe se afastar. Em seguida, apontou com o dedo o copo vazio. Vincenzo mandou que trouxessem mais vinho.

– Conseguiu de novo, hein, sua raposa velha. Só não me exagera, que esse daí já vai pelas tabelas, e io não quero ser responsabilizado pelo destrambelhamento de ninguém no meu estabelecimento – recomendou Mattioda, retirando-se.

– O que foi aquilo que tu falou pro Bepe quando ele saiu? – Vincenzo quis saber.

– Io não sei. Foi o que me veio na hora – desconversou Benato.

– Deixa de conversa, seu pau d’água, e desembucha logo. Tu falou que era noite de... porco fumo! Ma me abre essa taramela!

– Vá bene. Foi um aviso que dei pra quello infelítche do tuo amico. E serve pra tu também, Vincenzo – disse o velho, em tom confidencial.

– Madonna! Má me desembucha, criatura!

– Olha, Vincenzo – começou Benato, misterioso. – Questa é una notte especial. Não, não me pergunte por que... Talvez por um montão de coisas, não sei bem ao certo. A propósito. Tu já sangrou um porco? Aposto que sim. Então repara na cor da lua quando sair daqui. Até parece que ela foi espetada na gargantilha, e o sangue escorreu por todo o corpo... E esse aroma de uvas, espalhado no ar. Mas não é de vinho. Tá entrando pelas janelas... Sente? É o vento. Ele tá soprando do norte, direto dos parreirais dos Schio, quando deveria tá vindo do sul, lá dos milharais dos Rossini... Bene, quem sabe tudo isso não seja nada. De qualquer jeito, temos uma noite especial aí fora. E só sei que em noites especiais como essa o Massarol costuma passear pela terra. Pra vistoriar seus domínios, eu acho.

– Massarol! – exclamou Vincenzo.

– É. Massarol. É como nós, antigos, chamamos o capeta, o cramulhão, o demo!

– E tu... já topou com ele? – indagou Vincenzo desinteressadamente, disfarçando o riso.

– Dío-sánto! Não me fala isso nem por brincadeira! – sobressaltou-se o velho, benzendo-se.

– Conhece alguém que já topou? – tornou Vincenzo, agora rindo abertamente.

Benato olhou para o rapaz de um jeito estranho e intenso, como se reconhecesse no mesmo, num súbito vaticínio, a pessoa hipotética a que Vincenzo, por deboche, aludia. Isso durou apenas uma fração de segundos e, logo o olhar do velho, atraído pelo espatifar de uma garrafa que escorregara de uma mesa, à sua direita, voltou a mirar os seres, a totalidade das coisas do mundo, com a avidez inofensiva e sem propósito de costume. No entanto, durou o tempo necessário para que Vincenzo pudesse compreender e revoltar-se.

– O que tu tá olhando, borracho. Nunca viu?... O Bepe tava certo. Eu devia ter ido com ele. Mas não, o pamonha aqui parou pra dar trela pra um pinguço! – desabafou Vincenzo, fazendo menção de se levantar. Benato segurou-o pelo braço.

– Tá tudo certo, Benato. Buona notte. Aproveita bem o vinho.

– Espera mais um pouco, Vincenzo. Io ainda não terminei a história. Tu pagou pra ouvir ela inteira, hã?

– Então, que seja. O tempo já tá perdido mesmo! – suspirou Vincenzo, voltando a se sentar.

– Bene, continuando... Dizem que o Massarol é um uomo muito grande. Dois metros e tanto. E muito pesado. Mas nem tanto pelo corpo. É antes pela consciência. Porque imagina tu, Vincenzo, o que não deve pesar a consciência do pai da mentira! Por isso, pela enormidade deste peso, ele deixa pegadas fundas onde pisa. E infeliz do desgraciato que pisar numa pegada dessas!

– E o que acontece se alguém pisar? – indagou Vincenzo, num bocejo.

– Acontece simplesmente que o infeliz é condenado a não achar mais o rumo de casa. Não naquela noite, pelo menos.

– Grande África! Por acaso alguém algum dia já achou o rumo de casa?... Má, vá bene. Entendi o recado – anuiu Vincenzo se levantando e, com passo incerto, encaminhou-se para a saída.

– E não é só isso. Tem mais – gritou Benato por sobre a confusão reinante. – Antes que a noite termine, o desgraciato vai esbarrar ainda com alguma alma penada pelo caminho!

Vincenzo sacudiu a mão no ar, como quem espanta uma mosca.

* * *

Assim que saiu para a rua, Vincenzo sentiu a cabeça latejar, e uma vertigem repentina quase o derrubou. Para não cair, agarrou-se como pôde a uma das traves de sustentação da varanda. Nesse instante, sua atenção foi atraída para o alto, onde a lua, sanguinolenta, estava tal qual Benato descrevera. Vincenzo foi acometido por estremecimentos, como se pequenas detonações sob as paredes do estômago estivessem partindo-o ao meio, e então vomitou. Depois, respirando profundamente, desprendeu-se da trave como um náufrago dos destroços e cambaleou até o local onde ocultara a bicicleta.

Com muito esforço, depois de repetidas tentativas, montou e se foi, descrevendo temerários ziguezagues.

Vincenzo seguia pela estrada, erraticamente. A lua banhava a paisagem com uma luz leitosa, dando ênfase às sombras das árvores e do matagal, desenhando na estrada silhuetas esguias, que o vento agitava brandamente.

Após galgar uma pequena ladeira, Vincenzo, imprudentemente, permitiu, ao descer, que a bicicleta ganhasse velocidade e, assim desgovernado, viu-se arrastar pela encosta do barranco, arrancando na passagem torrões de terra e tufos de mato, até finalmente ser arremessado à distância e rolar pela estrada cascalhada. Procurou se levantar mas, muito debilitado, deixou-se cair de costas, derrotado...

Vincenzo não estava ferido realmente, a não ser em seu amor-próprio. Por fim conseguiu se levantar e, cuspindo imprecações, tropeçou até a bicicleta que, completamente destruída, jazia encostada ao barranco. Vincenzo, colérico, agarrou-a e a arremessou para o meio do matagal.

– Maledetta! Caco dos infernos! Não preciso de ti. Posso muito bem andar. Não sou nenhum aleijado!... Sim. Io posso andar! Desgraciata!

Retomando seu caminho, desta vez a pé, Vincenzo olhava por cima do ombro para a lua, que parecia acompanhá-lo lá do alto, pendurada no céu, com sua face dilatada e rubra; então voltou-se para ela, veemente, gesticulando como um louco.

– O que é? Passa fora! Io me borrei as calças por um acaso, pra tu ficar me rondando, feito mosca varejeira?!... Tu não me assusta. Nem tu nem esse vento maledetto, virado do avesso. Noite de Massarol! Pois sim. Uma ova pra vocês due. Io sou muito uomo. O diabo que vá se danar!

A estas palavras, ocorreu uma súbita mudança na direção do vento, sacudindo os cabelos e as fraldas da camisa de Vincenzo. A lua foi encoberta momentaneamente por um aglomerado de nuvens.

– Dío sacramento! – exclamou Vincenzo, fazendo o sinal da cruz. – Até me pareceu a mão do demo me apalpando o cangote! Esconjuro, coisa ruim. Vade retro!

Vincenzo, com o coração quase a sair-lhe pela boca, seguiu adiante, até estacar, petrificado.

À sua frente, coisa de vinte passos, havia uma encruzilhada e, nela, um vulto sinistro, de elevada estatura, movia-se estranhamente, parecendo indeciso sobre qual direção seguir. Pressentindo a presença de Vincenzo, fez um movimento em sua direção.

– Boa noite, senhor!... O amigo é da terra?... É natural destas paragens?... Então é possível que possa me ajudar...

Foi o que bastou para Vincenzo, sem querer saber de mais nada, disparar por uma picada, aberta ao lado da estrada...

Vincenzo ia aos trambolhões, como um alucinado, lanhando rosto e braços nos espinhos e galhos. Por fim, enroscou os pés num emaranhado de raízes e entulhos e desabou de cara no chão duro da trilha.

Ainda de cara no chão, visualizou algo que fez seu sangue gelar nas veias.

A poucos centímetros de seu rosto, enorme pegada (aparentemente de um pé humano) estava profundamente gravada no solo.

Terrificado, Vincenzo retrocedeu de gatinhas e, equilibrando-se sobre as pernas bambas, recomeçou sua fuga desesperada.

Seguiu assim até se deparar com uma imensa massa escura, parada no meio da picada. Mas reparou nisso tarde demais. Logo estava sobre o vulto.

Vincenzo foi erguido do chão, sobre a garupa da enorme massa. Na verdade a aparição não passava de uma mula, adormecida no meio da trilha, que, ao ser despertada, ergueu-se assustada, alçando Vincenzo. Este, surpreendentemente montado, foi levado num galope desenfreado através da mata, até ser arremessado ao chão, como um saco de batatas...

* * *

Outra vez na estrada, num estado deplorável, Vincenzo se deu conta de que andara em círculos durante todo o tempo em que estivera na trilha. À distância, divisou a bodega do seu Mattioda. Sem ânimo e ainda muito assustado para reiniciar o caminho de volta para casa, decidiu-se a ir até lá...

O lugar estava praticamente vazio. Viam-se apenas alguns bêbados inveterados espalhados pelo salão, os quais Mattioda, com uma vassoura na mão, ia enxotando, enquanto fazia a limpeza.

Vincenzo entrou e arriou numa cadeira, exausto. Mattioda foi até ele.

– Porca miséria! Má o que se sucedeu, Vincenzo! Foi atacado por um bando de jaguatiricas? – zombou ele, espantado com o estado do outro.

– Vê se me esquece, Mattioda. Não tô com saco agora pros teus interrogatórios. Trata antes de me trazer vinho.

– Fica pra outra vez. Tô fechando. Até já me lacrei as pipas.

– Má que raio de bodegueiro tu me saiu! Como freguês, exijo que me sirva!

– Vá bene. Mas um copo só. Depois, rua. Capiche?... Olá, todo mundo! No meu relógio, vocês têm mais cinco minutos, nem um segundo a mais. Aí deixam de ser fregueses pra ser intrusos.

Mattioda afastou-se para buscar o vinho, enquanto Vincenzo, com um ar aborrecido e alheio, passeava a vista pelo salão. Então, repentinamente, sua atenção foi atraída para o balcão, onde um sujeito enorme, embuçado num sobretudo preto, instalado num cadeirote de pernas altas, bebia tranquilamente.

Vincenzo teve um arrepio de horror. Tratava-se, sem sombra de dúvida, da figura sinistra que encontrara na encruzilhada!

O homem, sentindo o olhar fixo em suas costas, voltou-se e deu com Vincenzo. Sorriu-lhe amistosamente e ergueu o copo num cumprimento. Esvaziou-o de um trago, depositou-o sobre o balcão e saiu para a rua.

Mattioda retornou com o vinho.

Vincenzo saltou da cadeira e correu para a porta em tempo de ver o homem, que se afastava pela estrada. Este sentiu mais uma vez que o observavam. Virou-se e deparou com Vincenzo. Mais uma vez saudou-o, acenando-lhe com a cabeça. Vincenzo, alarmado, bateu a porta e voltou-se para Mattioda.

– Tu viu, Mattioda?... Aquele sujeito!

– De quem tu tá falando? Que sujeito?... Tu tá muito estranho. Até parece que esbarrou com o capeta!

– Não. Isso é uma piada. Tão querendo me tirar pra bobo. Ele tava ali, perto do balcão. Tu deve ter visto ele sim. Não é possível!

– Calma, Vincenzo. Fala devagar. De que sujeito tu tá falando?

– Aquele, Dío-sánto! Quello que tava sentado no cadeirote. Ali, no balcão!

– Ah, quello! Por que não falou logo?

– Tu... também viu ele?

– Io sou cego por um acaso? Como não haveria de ver? O sujeito é um pinheiro de grande!

– Então?...

– Então o quê? Quer saber quem é ele? Eu digo. É o irmão da mulher do Andreola. Um brasiliáno, que veio da cidade visitar a irmã. Se confundiu com a estrada e veio parar aqui. Se parou a beber vinho e se esqueceu da hora. Pronto!

Vincenzo começou a gargalhar, achando graça de sua tolice. Mattioda, boquiaberto, viu-o sair para a rua.

– Esse daí me saiu mesmo um destrambelhado – concluiu, sacudindo os braços. – E quanto a vocês. Tempo esgotado. Vão, vão saindo...

* * *

Era quase manhã. Uma manhã serena de verão, cujo fulgor pálido e insipiente da aurora espalhava-se, peneirado pela escuridão.

Vincenzo seguia seu caminho. Lépido, peito inflado, cabeça erguida. Contagiado por uma disposição nova, estava firmemente decidido a nada mais temer. Era um novo homem. O mundo que o aguardasse.

Para testar sua nova determinação, decidiu-se por uma prova de coragem...

Sob os parreirais, a noite era mesmo como Vincenzo imaginara. As trevas possuíam ali outra substância. Talvez fosse efeito da terra, na plenitude de seu vigor germinativo.

Vincenzo ia confiante. Pela primeira vez na vida, estava seguro de si. Congratulava-se alegremente por sua ousadia. Aspirou profundamente o ar impregnado pelo aroma agridoce das uvas e sentiu que algo no fundo de seu âmago ia sendo desobstruído. Aspirou novamente. Outra vez ainda. Outra vez...

Não longe dali, algo inusitado acontecia...

O espectro fantasmagórico de uma jovem, notavelmente bela em sua lividez mortal, com uma vela acesa nas mãos, vagava erraticamente por entre as videiras...

Vincenzo aspirou ainda mais profundamente. Aspirou. Aspirou...

luis narval
Enviado por luis narval em 21/03/2012
Reeditado em 30/03/2012
Código do texto: T3567439
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