A Mansão da Rue Lafayette
Nota explicativa
O conto que segue consta e empresta título ao meu livro de estreia, publicado no inverno de 2010. Devo dizer que, desde então, não tinha mais me ocupado com ele, e com exceção de alguns outros (poucos) que traduzi para o espanhol, não ocupei-me mais com o livro de um modo geral. Esperava (e ainda espero) para isso, uma segunda edição. Então hoje, não sei porque cargas d’água, ao resolver publicá-lo nesta página, me dei conta de que precisava revisá-lo minuciosamente. Para meu pesar, ou para minha alegria, já que devo ter aprimorado minha técnica nesse último ano e meio, constatei que faria diferente. Não em seu todo, obviamente, pois é, boa ou má, a história que me propuz narrar, mas em alguns detalhes mínimos, mínimos aperfeiçoamentos. De toda maneira, ei-lo aqui.
1492, Paris, França
Mansão da Rue Lafayette. Era assim que todos, plebeus e nobres, ricos e pobres, chamavam simplesmente aquele sólido e tumultuário aglomerado de ardósia negra e argamassa, com suas colunas jônicas, rosáceas, ogivas e arcadas góticas, encravada como um baluarte de poder e requinte – e para os mais exaltados –, de indecifrável mistério no coração de Paris. Sua construção datava do século treze, e pertencera originariamente a uma estirpe renegada de Cavaleiros Teutônicos que fizeram fortuna no Oriente Médio durante a quarta Cruzada, a qual, de acordo com relatos, foi incontestavelmente mais vantajosa em termos de pilhagem dentre todas as nove que a história fez registrar em seus anais.
Erguia-se na margem ocidental do rio Sena e, de suas torres, balcões e ameias serrilhadas, vislumbrava-se à distância o ainda então Palácio do Louvre; e, rivalizando em imponência com o mesmo, parecia endereçar-lhe um aviso, no qual dizia abertamente, a quem soubesse interpretar os sinais, que o verdadeiro centro de poder da França estava noutra parte.
Francis Jenner se espremeu num vão do muro, no lado de dentro, nos jardins escuros da Mansão. Fazia uma hora que estava ali, espreitando nas sombras como um ladrão, estudando um meio seguro de entrar na casa. Como qualquer cidadão médio de Paris àquele tempo, sempre tivera uma leviana e inocente curiosidade para saber o que havia por detrás daquelas paredes e, sabendo que isso era totalmente impossível, encarava o fato com uma ironia jocosa. Agora, todavia, não era a curiosidade bisbilhoteira que o fazia desejar saber que espécie de coisas existia lá dentro. Mas, fossem quais fossem, uma ele tinha certeza de encontrar caso conseguisse levar adiante seu intento. A certeza de que encontraria uma câmara de tortura ou algo nesse sentido, na qual certamente já estariam sendo barbaramente martirizados Pierre, René e Marguerite, o fez estreitar o cabo do punhal contra o corpo como se quisesse esmagá-lo.
A Mansão estava silenciosa e se quedava plácida dentro da noite que a envolvia. Os salgueiros e abetos do jardim pareciam ressonar ao ritmo de uma ligeira brisa que passava sobre suas frondes copadas embalando seu sono de árvore. Jenner pensou, reparando naquele silêncio ordeiro e burguês, em como as coisas em sua feição exterior parecem sempre tranquilas e inofensivas se comparadas a seu interior convulso, sacudido por ódios, turbulências e paixões de todo gênero. Que espécie de caos abrigava as vetustas e veneráveis paredes da Mansão da Rue Lafayette?
I
Francis Jenner forçou com a lâmina do punhal uma estreita abertura de ventilação posicionada ao rés-do-chão e se esgueirou para dentro da Mansão. Esperou um instante até seus olhos se acostumarem com a semi-escuridão e observou atentamente, com o coração acelerado, o espaço a sua volta. O que primeiro chamou sua atenção foi não ver um único ângulo reto na extensão de todo o ambiente. Compreendeu que se achava numa espécie de câmara nua e ovalada, cujas dimensões não pôde precisar, mas que pareciam ocupar todo o lugar. O teto alto curvava-se graciosamente, imitando de certa forma as paredes de um enorme domo, ou, mais exatamente, as de uma imensa bolha de sabão, e, a semelhança desta, sutis reflexos de luz se infiltravam, vindos de não se sabe onde, formando losangos purpúreos e azuis pálidos no chão de mármore rosado. Aquilo tudo ia muito além do que Jenner poderia ter imaginado encontrar lá dentro. Supusera um ambiente luxuoso e bizarro, repleto de velhas e desgastadas relíquias, testemunhas de um fausto e glória de tempos há muito sepultados de mistura com o gosto excêntrico e algo pedante da época. O contraste extremo e quase miraculoso entre a fachada da Mansão e seu interior deu-lhe a inquietante impressão de ter atravessado os portais proibidos de outro mundo. Isso o fez considerar seriamente a hipótese de retroceder. Voltou a cabeça procurando a abertura por onde entrara. Mas não havia nada ali. Nem a menor fissura naquela estrutura que parecia perfeitamente hermética. Desorientado, sem uma rota de fuga, só restava a Jenner, como única alternativa, avançar...
II
Mar Tenebroso
O que era o mundo conhecido ficara para trás. As Ilhas Canárias não passavam agora de uma mancha esmaecida no horizonte distante.
Apoiado ao leme da nau capitânia, Guttorm Kristensen, navegador e oficial de segunda classe, contemplava pensativo, de cachimbo na boca, o caudal vertiginoso e escuro do Atlântico deslizar bamboleante sob a quilha da caravela, apesar de suas 100 toneladas, vulnerável, fazendo-a oscilar como uma casca de noz em meio à vastidão da noite.
O Atlântico.
Como simples marujo, servindo em galeras venezianas e genovesas, Kristensen singrara incontáveis vezes as águas milenarmente conhecidas do Mar Mediterrâneo e, a serviço da Coroa portuguesa, estivera nos Açores, no golfo da Guiné e tivera o privilégio de cruzar pela primeira vez, juntamente com uma tripulação europeia, a linha do Equador; e, anos mais tarde, já oficial, fizera parte da tripulação de Bartolomeu Dias e contornara o Cabo das Tormentas rumo ao sul da África. Portanto, este oceano Atlântico, que a inculta imaginação dos crédulos apelidara de “Mar Tenebroso”, ele próprio, apesar de sua considerável experiência a bordo de tantas embarcações e a serviço de variadas nações só o tocara incidentalmente.
Mar Tenebroso, soprou o sueco com um sorriso forçado, ao qual não faltava certo temor reverente. Ouvira coisas espantosas a propósito daquele oceano. Dizia-se habitado por criaturas monstruosas, e que uma flora maléfica destilava mortal veneno em suas correntes. Que em certas latitudes a água borbulhava como em um caldeirão, atiçada não se sabe por que horda demoníaca; que ainda, em outros lugares, elas se precipitavam no vazio com o estrondo de um milhão de cataratas.
O Atlântico, suspirou novamente Kristensen, expelindo a fumaça de seu cachimbo, olhando a estibordo para as outras duas caravelas descobertas, com a metade da tonelagem da sua, que o acompanhavam na temerária expedição, e calculou que, se existia uma palavra que pudesse sintetizar numa única expressão o que era então aquele vasto tapete d’água cinzento que adentrava o infinito, está era o desconhecido.
Guttorm Kristensen, manobrando com delicadeza o leme, consultou a bússola e o astrolábio, cuidando em não desviar um grau sequer, à direita ou à esquerda da rota ocidental traçada por quem não poucos membros da tripulação consideravam louco capitão.
Sua loucura, segundo se dizia, era acreditar – partindo do pressuposto bizarro e contrariando o que até então era tido como evidente, ou seja, que a terra tinha a forma de um disco – que a mesma era esférica, e desse modo seguindo sempre em frente, numa rigorosa linha reta, chegar-se-ia necessariamente ao ponto de partida.
Louco! Se o intrépido genovês o fosse, sua loucura os levaria à morte certa, vagando interminavelmente até que a fome e a sede, ou talvez uma das monstruosidades que se dizia existir naquelas águas turbulentas e misteriosas viesse a todos destruir.
Mas, diferentemente de Kristensen, Cristóvão Colombo tinha a seu favor, se não um conhecimento pormenorizado do oceano Atlântico, uma familiaridade relativamente confiável com o mesmo. Aventurara-se diversas vezes em suas águas traiçoeiras, tendo, inclusive, em uma delas visitado a distante Islândia, localizada a muitas milhas do continente; sem mencionar o fato de contar agora com a caravela, uma embarcação, apesar dos pesares, mais adequada que a leve e frágil galera, ou que o pesado e moroso galeão para enfrentar sua formidável massa aquática, ordinariamente varrida por furiosos ventos.
Esse pensamento de algum modo terminou por sossegar Kristensen.
"Isso mesmo, timoneiro. Direto em frente. Para o ocidente. Um novo mundo nos aguarda."
A voz não era mais que um ligeiro sussurro junto ao seu ouvido, acima de seu ombro esquerdo. Assustado, o sueco virou-se abruptamente para ver de quem se tratava. Julgava ser o piloto substituto que viera render-lhe o posto. Mas encontrava-se só na ponte de comando. Estranho. Foi então que percebeu, no alto e distante, revelado pela claridade que a sombra oscilante das velas abrira no tombadilho, a silhueta nutrida de um homem escorado à amurada. Reconheceu de imediato o enorme mouro, a despeito das roupas europeias que este envergava agora. Ele, na companhia de dois ingleses e um português, subira a bordo quando a pequena frota preparava-se para partir. O capitão não gostara nada daquilo. Enfurecera-se como Kristensen jamais vira antes. E contra sua vontade, ao que tudo indicava, fora obrigado a aceitá-los como passageiros de última hora.
Granada, o derradeiro bastião da resistência otomana na península ibérica, caíra havia pouco, depois de séculos de dominação muçulmana. A presença de um mouro, portanto, numa expedição de bandeira espanhola era no mínimo insólita. Este, como se adivinhasse seus pensamentos, olhava-o fixamente, com curiosa intensidade.
"Relaxe, sueco. A viagem estará terminada muito antes do que possa imaginar seu capitão." Disse a voz, novamente bem próxima, num cicio apenas perceptível.
– O que disse?!...
Kristensen se espantou, desta vez com o som da própria voz. Como antes, ninguém havia lhe dirigido a palavra. Contudo, ouvira nitidamente. Com assombro no olhar e sacudindo os braços, aparvalhado, girou 180 graus sem sair do lugar. O árabe sorriu-lhe com complacência, antes que a sombra compacta das velas, sopradas por ventos favoráveis que impeliam numa velocidade constante rumo ao poente a caravela, batizada com o piedoso nome de Santa Maria, o ocultasse outra vez.
III
La Massana, Andorra, 00: 35 da noite
Alguns dias antes
Pelas ruas sombrias e silenciosas de La Massana, uma carruagem puxada por dois cavalos resfolegantes fazia chiar suas velhas molas e estalar suas rodas no pavimento desfeito.
O cocheiro, um homem anguloso, cujo rosto macerado e pontudo, que lembrava antes um punhal, todo embuçado num pesado capote, fez um desvio à direita e conduziu a carruagem até uma travessa, tomando em seguida por uma viela sinuosa, tão íngreme que se viu obrigado a vibrar o chicote com vontade para que os esfalfados animais tomassem coragem e galgassem a ribanceira. Contudo, a parelha, percorrendo apenas alguns metros ladeira acima, e como se tivesse concluído com sua sabedoria de cavalo que a façanha estava acima de sua capacidade, estacou, resoluta, mesmo que aquilo lhes custasse a vida.
– Adiante, cães do inferno! Mexam as patas, demônios! – espumou o cocheiro, estalando o chicote furiosamente sobre as ancas dos teimosos animais, que faziam apenas empinar a cabeça e mexer os beiços num intermitente e inútil relincho de protesto.
Uma cabeça desgrenhada e sonolenta espiou pela janela da portinhola da carruagem.
– Por que paramos, Anselmo? – indagou o passageiro com um bocejo.
– O que parece? São esses malditos pangarés que o senhor tem como cavalos. Recusam-se a subir uma simples ladeirinha – retrucou o cocheiro num tom ao mesmo tempo aborrecido e desrespeitoso.
– Está bem. Não precisa forçá-los. Estamos quase lá. Eu sigo a pé o resto do caminho – redarguiu o homem, compreensivo, desaparecendo dentro da carruagem.
– Ele vai a pé, o carcamano. Pois vá! – grunhiu Anselmo, cuspindo de lado.
– Eu ouvi, Anselmo... Acalme-se, homem! – aconselhou o italiano, descendo da carruagem. Trazia nos braços comprido estojo, enrolado cuidadosamente num pano de veludo carmesim.
Rinaldo Bonetti era um sujeito franzino, louro, pouco mais de 30 anos, com uma cara insignificante e um jeito desleixado que não inspirava a menor prevenção. Mas sob essa máscara cuidadosamente elaborada se escondia um indivíduo possuidor de uma determinação inabalável, em cujos ombros repousavam sérias e temerárias responsabilidades.
– Devo acompanhá-lo? – disse o cocheiro de mau jeito.
– Não será preciso. Dê-me apenas a lanterna. Isso aqui está um bocado escuro.
– Cuidado lá, hein, não vá rachar seu precioso crânio nessas pedras – zombou Anselmo, passando para Bonetti uma das lanternas que guarneciam a carruagem.
– Não é com meu crânio que estou preocupado agora – esclareceu ele, fingindo não perceber o sarcasmo do outro.
– Vejo que o que o preocupa é esse... como o senhor diz: “artefato”? Imagino que isso tenha alguma serventia importante. O homem deu a vida por ele.
– E antes dele muitos outros.
– Mas os outros não fui eu que matei – lembrou Anselmo, rapace.
– Vamos recompensá-lo. Já disse. Ainda esta noite.
De fato. Ainda naquela noite, como paga por seus serviços à Irmandade, começaria para o doublé de cocheiro e assassino a morte mais incrível e penosa que ele jamais imaginou dar às suas vítimas. Mas enquanto isso, refestelado no interior acolchoado da carruagem, dispunha-se a um largo cochilo.
IV
Rinaldo Bonetti, um tanto ofegante em razão da estafante subida, depositou a lanterna ao lado das portas duplas que se erguiam até quase a cumeeira da sede local da Irmandade e, antes de executar a batida combinada, apreciou os familiares hieróglifos esculpidos em alto-relevo nas tábuas de carvalho maciço. A visão das duas serpentes entrelaçadas, cada qual com a metade de uma rosa negra, despetalada, entre as mandíbulas, lembrava-lhe sempre o alto destino a que sua fraternidade se devotava. Um destino que estava agora muito próximo de seu grande dia. Muito provavelmente não estaria presente para saboreá-lo. Era apenas um instrumento e, como tal, depois de cumprida sua tarefa, teria necessariamente que se retirar e jamais voltar sequer a cogitar do assunto. Mas isso não o perturbava. Graças à Irmandade, tivera até ali uma vida das mais interessantes e compensadoras. Com imensa emoção, sentiu que algo estava por terminar, e que algo ainda mais grandioso estava por começar. Aquilo que trazia cuidadosamente embrulhado sob seus frágeis braços, junto ao seu ser efêmero, abalaria mundos. Inauguraria uma nova era. Quase chorou de devoção e alegria.
Ergueu o punho para o toque combinado e ao mesmo tempo sentiu que algo absurdamente gelado cortava-lhe ambos os lados do ventre, perfurando-lhe os rins. Esse foi seu último pensamento consciente antes de mergulhar no grande vazio.
V
Sob o forcado da lua crescente, Anselmo, o doublé de cocheiro e assassino, fustigava impiedosamente os cavalos numa louca carreira ao longo de uma estrada poeirenta, nos arredores escarpados de La Massana. Então, inesperadamente, numa curva do caminho, deparou-se com um grupo de homens encapuzados. Os cavalos, à vista de um deles que avançava com o braço estendido, e em cuja mão espalmada estava tatuada uma cruz invertida, refugaram e empinaram para depois, como que sob o império de um sortilégio, estacarem, muito dóceis e sossegados.
Anselmo, vendo os estranhos se aproximarem e sem compreender por que os animais se recusavam a obedecer-lhe apesar de chicoteá-los ferozmente, saltou da carruagem e enveredou, desatinado, pelo matagal. Não foi, porém, muito longe na sua desesperada tentativa de fuga. Um torpor súbito e inexplicável subiu-lhe pelas pernas e paralizou-o quase na altura das ilhargas. Sacudindo os braços desesperadamente e girando o torso para todos os lados, ali ficou, estático, plantado ao solo como uma árvore bizarra, exposta à fúria dos elementos. Seus perseguidores, sem demonstrar a mais leve perturbação, cientes de que sua presa não ia, de que não poderia ir a parte alguma, aproximaram-se, fatídicos...
VI
Anselmo abriu os olhos e, aturdido, olhou em volta para o que parecia ser uma masmorra e compreendeu de imediato todo o horror de sua situação.
O cocheiro achava-se estirado, de costas, sobre uma grossa trave de madeira. Trazia os braços afastados, atados solidamente a uma segunda trave que compunha a cruz. Tudo estava envolto, como que amortalhado em pesado silêncio. Apenas a respiração descompassada do cativo rebatia nas pedras úmidas da prisão, produzindo um eco distorcido, com uma nota abafada e pesarosa.
Um som metálico, do que certamente deveria ser uma engrenagem qualquer sendo acionada, repercutiu de repente naquele silêncio e, no mesmo instante, Anselmo se sentiu arrastado rudemente para frente e para cima, até que se viu oscilando de cabeça para baixo a uma altura de mais ou menos um metro e meio do chão.
A figura que o suspendera, embrulhada num hábito negro, de capuz na cabeça, deu uma última volta na manivela e a travou com um estalo. Feito isso, indiferente às lamúrias do prisioneiro, o sinistro encapuzado se retirou.
Minutos depois, três homens, envergando igualmente hábitos escuros e com os rostos ocultos atrás de seus capuzes, irromperam na masmorra. Cruzes invertidas, de uma tonalidade escarlate, semelhantes àquela em que estava atado o cocheiro, estampavam a frente de suas vestes.
Anselmo, com terror no olhar, viu aquele que parecia ser o líder dar um passo a frente e estender a mão em sua direção. Preparou-se para um gesto de violência qualquer quando foi surpreendido por um afago inesperado.
– Você se portou muito mal, meu filho. Confiamos em você para proteger nosso emissário. Mas agora veja. Você o traiu e ele foi cruelmente assassinado, e aquilo que fora encarregado de nos trazer acabou sendo roubado por pessoas muito más.
– Não é minha culpa, acredite. O senhor Bonetti não permitiu que eu o acompanhasse. O que eu podia fazer? – choramingou o cocheiro, aflito.
– Não, meu filho. Você mente. Nosso emissário conhecia suas responsabilidades. Sabia dos riscos a que se expunha transportando algo tão extraordinariamente valioso. Não dispensaria sua proteção. E quanto à razão de sua fuga só pode haver uma explicação.
– Não! Eu falo a verdade. Cumpri com o meu dever. O senhor Bonetti, sem maiores explicações, encarregou-me de fazer o que fosse preciso para trazer-lhe o tal artefato, que nem ao menos sei para que serve. E foi exatamente o que fiz. Apenas isso. Por favor, eu juro!
– Não blasfeme, meu filho. Não se deve jurar falsamente. O que pedimos, simplesmente, é que você nos diga a verdade. Você informou nossos inimigos do lugar e hora em que se daria a entrega. Teve apenas de deixá-los agir livremente. Mas agora isso não tem mais importância. Apenas desejamos saber em que circunstâncias e, principalmente, o lugar em que essas pessoas estavam quando trataram com você. Foi aqui mesmo, em Andorra? Ou foi em Madri.
– Para o inferno. Já disse-lhe tudo o que sabia. Matei, roubei a serviço da Irmandade. Se isso não servir para provar minha lealdade, que se dane então – retrucou Anselmo com uma indignação sincera para, em seguida, se arrepender de seu atrevimento.
– Lealdade? – o encapuzado rugiu, injuriado. – Como você ousa! Vou mostrar-lhe no que consiste sua lealdade.
O encapuzado retirou do bolso da batina um pequeno saco e, mostrando-o para o cocheiro, fez tilintar as moedas no seu interior.
– Eis aqui os trinta dinheiros com que Judas, também alegando lealdade, traiu nosso Senhor Jesus Cristo.
Calmamente, como se estudasse na fisionomia do cocheiro o efeito de cada mínimo gesto seu, o encapuzado abriu o saco e, dali, retirou uma moeda de ouro. Em seguida, agarrou brutalmente a cabeça de Anselmo e obrigou-o a engoli-la. Debatendo-se desesperadamente o cocheiro tentava em vão se esquivar.
– A verdade machuca. Vejamos quanta dor você suporta antes de se resolver a nos dizê-la.
Diante do olhar perplexo de Anselmo, onde um horror indescritível se refletia, mais uma moeda foi retirada do saco...
VII
Com os olhos cerrados, num leve movimento pendular, Anselmo oscilava na cruz. Um jato de sangue escorria de sua boca num filete que se prolongava até o chão, formando um pequeno charco escuro sobre o piso de pedra.
De costas para o cocheiro, a um canto, os três encapuzados confabulavam.
Aquele que interrogara Anselmo, girando entre os dedos uma das moedas de ouro, dirigia-se aos demais:
– Infelizmente ele pouco sabia. Mas, como imaginávamos, o desgraçado vendeu-se cegamente. Contudo, aqueles que o corromperam nos deixaram uma pista valiosa. O dinheiro. Sempre o dinheiro – suspirou o encapuzado, fitando a moeda. – Por mais anônimo que possa parecer, traz consigo sempre, se não o caráter inconfundível de seus antigos donos, ao menos um indício seguro que pode levar até eles. Moedas de ouro nesse valor e nessa quantidade, em Andorra, só há um lugar em que podem ser arranjadas. E sabemos que não são muitos aqueles que são capazes de obtê-las...
VIII
O árabe se deteve um instante diante da porta e olhou com inflamado despeito para o que mais parecia um armário. Lá dentro, alguém tateou no escuro até encontrar uma pequena lamparina alimentada a querosene, a qual, depois de endireitar o chumaço em forma de canudo retorcido, acendeu.
Retendo a respiração e encolhendo o volumoso ventre, o mouro se pôs a penetrar no compartimento reservado a ele e seus companheiros. O capitão, na sua hospitalidade forçada, não achara nada melhor para oferecer-lhes que aquele acanhado cubículo sob o tombadilho, que servia como depósito para os barris de arenque salgado. O arenque havia sido transferido para outro lugar. Possivelmente melhor e mais arejado que aquele, concluiu o mouro, espremendo seu avantajado corpanzil através da estreita abertura.
Akbar Abdul-Rashim Al Fazel tinha cerca de quarenta anos. Era turca sua procedência. Nascera em Mossul, na distante Mesopotâmia, mas afirmava correr em suas veias o mais puro sangue mongol, pois dizia-se descendente, por linhagem paterna, de Tamerlão e, conseguintemente, do próprio Gêngis-Cã. Se de fato havia laços consanguíneos a ligá-lo a esses intrépidos personagens, é coisa a se discutir. O certo, porém, é que, à semelhança destes, sobretudo do primeiro, era um aficionado da vida nômade, para quem a vida sedentária das grandes cidades parecia odiosa, pois, seguindo uma tradição antiga, considerava-a a matriz de todos os vícios e desregramentos. Tamerlão, seu suposto antepassado, amparado nisso, levou às últimas consequências seu fanatismo nômade, a ponto de espalhar a devastação desde o norte da Índia até os áridos confins da Síria. Akbar, por seu turno, visando a particulares propósitos, tinha suas próprias ideias de como disseminar o flagelo. Para tanto, estava disposto a lançar mão da violência mais sutil, por isso mesmo a mais terrível. Akbar Abdul-Rashim Al Fazel era um Mago-Negro.
– Então, o que me dizem, senhores? Ainda acham que estamos seguros? – disse ele com ironia, num espanhol impecável, dirigindo-se aos três homens ao mesmo tempo.
– Estamos em alto mar. A caminho de um mundo desconhecido. O que melhor que isso? – deu de ombros um de seus discípulos, um inglês terroso, com sobrancelhas eriçadas, num espanhol estropiado, consultando com o olhar os demais.
– Parece que vocês não têm mesmo consciência de com quem estamos lidando. Nenhum lugar é bastante protegido para essa gente. Ainda mais com o que temos aqui – tornou Akbar, severo, procurando, com um ar preocupado, alguma coisa oculta na bagagem. – Não podemos deixá-la aí. Temos de encontrar um lugar mais apropriado. Não confio na tripulação e muito menos nesse grosseiro capitão.
– Acha que podem desconfiar de alguma coisa? – perguntou o outro inglês, numa voz abafada, que dava a impressão de vir do fundo do mar, ou das entranhas úmidas de uma catacumba, mas num espanhol aceitável.
– Mestre Akbar tem razão – interveio o português de nome Albuquerque. Dos quatro, o que possuía a aparência menos sinistra. – Winckler, Green, vocês não desconfiariam de quatro perfeitos estranhos, além de tudo estrangeiros, embarcando de supetão numa expedição que levou meses para ser organizada? Eu desconfiaria.
– Temos meios de nos defender – lembrou Winckler com arrogante autossuficiência. – Eles não representam ameaça alguma. Se quisermos...
– Mas não queremos – atalhou o mouro, taxativo. – Quero que todos ajam dentro da mais tranquila civilidade. Devemos evitar, na medida do possível, chamar a atenção sobre nós. Devemos manter nosso disfarce. Somos ricos burgueses em busca de novos mercados. Estão lembrados? Todos acreditam estar a caminho das Índias. Deixemos que continuem pensando assim.
– Quando, apesar disso, os “convenceremos” a mudar de rota? – perguntou Green na sua voz subterrânea, sorrindo sinistramente.
– Se isso se fizer mesmo necessário, creio eu que em mais ou menos umas sete semanas. Até lá, em todo caso, lembrem-se: somos abastados mercadores em viagem de negócios – fez ver o mouro, devolvendo o sorriso.
– Ah, ei-la! – disse ele em seguida, numa exaltação compreensível, desembaraçando de um embrulho complicado uma comprida estatueta, aparentemente feita de marfim. Mas só aparentemente. Na verdade, fora esculpida em estranhos ossos, que lembravam vagamente o fêmur humano, cujo formato oblongo como esse era todo incrustado com rubis e safiras e marchetado com sinuosas estrias de um vermelho vivo. Representava um casal de víboras se enroscando num abraço lascivo. A rosa negra, partida em duas, que traziam entre as mandíbulas, parecia irradiar um brilho absorvente, pulsante. E, como toda relíquia considerada sagrada pela humanidade, retinha um caráter estranhamente ambíguo. Ora deixava transparecer o apelo irresistível de uma solene, poderosa promessa; ora aludia a uma ideia de terrificante, inescapável condenação.
IX
Anselmo abriu os olhos devagar e não pôde conter um profundo, desalentado suspiro de frustração e tristeza. Fazer aquilo só podia significar uma coisa. Que estava vivo, e que, portanto, não tinham ainda se resolvido a aplicar-lhe o coup de grâce. Por que não acabam logo com isso! Implorava ele em sua angústia. Não compreendia. Ele próprio, quando se decidia a matar um homem, ou disso era encarregado, fazia-o sem a menor perda de tempo e da maneira mais limpa e correta possível. Mas não, a Irmandade, quando julgava necessário ela mesma se desincumbir do suplício, lançava mão de métodos verdadeiramente inusitados. Para tanto, não procurava contratar os serviços de um carrasco ou de um matador de aluguel qualquer dentre os inúmeros mercenários e malfeitores que, como uma horda de invasores bárbaros, acorrera de toda a Europa para a Espanha católica, empenhada a qualquer custo em livrar das garras sacrílegas dos infiéis muçulmanos o último pedaço de chão que, por vontade e lei divinas e, sobretudo, por decreto papal, tinha de voltar, submissa e impoluta, para o seio acolhedor da cristandade.
Para Anselmo, o cocheiro assassino, estava destinada uma modalidade diferente de morte. Com um simples e aparentemente inofensivo toque havia sido condenado ao inferno.
Portanto, apesar de estar livre e vagar à vontade pelas ruas apinhadas de Paris como um cidadão qualquer e de se sentir em perfeito estado de saúde, e até ligeiramente revigorado, ele sabia que estava sofrendo os efeitos de uma morte medonha. De que natureza eram esses efeitos e como se processavam, não fazia por hora a menor ideia.
Quando, três dias antes, o haviam capturado nas cercanias de La Massana, e mesmo depois, nas masmorras do templo da Irmandade, ocasião esta em que submeteram-no a um rigoroso interrogatório e a uma tortura atroz, ainda assim não sentira tão patente, como neste momento, a iminência da morte.
Confessara tudo, nada ocultara. Afirmara que ele era culpado sim de ter entregado Rinaldo Bonetti nas mãos de seus assassinos em troca de um punhado de moedas de ouro. Que sabia que o tal artefato que ele próprio, sob precisas instruções de Bonetti, havia roubado para a Irmandade, era o alvo daqueles mesmos homens. Não obstante sua confissão, os membros da Irmandade se mostraram insatisfeitos, por isso decidiram, furiosos e indignados, mandá-lo embora dali ao invés de matá-lo simplesmente. Assim, amarrado e escoltado por quatro robustos servidores do culto, foi levado a toda pressa para Paris, onde teve mais uma vez que dar explicações aos dirigentes da seita. Ali repetiu a mesma história. Era responsável por tudo. Foi então que o homem a quem todos, respeitosos e reverentes, chamavam de Grão-Mestre, após ouvi-lo pacientemente e sorrir-lhe com benevolência, tocou-lhe suavemente a fronte com sua pequena mão, translúcida de tão alva, ornada de coruscantes anéis. Foi como se alguém de repente houvesse retirado uma venda ou uma espessa bandagem de sobre seus olhos. Mas, ao invés de enxergar mais longe e melhor, ele viu, atrozmente consciente, apenas o intolerável vazio em que estivera a vida toda mergulhado. E nesse vazio, avançava célere e inapelável mais... vazio!
Com isso começara para Anselmo, o cocheiro assassino, o inferno da consciência de seus pecados.
X
No alto do púlpito, trajando esplêndidas vestes sacerdotais, o homem a quem chamavam de Sua Eminência, solene e doutoral em sua voz macia, dirigia-se aos fiéis, ávidos de salvação, que se comprimiam, respiração suspensa, na catedral de Notre-Dame. Tratava-se do mesmo homem que, dias antes, não longe dali, no subsolo transformado em templo de uma imponente mansão na Rue Lafayette, assistido por um público diverso e sob um ritual considerado profano, pousara, num gesto quase fraternal, a mão sobre a testa febril de Anselmo.
– Quando, queridos filhos – dizia ele em seu sermão –, com espírito desassombrado, perfeitamente alijado do erro místico, se considera a perspectiva de inferno, tem-se a noção exata de sua implicância terrificante na alma e na carne do infeliz condenado às suas profundidades.
“Não devemos considerar (embora verdadeiramente atrozes), as torturas físicas e espirituais prescritas ao transgressor do arbítrio – sim, porque é o arbítrio, a auto-orientação inalienável do sujeito que é efetivamente transgredida quando o mesmo sujeito, por obra de suas próprias e alheias trevas, é submetido à sanção da culpa; nem tampouco devemos imputar à permanente lembrança de sua miséria a mais terrível de suas provações. Essa, saibamos, está reservada à consciência. Pois, havemos todos de concordar: a instituição infernal não prima pela previsibilidade. O desconhecido. O inimaginável é seu instrumento punitivo.
“Para seres tão altamente evoluídos, experimentados nas sendas do contingente e do crime, aperfeiçoados e fortalecidos no erro, certamente não está reservado nada de parecido com a comprovação de suas intuições. Porque isso, decididamente, meus caros, não configuraria imparcialidade de julgamento, nem a parcimônia do castigo.
“Para esses seres desafortunados, está guardada uma sorte diferente. Não intuída, porque não experimentada...”
– E quem tratará de prescrevê-la? Vossa Eminência, imagino eu. Ou devo dizer Grão-Mestre da Oculta e Sagrada Ordem Propiciática? – elevou-se de repente, zombeteira, uma voz que fazia sentir um pouco a bebedeira. Aquilo fez com que todas as cabeças, como uma vaga, se voltassem na direção de onde partira a provocação. Imediatamente, um burburinho, onde segundos antes não se ouvia um sussurro, elevou-se, entre admirado e revoltado diante de tão estupendo atrevimento.
Da porta da catedral, com passos trôpegos, avançou em direção ao altar, portando uma espécie de cajado, um tipo alto e barbudo, trajando farrapos.
No mesmo instante, um homem se levantou de um banco e caminhou na sua direção.
– Não estamos numa taberna. Você não pode entrar aqui desse jeito. Saia imediatamente ou então...
O sujeito, rápido e contundente, golpeou a cabeça do homem com o porrete. À vista disso, vários outros avançaram e, após uma ligeira e desajeitada luta, imobilizaram-no e o arrastaram para fora, para em seguida, depois de se certificarem de que ele não retornaria, retomarem seus lugares junto aos demais.
Dentre os paroquianos presentes naquele distante fim de tarde na catedral de Notre-Dame (que esqueceram a cena tão logo esta foi superada com a retirada do intruso e encorajados pela serena indiferença demonstrada por Sua Eminência), apenas um homem viu alguma importância no insólito e aparentemente gratuito escândalo.
As palavras de quem parecia não passar de um pobre mendigo, dirigidas na forma de uma franca, embora enigmática acusação, contra Sua Eminência, o todo-poderoso bispo Tosseau, despertaram em Francis Jenner antigas recordações, às quais ele mesmo nunca dera maior importância. A razão para isso era uma só. Os fatos associados a elas, além de remontarem à sua infância, jamais ganharam a solidez intelectiva de uma experiência cabalmente vivenciada. Era mais como um lance sensorial, um flash dos sentidos contra uma superfície opaca e perfeitamente polida. Jenner sabia do quanto a vida era feita disso. Se não houvesse uma ranhura qualquer, uma cor por mais esmaecida que fosse no fundo tridimensional do coração e mente humana, que registram o instante vivido na forma de uma emoção, dor ou prazer, tudo passaria como se passa num sonho sem sonhos.
Portanto, Francis Jenner tomou um susto ao se ver do lado de fora da catedral e acompanhar, com um estranho fascínio, os passos cambaleantes daquele triste farrapo humano. Mas, à medida que o observava, seguindo seu encalço pelas ruas tortuosas e cheias de gente, percebeu qualquer coisa que não se coadunava com a condição de indigente, ou mesmo de simples ébrio daquele homem que ia a sua frente. Este já não cambaleava e passou a adotar um passo firme e regular, como o de um homem perfeitamente sóbrio. A cabeça erguida e os ombros alinhados, a postura empertigada revelava orgulho e altivez. A barba ruiva, que era postiça, ele retirara e a guardara no bolso.
Jenner, cada vez mais intrigado com aquilo, teve que apertar o passo para não perdê-lo de vista em meio à turba que se adensava nos bulevares, cafés e bistrôs de Montmartre. Mas Jenner logo viu que isso não aconteceria. O homem movia-se em meio à multidão como a barbatana de um tubarão singrando as águas de um mar agitado, ou uma comprida locomotiva, negra e reluzente, cortando as estepes intermináveis. Bem à vista e inconfundível.
Por fim, o sujeito, com um movimento ágil e impaciente, despiu-se dos andrajos e, jogando-os com displicência a um canto, entrou num dos cafés. Lá dentro, dirigiu-se imediatamente a uma mesa onde pareciam aguardá-lo um rapaz mais ou menos da sua idade e uma garota mal saída da adolescência.
Jenner, discretamente, procurou uma mesa vaga próxima à deles e sentou-se para ver se escutava algo do que diziam.
Passaram-se vários minutos e nenhum dos três disse uma única palavra. Finalmente, aquele que estava acompanhado da garota falou.
– Então, Pierre, tudo conforme o combinado?
Pierre, um tanto contrafeito, meneou a cabeça num gesto de assentimento.
– Ótimo. Maravilhosamente ótimo. Ótimo.
– Você acha isso? – objetou Pierre, debruçando-se sobre a mesa. – Quanto a você, Marguerite, também acha que está tudo ótimo?
A garota pareceu surpresa com a pergunta.
– Eu?
– É, você. Acha que está tudo bem. Que tudo vai ficar bem? Que tudo vai continuar bem?
– Se o René diz...
– Não quero saber o que diz o René. Quero saber o que você acha – inquiriu Pierre, agressivo.
– Ora, Pierre. Você não concorda que é um pouco tarde para isso? – insinuou René com um sorriso.
Pierre levantou-se da mesa bruscamente.
– Querem saber de uma coisa? Para o diabo vocês dois.
Dizendo isso, retirou-se. René, tentando disfarçar seu desconforto, trocou um sorriso amarelo com Marguerite.
– Ele pode ter razão, René. Acho que nos precipitamos. Ninguém garante que eles não nos encontrem.
– Mas não é exatamente isso o que queremos? Não foi para isso que nos preparamos esses anos todos? Hein? Pierre, você e eu. Estamos todos aqui. Compreende?
René fez um rápido movimento com os olhos, indicando Jenner, e estendeu a mão sobre a mesa. A garota estreitou-a e, depois de um instante demorado, como se refletisse sobre alguma coisa, sacudiu a cabeça num gesto de concordância.
Francis Jenner, sem atinar com nada daquilo e julgando a coisa toda uma rematada tolice, estava a ponto de desistir e retomar seu caminho quando viu Pierre entrar novamente no café e ir se juntar outra vez aos seus amigos.
– Pierre – disse René com um sorriso cândido; e reparando no nervosismo do companheiro, acrescentou: – Admito ter pensado, não sei por que, que demoraria um pouco mais. Enfim...
Não demorou muito, como se estivessem o tempo todo no encalço de Pierre, para que um grupo armado de homens adentra-se o local e se dirigisse diretamente para a mesa onde estavam ele e seus companheiros. A um comando, eles levantaram-se pacificamente e se deixaram escoltar para fora do café. Porém, quase à saída, René voltou-se discretamente para Jenner e sinalizou em direção à mesa que ele e os demais acabavam de deixar. Jenner, confuso, custou a acreditar que o outro lhe fizera um sinal. Isso era absolutamente impossível. De qualquer forma, mesmo se sentindo um completo idiota, resolveu inspecionar a mesa. Não havia nada ali além de copos parcialmente cheios de um vinho tinto, queijo e biscoitos. Sequer havia uma toalha onde poderia estar oculta alguma coisa ou rabiscada alguma mensagem secreta. Tolice. Mas, por via das dúvidas, apenas por descargo de consciência, Jenner resolveu suspender os copos...
Sob o copo do qual se servira René, encontrou um pequeno embrulho que, ao primeiro contato, revelou tratar-se de um objeto sólido, pouco maior que um escudo (moeda então em circulação) e coisa menor que um medalhão. O objeto estava enrolado num guardanapo. Lançando um olhar desconfiado para os lados, Jenner retornou à sua mesa e desenrolou, furtivamente, o objeto. Tratava-se, como desconfiara, de uma espécie de medalha. Sopesou-a na mão e viu que a mesma havia sido cunhada em ouro maciço e que trazia, em ambas as faces, uma curiosa efígie. Duas víboras enroscadas, cada qual com a metade de uma rosa despetalada entre as mandíbulas. À vista disso, a sensação que sentira em Notre-Dame, a vaga e indistinta associação de lembranças, começava a plasmar-se em imagens, como quando se dissipa a neblina numa tarde enfumaçada de outono e retomamos, paulatinamente, posse daquilo que nos fora subtraído do campo de visão. Foi exatamente isso o que Jenner sentiu. Finalmente, podia ver o que sempre estivera ali, abrigado nos recessos e esconsos de sua mente.
Francis Jenner tinha cinco anos na ocasião em que os esbirros da Santa Sé levaram seu pai, para nunca mais devolvê-lo. Jean Jenner, o pai, trabalhava, na condição de leigo, como auxiliar administrativo dos bens da Igreja na comuna de Évreux. Naqueles últimos dias, antes de ser conduzido à prisão, Jenner lembrava que seu pai, um homem ordinariamente pacato e afetuoso, passara a se comportar de uma maneira estranha. Gesticulava e vociferava feito um lunático, dizendo-se perseguido por vozes e sombras que ameaçavam destruir a ele e a sua família caso se recusasse a executar sua vontade, até que não pôde mais resistir-lhes. Tomou de uma pistola e aguardou pacientemente numa esquina, durante uma noite de frio hibernal, a passagem de uma influente personagem eclesiástica. A vítima, aquele que viria a se tornar o bispo Tosseau, sobreviveu ao atentado, mas a acusação de tentativa de assassinato, somada aos resultados da diligência que se seguiu, a qual apurou seu envolvimento com os membros de determinada seita satanista, custara-lhe a vida nos calabouços da Inquisição.
Durante as investigações, agentes do Santo Ofício procederam a uma minuciosa revista na propriedade dos Jenner. Procuravam provas que comprovassem sua ligação com o culto profano. Apesar de nada encontrarem de concreto, fizeram constar nos autos do processo que “invisíveis indícios, na forma de uma aura maléfica, impregnava o ambiente no qual o acusado vivia”. Isso, por si só, bastava para provar sua associação com os hereges e, portanto, justificava suficientemente sua condenação.
Jenner lembrou-se que um dos agentes, ao se abaixar para investigar qualquer coisa sob o tapete no gabinete de trabalho de seu pai, deixara cair uma medalha idêntica àquela que ele tinha agora nas mãos. Vira-a nitidamente antes que o agente a apanhasse. Mas esquecera completamente o fato até o presente momento, por não poder, naturalmente, emprestar-lhe nenhum significado.
Olhando para o horrível par de víboras, retratadas em suas contorções lascivas, destrinchando ferozmente uma rosa, símbolo místico de elevada sacralidade, Francis Jenner compreendeu de repente o que aquilo representava. A acusação estapafúrdia e bizarra que redundou na morte de seu pai, o poderoso e carismático bispo Tosseau, o ataque aparentemente leviano de Pierre em Notre-Dame, o encontro deste com René e Marguerite e o diálogo desconexo que então tiveram, a subsequente chegada do grupo que os levara, na melhor das hipóteses, para uma prisão, o sinal que René lhe fizera como se o estivesse esperando para entregar-lhe a estranha medalha, só podia significar uma coisa: que ele, Francis Jenner, estava de algum modo indissoluvelmente ligado ao que quer que fosse de extremamente misterioso e, a julgar pelos indícios, tremendamente maléfico.
Jenner levantou-se, disposto a ir embora, quando viu sobre a mesa o guardanapo amassado em que estivera embrulhada a medalha. Apanhou-o num impulso e desdobrou-o nervosamente.
Com o coração congestionado, leu o endereço ali escrito: Rue Lafayette, 666.
XI
Era a manhã do segundo dia da oitava semana desde que a pequena flotilha deixara o porto de Palos, na Andaluzia, para se lançar ao mar em sua duvidosa aventura exploratória. E a despeito da apreensão da tripulação, o tempo surpreendentemente vinha colaborando e não dava sinais de mudar, pelo menos nas próximas vinte e quatro horas. Um vento moderado, entre 12 e 14 nós, soprava à popa com uma regularidade promissora. Tudo isso, que poderia parecer insignificante noutras paragens e circunstâncias que não aquelas, era por si só um alívio e uma esperança que todas as histórias contadas a respeito da má fama daquelas águas não passassem de tola e risível mistificação. Essa sensação de alívio, principalmente, Guttorm Kristensen via bem no rosto dos demais tripulantes, embora ele próprio não partilhasse dela; tampouco via isso na face de seu capitão. Todavia, sabia que o que mais inquietava Colombo e o que podia fazê-lo duvidar do sucesso de sua empresa era outra coisa, bem mais tangível que qualquer fantasmagoria. O que preocupava Cristóvão Colombo eram seus próprios comandados. Aquela tripulação, exceto Kristensen e um ou outro marinheiro, era composta de uma mixórdia de homens que pouco ou nenhum conhecimento tinham de embarcações e viagens de longo curso. Na falta de recrutas apropriados, por temerem ou não acreditarem no sucesso da empreitada, os oitenta e oito marinheiros necessários para levá-la a cabo foram retirados das galés e prisões e engajados praticamente à força pela marinha real espanhola. Portanto, um motim, se as condições do tempo mudassem drasticamente ou se a viagem se prolongasse em demasia, não estava descartado. Não obstante, havia ainda outra preocupação no ar, e essa era quase que exclusivamente de Kristensen.
Akbar e seus companheiros inquietavam-no de um modo curioso. Não que suas atitudes levantassem suspeitas ou dessem margem a qualquer reclamação. Pelo contrário, comportavam-se de uma maneira sóbria, adequada, quase adequada demais... Mantinham-se à parte da tripulação e procuravam deliberadamente não interferir de nenhuma forma com a rotina dos trabalhos a bordo. Colombo, ainda ressentido e muito ocupado com outras questões, parecia tê-los esquecido completamente, e eles, aceitando sua indiferença como um fato natural, não demonstravam nenhum incômodo com isso. Passavam a maior parte do tempo entocados em seu cubículo claustrofóbico, sob o tombadilho. Subiam apenas para as refeições e para esporádicos passeios ao ar livre. Mesmo assim, nessas ocasiões, pouco falavam entre si ou com qualquer outra pessoa; ou melhor, suas vozes quase nunca se faziam ouvir. Era isso justamente o que inquietava Kristensen. Pois eles se diziam mercadores, e o sueco sabia por experiência profissional que, se existia neste mundo uma espécie inveterada de palradores, esta estava entre a classe dos negociantes. Mencionara o caso com Colombo, mas o comandante, homem pragmático como era e habituado a não dar importância, desde que isso não afetasse seus negócios, ao comportamento excêntrico de quem quer que fosse, limitou-se apenas a dar de ombros. Bobagem, dissera ele. Sim, bobagem, concordou Kristensen. Então ocorreu um fato surpreendente que novamente trouxe à tona sua inexplicável inquietação em relação àqueles homens. Foi assim. A Santa Maria deslocava-se tranquilamente, velas infladas, impulsionada por rajadas de vento que sopravam de noroeste. Repentinamente, as rajadas cessaram e se instalou por cerca de cinco minutos uma inesperada calmaria. As velas murcharam em seus mastros e a nau diminuiu sua velocidade quase que instantaneamente. Súbito, o vento soprou com força, mas desta vez de sudoeste, o que provocou uma guinada inesperada em todo o velame. O mastro principal, posicionado a sotavento, desprendeu-se de suas amarras e arremeteu violentamente, como um aríete, na direção de alguns homens, inclusive Akbar e seu grupo, que na ocasião faziam um de seus passeios silenciosos pelo convés. Três marinheiros que estavam mais a frente foram colhidos e lançados ao mar como folhas secas. Mas quando o desastre parecia completo, quer dizer, quando Akbar, Green, Winckler e Albuquerque estavam a ponto de serem atingidos pelo mastro desgovernado e arremessados ao mar ou mesmo esmagados contra a amurada do convés, o gigantesco mastro principal, pesando não menos que duas toneladas, como se uma mão poderosa o tivesse contido em meio de sua trajetória assassina, estacou a centímetros de Akbar e seus amigos. Exclamações de surpresa choveram de todos os lados. Primeiro de alívio por se ter evitado uma tragédia, depois de assombro e perplexidade. Como era possível aquela parada súbita do mastro? Colombo, porém, não concedeu-lhes tempo para maiores especulações. Ordenou, enfático, o recolhimento dos homens lançados ao mar e o imediato controle da embarcação. Apenas Kristensen, guinando a roda do leme para orçar a proa a barlavento, teve tempo para as devidas considerações. Não foi muito longe, todavia. Tudo era por demais enigmático. Mas prometeu a si mesmo que dali para frente trataria de prestar mais atenção naquele estranho grupo de mercadores.
Isso, contudo, não trouxe nenhum dado novo. Menos de uma semana mais tarde, um marujo empoleirado na gávea do mastaréu gritou a plenos pulmões que tinha avistado terra. Akbar e seu grupo desapareceram, misteriosamente, naquela mesma noite. No dia seguinte, por ordem de Colombo, com Kristensen a frente, foi feita uma busca minuciosa em cada canto da embarcação. Foi averiguado que um dos escaleres e uma quantidade considerável de mantimentos tinham desaparecido. Akbar e seus discípulos nunca mais foram vistos. Francisco Pizarro e sua companhia de desbravadores, anos depois, mais ao sul do novo continente, em sua busca sanguinária por ouro, ouviriam falar de um grupo de homens brancos que vagavam por aqueles confins e eram temidos e reverenciados como grandes feiticeiros pela população Inca. Dizia-se ainda que, no interior do que viria a ser a floresta amazônica, fizeram erguer, em honra a seu deus pagão, um curioso monolito de ouro, moldado na forma de um par de serpentes, cada uma delas com a metade de uma rosa negra despetalada entre as mandíbulas.
A forma que comportava o famigerado ídolo pouco interessava a Pizarro, bastava apenas sabê-lo de ouro maciço. Por isso, na condição de levar dois terços de tudo que fosse encontrado, liberara seu melhor mateiro e batedor, um esquivo índio asteca, para acompanhar aquele grupo de religiosos que se dizia preocupado em estudar e posteriormente destruir mais um dos inúmeros cultos profanos que abundavam naquelas terras selvagens.
O bispo Tosseau, desprendidamente, em perfeito acordo com seus votos de pobreza e castidade, travestido de padre missionário, antecipando, a seu modo, em trinta anos aquilo no qual se constituiria, embora dentro de outras bases, na missão da Companhia de Jesus, aceitara prontamente, e sem ao menos discutir, as abusivas condições do espanhol. A ele e aos seus monges interessava apenas uma coisa. Resgatar o amuleto das mãos impuras de Akbar e estabelecer, de uma vez por todas, sua conjunção com a Mansão da Rue Lafayette. O Ser confinado entre suas paredes, que se nutria da consciência, do discernimento e da liberdade daqueles que eram-lhe oferecidos, ansiava com impaciência por um espaço mais vasto.
XII
O tempo caminha na velocidade de nossas urgências. Ao menos era isso que pensava Francis Jenner quando refletia sobre a influência que essa incomensurável dimensão exerce sobre a vida dos homens e sua relação com o próprio sentido de sua moralidade. Mas ali, entre as paredes (se é que aquilo que isolava seu espaço interior do mundo lá de fora podia ser chamado assim) da Mansão da Rue Lafayette, esse axioma pessoal, a duras penas estabelecido como balizador e guia de seu agir e raciocinar o mundo a sua volta, parecia completamente subvertido. A noção de que o exercício de sua vontade perdera a sustentação pela insólita ausência do elemento temporal responsável por articulá-la, por conduzi-la de um ponto a outro, abismou-o terrivelmente. Naquele espaço assombroso e inominável o tempo fora como que expulso. Era como uma cápsula, um corpo, um estado de matéria qualquer indestrutível, porque livre do desgaste dos dias, dos anos, dos séculos. Talvez Deus habitasse um lugar semelhante. Apenas Espaço, do qual o Tempo tenha sido expurgado, deixando apenas a eternidade, a imutabilidade, a indestrutibilidade de seu poder e majestade.
O pensamento de Jenner, sua existência cerebral, sua percepção sensorial foi pouco a pouco se eclipsando. A desconfiança de que fora inexplicavelmente atraído para uma armadilha por René e seus amigos, e que todos eram cúmplices do bispo Tosseau parou de perturbá-lo. Francis Jenner, na eternidade, em algum momento encontraria Deus perambulando entre as paredes da Mansão da Rue Lafayette.