CARTA DE UM MARIDO DESESPERADO PARA FREUD

Prezadíssimo Senhor Doutor:

Boa tarde, senhor doutor Freud, como anda Vossa Sumidade, o grande pai da psicanálise e afins? Tudo bem consigo? Espero sinceramente que sim. Deixe-me apresentar à Sua Excelentíssima Eminência da Analística do Divã a minha humilde pessoa: sou o José Augusto Du Palo Invictus, brasileiro da gema que escreve a presente correspondência bem daqui mesmo: da terra que tem palmeiras e de onde canta o sabiá.

Sei que o senhor deve ser homem dos mais ocupados, sendo eu sabedor que a quantidade de loucos de pedra e graves desajustados sociais que coabitam nosso planeta é imensa, quase a sua maioria. Para não ser o responsável por malgastar o escasso tempo que o senhor doutor deve ter em disponível para tratar assuntos de amenidades com os entes sãos, acho melhor ir direto ao assunto.

O motivo real dessa missiva, poderá até vir a interessar nalguma das suas pesquisas mais avançadas. Caso contrário nem iria eu incomodá-lo com bobagens genéricas e desinteressantes, logo uma pessoa tão importante como é o caso de Vossa Magnitude Curador dos Desatinados. Agora chega de rodeios e salamaleques e vamos ao que interessa: quero me consultar com Sua Magnificência sobre uns sonhos muito dos estranhos que minha mulher, Marta Margarida do Shibil Invictus anda tendo seguidamente, para ser mais exato, quase que diariamente.

Para o senhor ter uma idéia da barra que estou passando, a mulher chega a acordar em uivos e totalmente empapada em suores e sucos após ser crivada de tremeliques incontroláveis no meio da noite, tudo devido a esses devaneios. Já viu: eu por tabela não durmo quase nada há quase seis meses. Veja o senhor digníssimo cientista dos desenfreios humanos o tamanho do meu problema: Minha Marta sonha quase toda santa noite que tem relações sexuais com Jesus-Cristo, ele mesmo em carne e osso. Eu sei que o senhor vai me dizer com certa razão que não pode o tal em carne e osso, uma vez que a divindade está aparecida num sonho dela e, portanto, não transita nas vias da realidade. A verdade é que não me importo com esses detalhes irrelevantes.

Ao questioná-la sobre as tantas perturbações ela diz-me que é tudo puramente espiritual e nada contém de sacanagem da legítima. Eu não nasci ontem, Vossa Psicanalíssima e acredito nada, nada nessa história contada mais para boi dormir. Porque durante o sono fico lá ouvindo a Martinha se contorcer como uma cobra, a gemer como uma cadela no cio, a suplicar numa voz rouca (que nunca escutei voz nem parecida quando dirigida a mim!), para o tal do ente salvador penetrar nas entranhas dela a fogo e a fundo...

Agora o senhor doutor dos desorientados dos miolos, me diga: que raios pode ser isso de entrar a fundo, senão o bastão batismal desse tal de nosso senhor dos tarados no meio das coxas dela? Ela diz que é apenas uma forma simbólica do amor sagrado dele entrar nela intimamente. Eu particularmente acho que se fosse só esse o caso não lhe traria intercorrências corporais a ponto de empapar-lhe de corrimentos a sua calcinha.

Embora eu até me sinta o mais santo dos cornos - afinal estou supostamente ganhando chifres do mais puro dos homens - Seu Digníssimo Dr. Freud do céu, isso ainda não é o pior. Tem mais...

Agora, a última mania dela é me envergonhar na frente de todos os amigos homens. Porque ela deu de ficar metendo o bedelho nas minhas conversas com os compadres. Vossa Máxima Inteligência Comportamental sabe muito bem o teor que se desenrola numa boa conversa entre homens. Pois Marta fica com os ouvidos de tocaia atrás da porta da cozinha. Se eles falam um palavrão, vem ela a correr como um foguete para a sala e então bate com força a colher de pau na boca do desbocado. Se comentam algo sobre sexo, Marta vem entre dentes cerrados e logo de um sapato bicudo parte um estupendo chute bem no meio das bolas do saco de cada um deles. Marta afirma que é o melhor antídoto para “baixar a libido” e que faz um favor aos meus amigos. Muitos deles, entre atônitos e imensamente doloridos saem de minha casa direto para o pronto-socorro, um horror. Finalmente, se por acaso ela ouve algum compadre comentar algo sobre qualquer mulher considerada no padrão “gostosa”, sai da cozinha portando um rolo de macarrão e os toca para fora da minha casa, afirmando em altos brados que o tal do Jesus dela confidenciou-lhe em sonho que dentro da sua sagrada casa (no caso trata-se mesmo desta minha humilde construção aqui) a única mulher que deve ser mencionada como maravilhosa, especial deve ser mesmo a legítima esposa de Jesus, ou seja, ela...

Vossa Inteligência Superior Dr. Segismundo - posso chamar o senhor assim, de doutor Segismundo? Tratar o senhor pelo primeiro nome parece que cria entre a gente certa intimidade e sinto-me bem mais à vontade... - não seria o caso de eu entrar na justiça contra essa devassa por bigamia? Afinal, o que vale, a lei dos homens ou a lei de deus? E quando as duas são a mesma, como no caso da bigamia? Para o senhor, Doutor Segismundo, ver como isso tudo está me afetando demais os pensamentos.

Pois leia o senhor mesmo um trecho narrativo ipsis litteris de um sonho dela a mim confidenciado na semana passada:

“... então Zé, o senhor Jesus achegou-se bem pertinho da minha nuca com aquele cabelão loiro até os ombros (que me fazia muitas cócegas) e com aqueles imensos e penetrantes olhos azuis, tudo igualzinho àquele retrato dele que comprei ano passado em Aparecida do Norte, e me disse assim, de través, bem no meu ouvidinho direito (porque tudo o que ele faz comigo é pelo lado direito): - Despetala essa tua roupa todinha minha flor de margarida, que eu, teu mestre, assim ordeno. Nada que tem serventia no mundo da matéria é necessário de se usar por aqui no reino dos céus. Apenas eu, teu Jota Cristinho, teu verdadeiro marido posso com as minhas mãos (e o resto), tocar nos pandeiros dianteiros e traseiros da tua alma. Tira tudo, Marta e deita ali naquela maravilhosa cama com dossel de afresco do Michelangelo (o quarto dele ficava na sacristia de uma igreja barroca em São João Del Rey), que o teu salvador aqui vai entrar em você com toda a força que a tua pureza merece...” Ah, seu doutor Segismundo, encerro a narrativa por aqui mesmo que nem eu aguento mais tanta nojeira, tanta baixeza delirante por parte dessa minha mulher tanto santa, quanto devassa. Mas até que acho que já deu para Vossa Sereníssima Magnificência das Ciências Psicanalíticas ter uma idéia da dureza que vem sendo a minha vida de sacrossanto corno do altíssimo.

Por aqui fecho minha narrativa. Grandecíssimo Doutor Segismundo, conto muito mesmo com a sua ajuda. Não posso esperar nada de mais ninguém nessa vida. Até o incorruptível homem-deus se bandeou para o lado negro da força, como diria o Darth Vader (desculpe a brincadeira na escrita, doutor, mas acontece que se eu não tratar o assunto com uma certa leveza de alma, será eu quem irá perder as arruelas todas da cabeça).

Agradeço antecipado pelo auxílio e fico no aguardo de notícias

José Augusto Du Palo Invictus,

Vosso humilde criado

P.S.: caso o senhor não saiba ler em português - o que é muitíssimo provável - tenho a certeza que encontrará por aí na Áustria um brasileiro desocupado para fazer a vez de tradutor. Brasileiro na vagabundagem pelo mundo “é mato” como dizem por cá nas terras tupiniquins. Recomendo apenas certificar-se de que ele conheça realmente o idioma alemão e não vá lhe pregar uma bela de uma peça ao inventar caraminholas para trasladar a carta.

(Inspirado num trecho do livro "Serafim Ponte Grande" de Oswald de Andrade)