Ácaros Criminais
Hoje o dia amanheceu misteriosamente opaco. Não consigo enxergar muito bem o que há lá fora, o que vejo são apenas manchas. Manchas em movimento. Mas aos poucos tudo foi se desembaçando e pude ver outros tempos.
A rua de casa, onde sempre repousava um bêbado ou um mendigo em suas calçadas. Aquele bando de crianças indo de um lado para o outro, empinando papagaio. Que beleza!
As nuvens passam e o tempo nubla novamente. Agora são os anos de minha adolescência que vejo logo ali. Aquele garoto magricelo e cheio de espinha, vês? Era eu. Um rapaz idealista, mas tímido. Um panfletário calado esperando que alguém fizesse sua revolução íntima. E essa pessoa acabou de chegar: Maria Adelaide. Perceba que as nuvens se foram. A sua presença tem esse efeito.
Ela amava aquele garoto franzino, ingênuo e estúpido. É o que gosto de pensar. Em uma noite estrelada me ensinou o que era amor. Mas aprendi muito mais com ela. Aprendi a ter atitude mesmo que meu cérebro implorasse de joelhos para que eu não bata em um brutamontes com o dobro da minha altura e largura que estivesse espezinhando minha garota. E também aprendi a encarar tudo com senso de humor mesmo tendo apanhado do valentão e perdido quatro dentes. Ela era uma musa, literalmente.
Mas até as musas se vão um dia e ela foi justamente no último do ano. Daquele ano maldito. Desde 1950 vivo em um blecaute. Talvez eu esteja exagerando, afinal tive vários momentos de alegria. Alguns até de intensa alegria. Mas nada se comparava a estar perto dela.
Me casei, tive um filho, consegui um emprego, mas não vejo agora lá fora nenhum pedaço do meu humilde casamento com Edwigges, nem do meu primeiro dia no Departamento de Polícia. Mas o dia em que Cássio nasceu, desse me lembro perfeitamente. Estava no hospital andando em círculos, quase abrindo um fosso circular no chão da enfermaria. Então me chamaram e eu fui correndo. Edwigges estava com as olheiras inchadas e os olhos vermelhos, já o meu garoto abriu o berreiro. Eu chorava. Ria e chorava. Enxuguei diversas vezes as lágrimas com o paletó. O menino já estreou no mundo com estilo: tinha uma coleção de fios de cabelo isolada na testa, como se fosse um topete. Puxou o charme do pai.
O que vejo pela janela é uma massa amorfa: uma ambiguidade de cenas, ora tristes ora felizes. Meus vergonhosos pileques na presença da família, Cássio de uniforme voltando da escola, algumas brigas no Departamento, meu filhote todo entusiasmado por estar namorando. Só o rosto de duas pessoas são constantes: a minha cadavérica face e o jovial semblante de Cássio.
Ele era assim expansivo, espontâneo, cativante. Não lembrava em nada a mãe ou eu. Ainda bem! Lembrava outra pessoa. Alguém do passado. Cássio brilhava enquanto eu nunca reluzi. Posso vê-lo ao meu lado agora, se desmanchando em sorrisos por ter passado na faculdade de Medicina. Mas os sorrisos se foram, a festa acabou, só resta eu e ele no recinto. Um filho envergonhado observando o patético e desastroso pai caído ao chão quase se afogando no próprio vômito.
Por isso não tive mais coragem de vê-lo. Não queria atrapalhá-lo. Morar fora de casa foi uma de suas melhores decisões. Uma alcoviteira e um alcóolatra: que exemplos para um garoto! Foi um milagre ele ser o que é. Aceitei o emprego de arquivista no depósito de lixo, quer dizer, no arquivo da polícia. Depósito de lixo era o apelido carinhoso que lhe dávamos. Não teve nem choro nem vela: depois de perder o respeito do filho e da corporação eu merecia.
Pense num indivíduo que atravessa a cidade, enfrentando uma multidão de pessoas engarrafadas num ônibus e duas ladeiras, só para ficar o dia todo sentado em uma sala catalogando casos que nunca serão resolvidos. O mundo pegando fogo e eu ali, num lugar onde o tempo não existe. Falava-se em revolução, em golpe, reformas de base, Deus e a família. Mas no Arquivo Geral da Polícia só se falava sobre o placar do último jogo do América, de vez em quando do Fla-Flu, até porque não dá para não falar de um Fla-Flu. Como diria Nelson Rodrigues, alguns clássicos morrem, menos o Fla-Flu.
Sim, eu lia Nelson Rodrigues. Eu sempre li muito. De Monteiro Lobato fui á Flash Gordon. Do espaço sideral migrei para a Corte de El-Rey. Do Bruxo do Cosme Velho fui á Dotoiévsky. Continuei a caminhar meus olhos por muitos outros mundos feitos de papel. Os que mais gosto, confesso, são os romances policiais e isso não se deve á profissão. Os grandes mestres sempre traçam perfis psicológicos dos seus personagens, demonstrando que para se tornar um criminoso é preciso mais do que simplesmente nascer torto. É disso que gosto: dessa dissecação do crime.
Meu pai não acreditava nessas teorias científicas de botequim sobre a origem biológica do crime. Para ele tudo isso era papo de médico frustrado por não ser policial. “Tá cheio de neguinho por aí que inventa de andar na corda bamba e quando cai diz que é culpa do Diabo”, dizia ele. . Acreditava no livre-arbítrio como a origem de todo bem e de todo mal da humanidade. Hoje até que concordo em partes com ele. Era um humilde escrivão de polícia, mas muito culto. Se duvidar era até mais inteligente que Ruy Barbosa! Ele sim era um boêmio com B maiúsculo. Acreditava no livre-arbítrio como a origem de todo bem e de todo mal da humanidade. Grande homem meu pai.
Mas enfim, falava sobre romances policiais. Conan Doyle, Raymond Chandler, Agatha Christie: eles todos são meus companheiros de trabalho. Costumo levar um ou dois deles para o arquivo, é o que me salva de morrer de tédio. Posso enxergar lá fora aquele sujeito magro e seco descendo a ladeira carregando uns calhamaços debaixo do braço, como se fosse um professor. Eu tinha até planejado escrever o meu próprio livro. Comecei a escrevê-lo em fins de setembro, mas não o conclui: vim a falecer em outubro.
Festim das Sombras, esse era o seu título, falaria sobre um crime cometido em São Paulo. Uma jovem que foi encontrada morta em uma rodovia. Sua família, tarimbada no high society paulistano, contrataria um detetive particular, insatisfeita com o rumo das investigações policiais. Esse detetive, que coincidentemente se parece muito comigo, descobriria que ela fora assassinada numa festa de arromba como parte de um ritual de magia negra feita por excêntricos milionários.
É meio bizarro, mas me inspirei em um caso real. Foi em 1962, se não me engano. O nome da jovem era Arabel Menucci. Li tudo nos jornais. Desde o primeiro momento achei tudo muito estranho: uma jovem rica encontrada num acostamento com facadas nas costas? As investigações indicaram Mário Grassi Filho, um empresário, como o autor dos crimes. O motivo era ciúmes, o fundo satânico eu inclui na minha adaptação para ficar mais chique.
Tenho um amigo que dizia: “Quando rico mata por ciúme é ‘caso passional’, quando é pobre é ‘dor de cotovelo”. Não acrescenta nada a nossa conversa, mas gostei da frase.
Á todo instante encontrava alguma coisa que precisava ser retirada ou adicionada na trama. Descobri á duras penas o quão difícil é escrever. Quando a inspiração me vinha, não tinha jeito: ou eu anotava ou tudo sumiria depois. Foi por causa disso que guardei o gorduroso papel que embalava a coxinha que comi a caminho do trabalho certo dia. Rabisquei nela o momento em que Jauvert (esse era o nome do protagonista) descobria uma pista na casa de um dos ricaços.
O que me entusiasmava era que eu poderia fazer algo de útil para a posterioridade. Imagine: “Festim das Sombras de Silo Mendes Javari é sucesso de crítica!” Claro que aí exagerei na imaginação agora, mas mesmo que a publicação não fosse expressiva já seria o bastante: ali estava um livro que em algum dia alguém o encontraria e se divertiria com ele como eu me divertia com os meus. Festim de Sombras junto com Cássio seriam as únicas coisas boas que deixei de legado.
Mas finalmente a tuberculose me venceu. Eu também dei bobeira: ficava altas horas da noite pelos bares, pegando sereno e exagerando na bebida. Aprendi uma coisa: a noite é um pouco ingrata, justo os seus maiores admiradores que são os mais castigados. Não que eu tenha sido o boêmio-mor da Lapa, mas conheci muita gente que se aproximou desse título que faleceram muito cedo. Definharam numa agonia cruel nas próprias camas ou nas macas dos hospitais. Hospitais... me dão calafrios.
Na realidade, penso que a noite seja como os antigos pensadores gregos: é dura com os excessos e simpática ao equilíbrio. Se o sujeito sabe o momento de parar de beber, sabe administrar o seu sono e sabe como escapar de furadas então viverá mais que todos nós, funcionários públicos. E olha que funcionário público é uma das espécies de maior longevidade da natureza!
Em 1972 eu batia as botas. E até acho que demorei. Com a vida que tinha eu estava era fazendo hora extra na Terra, isso sim. Parei de sentir dor, angústia ou cócegas. Ouvi algumas vozes e clarões de luz. Me perguntaram alguma coisa. Eu não me lembro o que respondi. Só sei que logo em seguida me vi em pé olhando para meu caixão. Nossa, eram tantas flores! Mesmo morto quase espirrei. Para que tantas flores? Edwigges sabe que não gosto de exageros, se eu pudesse arrancar aquela salada de pétalas eu o faria sem dó nem piedade.
Revi uns velhos conhecidos. Dentre eles o meu amigo, Figueiroa, aquele da frase que eu contei para vocês. Ele encostou a barriga no caixão e começou a chorar. Quase meteu a mão no meu rosto embalsamado para ajeitar meu cabelo que estava caindo na testa. O chefe do Departamento apareceu, meus primos apareceram. Até um cara da Scuderie LeCoq apareceu e fez um discurso inflamado: “Até quando nossos colegas de trabalho morrerão á míngua?...” Que a míngua nada, eu morri de tuberculose, rapaz!
Quando Cássio apareceu, congelei. Ele abraçou a mãe em prantos, passou pelas carpideiras e me fitou por alguns instantes. Me pediu perdão de novo e de novo. Chorou e ficou ali até chegar a hora do enterro. Me dizia coisas: falava da mulher, do trabalho e do neto á caminho. Tentei abraça-lo, mas atravessei-lhe. Ele pedindo perdão? Não, isso estava errado. Eu que deveria estar fazendo isso. Mas ele não me ouvia. Não aguento, não posso ver isso de novo. Não me faça ver isso de novo, janela, por favor!
Nunca mais o vi. Após o enterro me vi transportado para um buraco escuro cheio de colunas monstruosas. Pouco a pouco fui absorvendo a nitidez do lugar: era o Depósito de Lixo. Confesso que não fiquei surpreso: já tinha o escolhido para ser o meu limbo ainda em vida. E aqui estou desde então. Transito pelos corredores, escalo as prateleiras, assusto os zeladores. Esse é o meu trabalho agora. Nada novo do que fazia no funcionalismo público.
Ultimamente minha diversão tem sido assustar um jovem funcionário. Ele está no meu antigo cargo. Fomos apresentados num dia chuvoso quando ele teve de pegar as pastas na prateleira B28. Descansava lá quando ele apareceu, com fones no ouvido e rebolando. Não resisti: passei por ele como uma brisa. Congelou ao ver aquelas costeletas de outra era e esse rosto sisudo. Juro que ele se urinou. O rapaz ficou dois dias sem voltar ao trabalho. Veja só, virei um fantasma travesso.
Agora até que entendo os meus colegas que assombram casas. Não há muito o que se fazer no além, senão implicar com os vivos. Ou isso ou ficar lembrando do passado. O passado sempre muda e depois de alguns anos o seu ectoplasma começa a vazar e quando você der conta estará completamente louco berrando pela casa. Eu mesmo já cai diversas vezes nas armadilhas da minha cabeça: uma vez pensei que não tinha morrido, noutra me vi cercado de amigos que na verdade eram imaginários.
Uma ideia começou a pinicar minha falecida mente outro dia: porque não concluo o livro agora? Quer dizer, outros espíritos conseguem mandar suas mensagens, porque eu não? Só o que eu preciso é achar um médium nas redondezas. Na verdade, preciso achar um meio de sair daqui primeiro: desde o enterro não consigo sair desse maldito arquivo. E os funcionários daqui não conseguem me ouvir, por mais que berre nos seus ouvidos. Serão todos surdos? Rezo para que mandem algum sensitivo para cuidar da papelada daqui. Até lá continuo sendo um defunto servidor e não um defunto autor.
Já não me lembro quantas vezes já contei a minha história e o meu livro para o pessoal do arquivo, isso sem falar das traças, aranhas e dos ácaros que moram nas prateleiras. Em vida, os odiava, aplicando pena de morte em muitos deles por desacato á autoridade policial, hoje são meus melhores amigos.
Sinto falta das pequenas coisas como sentir o vento batendo no seu corpo, morder uma maçã e ouvir aquele estalo, deixar as ondas do mar se arrebentarem no seu pé e principalmente do toque. Não poder tocar quem você ama, acariciar ou afagar, é a pior das sentenças. Se bem que estando aqui não tenho ninguém que se enquadra nessa categoria.
Anoitece e a cena muda: duas pessoas deitadas na laje da casa observam o céu. Não há lua, mas bate uma brisa deliciosa. Dois enamorados olhando as estrelas, prometendo um ao outro cada uma delas e algo mais. Mesmo que isso não tenha existido, não importa. Se só fosse me permitido ver essa única imagem pela janela por toda eternidade eu não reclamaria jamais. Mas a aquarela já se desmanchou com as novas tintas da cidade. Mais um dia que se foi nessa cidade alucinada, menos para mim. De qualquer maneira, vou sair da frente dessa janela empoeirada. Preciso me preparar para amanhã. O funcionário novo chega amanhã: se por acaso ele conseguir ouvir a fm do Além, quero estar com a minha voz nos trinques...