Fogo que não queima
De todas as formas de sorrisos que havia no mundo, estou certo de que o meu jamais poderia ser classificado como verdadeiro. Aprendi bem cedo que somos semelhantes a passarinhos engaiolados e que, se nos soltarem, não sobreviveremos na floresta pós-moderna. Pois bem! Assumindo a responsabilidade de voar de um lado para o outro na minha gaiola particular, abri o pequeno portão do antro que me escondia havia alguns dias e decidi achar alguma droga psicoativa para esquecer a infelicidade do mundo tangível. O fato é que não achei a droga. O mundo se apresentou de uma forma inebriante, de modo que meus olhos começaram a perscrutar qualquer coisa que pudesse ser considerada real, digo, real para mim. Quase caí na armadilha de começar a criticar tudo o que estava a minha frente; carros, outdoors, idosas, buzinas, autoridades, divindades, é, o mundo mesmo, ou qualquer coisa pós do que já foi uma civilização. Porém, como disse anteriormente, qualquer coisa me inebriava, retardando o meu estado crítico-analítico inerente à minha condição humana. Desci uma pequena rua com alamedas de pinheiros gigantescos que me levaria a uma praça da qual eu sempre me sentava para observar os pombos dançar. Estranhamente, ao atravessar a rua, cheguei à conclusão - como quem percebe haver larvas na goiaba já a mastigando -, de que havia perdido minha sanidade completamente. Nada, nem a morte, poderia me impedir de seguir um grupo de índias que estavam sujas e cheias de mercadorias artesanais e crianças sujas e descalças penduras nas costas. Não sei definir precisamente o que senti; talvez um impulso ensandecido ou uma simples vontade de aprender algum ritual que me tirasse daquele transe. Atravessei a intercessão que nos separavam e as segui até a praça cujo objetivo principal eu havia esquecido. Elas se sentaram nos bancos de cimento, ao lado de canteiros de flores e ervas daninhas que chegavam aos joelhos e, como se quisessem demonstrar que gostavam de sujeira, mato e calor, escolheram o único banco que pegava o sol e que os carrapichos estavam incautos, prontos para serem violentamente mortos, numa tarde de pelo menos 32 graus. Aproximei-me das índias sem saber o que dizer ou o que necessariamente eu queria. Olhei alguns produtos demoradamente, na esperança de acontecer qualquer anomalia, mas nada aconteceu e elas pouco ajudavam diante de minha frustração.
Por fim, perguntei:
- Pra que serve o cesto menorzinho?
- Por frutas, moço, ou o que você quiser. - Respondeu uma das mais feias adolescentes que eu já vi.
Duas se levantaram já ostentando um sorriso satisfatório pela suposta efetuação da venda de um produto. No entanto, me afastei e tirei uma nota do bolso. A mesma que me motivou a sair de casa e me drogar. Vinte reais.
Depositei a nota no pequeno cesto e deixei as índias com seus sorrisos.
A loucura no meu século, ou talvez em todos os outros, se confunde com a normalidade pois o que consideramos normal é deveras louco. Portanto, por mais incrível que me parecesse tal sensação, continuei meu caminho. Meu corpo estava leve de uma forma que eu jamais senti e pela primeira vez pude notar uma presença interior além de pensamentos vagos. Não penso, até hoje, que Deus se manifestou para o mundo através de mim, até porque, tenho sérios problemas para com esta entidade. Sempre me senti assustado com as histórias compostas na bíblia e as condições opostas compostas nos seres humanos. Tais quais os assassinatos e a indiferença. Estar vivo e perceber o quão enigmático e ínfimo é este planeta e seus habitantes perante o universo, me assusta um pouco, porém, por inteiro, não me faz ateu.
Deixei a espontaneidade dos meus impulsos me guiarem pelo calçadão rodeado por lojas e pessoas.
Entrei numa igreja permeada entre quadros com imagens de cristo crucificado, estatuas em gesso de santas e cruzes de madeira. Não me lembro da ultima vez que havia entrado em uma igreja. Sentei. Esperei algo acontecer. Passei duas horas assim. Uma pessoa se aproximou; uma das índias que eu havia ajudado e que, no entanto, eu não a reconheci por conta do efeito de qualquer coisa maior da qual estava acometido. Ela ajoelhou-se ao meu lado e perguntou baixinho:
- Entre duas coisas imutáveis, o meio nunca é vazio. Não há movimento sem impulso e nem impulso sem um meio. O que deveras, então, é o meio?
Ela esperou uma resposta da qual não respondi. Então disse:
- Posso qualificá-lo, único e exclusivamente, como aquele que nunca precisa de nada inteiro. Este é você.
Então a índia permaneceu uns poucos segundos com os olhos fechados numa prece silenciosa e foi embora sem se despedir.
Cogitei o que ela havia dito, como se aquelas palavras estivesse gravadas no meu inconsciente.
Percebi, ao me levantar, que todo o peso do mundo retornara às minhas costas. O dia aumentou a intensidade do seu barulho e o sol decidiu deixar claro quem é a estrela. Todas as pessoas pareciam estar correndo para algum lugar cujo espaço é limitado. Aturdido, andei a passos largos de volta à minha casa.
Foi com grande dificuldade que pude compreender que todas as respostas, esse tempo todo, estavam ali, na minha casa, no meu quarto, a minha vista e alcance, eu só não fui competente o suficiente para enxergar e compreender.
Acendi as luzes da minha cabeça, acendendo o baseado da Providência.