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Ele está completamente sozinho agora que ela se foi. Inclina o corpo de vez em quando, depois de olhar para os lados, procurando alguém, mesmo sabendo que não há viva alma dentro do vagão. Agora que ela se foi, ele pode flatular à vontade. O trem anda devagar, esperando a movimentação de um inexistente trem à frente. Ele parece estar mais além do que aparenta: contempla a paisagem de árvores envoltas na neblina da manhã com um sorriso aparvalhado nos lábios. A moça era bonita, realmente bonita. Tinha traços selvagens. Não era do tipo que caía em qualquer conversa, em qualquer melindre. Era o tipo de moça capaz de deixar uma legião de rapazes apaixonados. Esse cara, esse cara havia tido sorte: vi a maneira hesitante como ele, às vezes, repousava as mãos nos joelhos dela. Esse cara estava completamente apaixonado e confuso; percebi pela maneira como ele fitava o chão enquanto ela estava desabada no ombro dele, dormindo, babando em seu moletom preto. Foi uma longa viagem de cinqüenta minutos para ela, que morria de cansaço, e uma viagem das mais curtas para ele, que morria de amores e de dúvidas; queria exigir respostas dela, queria soltar uma avalanche de perguntas para cima dela; queria se situar, queria saber em que tipo de chão pisava; não queria ter o coração obliterado, desgraçado e olvidado - não depois de tanto tempo se sentindo um boneco de vitrine, vestido conforme a ocasião e sem vida. Oco. Sua confusão vai ganhando mais força a cada minuto passado, a cada metro percorrido; os "sim" e os "não" se convergem na mesma massa disforme e fragmentada, abstrata e indecifrável, que ele ora julga ser amor, ora julga ser ódio, sem nunca encontrar um alicerce em que possa depositar suas teorias. O que ele não sabe é que eu sei que suas respostas nunca virão, e que suas perguntas percorrerão quilômetros, vencerão abismos geográficos que seu bolso jamais poderia pagar, e ele continuará na mesma, à deriva no mar que criou, olhando a barca que construiu com o casco furado, boiando no negrume gélido, sangrando lentamente uma ferida que quis expor escancarada. A paisagem do lado de fora se altera. Sei que do lado de dentro dele também. Um sábado de manhã... Fico me perguntando a imensidão das expectativas que foram criadas e postas à bancarrota. Será? Agora ele escreve desesperado num bloco preto. Escreve, pára, pensa, coça a cabeça, volta a música no tocador. Escreve. As sextas-feiras não costumam ser boas àqueles que esperam algo mais de alguém que pouco conhecem. Ele não era o primeiro e nem seria o último a voltar pra casa com uma bomba-relógio como marca-passo. O que eu sei por que vi e que ele não sabe - porque se preocupava em resolver o desconforto intestinal - é que ela está tão confusa quanto ele; percebi no olhar que ela lançou da plataforma para dentro do trem, diretamente ao lugar onde antes estivera, e sorriu-se, sonolenta, mas satisfeita com a companhia, querendo mais do que sentiu no pouco que cedeu. É a estação final, e ele dorme pesado com a cabeça recostada na janela. Ninguém o acorda. Ninguém o nota.

(????????????????????????????????)

06/03/2012

CKY -Don't Hold Your Breath

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 06/03/2012
Código do texto: T3539022
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