A Lágrima

Eu era novo naquela cidade, e não estava muito satisfeito com o lugar. Na verdade, eu nunca estava satisfeito em lugar algum. Tudo era monótono, qualquer lugar, qualquer pessoa, qualquer coisa.

Até que um dia, na monotonia do percurso diário para o trabalho, eu a vi. Acho que ela sempre esteve lá, mas eu nunca a tinha notado. Bonita, cabelos de um louro escuro, e os olhos... grandes, acastanhados, impressionantes! Nunca em minha vida tinha visto olhos como aqueles.

Passei a fingir que olhava a vitrine só para observá-la através dos vidros. Eu estava deslumbrado com a graça daquela garota, e ela sempre sorria pra mim, um sorriso discreto, doce, enigmático.

Depois de uns dias eu já não parava mais de pensar nela. Saía do trabalho e corria para chegar logo na frente da loja, escapando de ser atropelado, ouvindo buzinadas e broncas dos motoristas, dando encontrões nos transeuntes, tudo para ficar mais tempo a olhá-la. Uma noite, sentado em frente à janela do minúsculo apartamento alugado, olhando os círculos de fumaça do cigarro, um pensamento me ocorreu, me lembrei de que sempre que eu passava por ali me vinha uma sensação de estar sendo observado. Por vezes olhava para trás. Agora eu sabia, eram aqueles olhos, grandes e acastanhados, que me seguiam. Ela me queria! E antes de eu a querer! Pensei nisso e na minha falta de coragem para ir até ela, e no que me fazia fugir, literalmente, sempre que eu via as luzes da loja se apagarem, isso era algo que me perturbava.

Alguns dias ainda decorreram. Eu continuava na minha rotina de observá-la, e ela a me olhar e a sorrir daquele jeito doce e intrigante. Um dia, finalmente, criei coragem. 'Amanhã, depois do trabalho', pensei. Esperaria ela sair e falaria com ela. Iríamos jantar, conversar, e depois, quem sabe a um cinema. Eu falaria do meu amor, e a beijaria...

Então era isso, estava decidido! Naquela tarde mal pude esperar o relógio bater cinco horas, e quando chegou a hora saí correndo, e os quase atropelamentos e os encontrões tornaram a acontecer, até eu parar para comprar flores.

Eu estava muito ansioso. Pensei que seria melhor eu me acalmar. Fui até o bar em frente à loja e pedi um drinque. De dentro do bar, sempre a observar, notei algo estranho. Não a vi. E ela sempre estava lá, trabalhava lá! Imediatamente paguei o drink e saí, atravessei a rua e ao chegar em frente à loja pude confirmar sua ausência. Será que faltou? Logo agora, logo hoje! E se ela estivesse doente? Alguma mudança repentina de horário, talvez.

Já eram quase seis, se ela estava lá devia estar se preparando para sair. Esse pensamento me tranquilizou. Esperei, andei de um lado para o outro na calçada, as flores na mão. A loja já ia fechar e nada dela aparecer. Resolvi entrar e perguntar. Estranhamente, todos disseram nunca tê-la visto, ou conhecido. Fiquei atordoado! Saí de lá sem saber o que pensar. As luzes da loja se apagaram, os funcionários começaram a sair, esperei até o último, e nada da minha garota! De repente me lembrei de que nem sabia o nome dela. Não sabia nada sobre ela, onde morava, telefone, nada! Não havia como encontrá-la. 'Se ao menos eu a tivesse seguido! E esse mistério de ninguém saber quem ela é!... Ela me enganou! Fingiu gostar de mim me olhando e sorrindo daquele jeito, e se foi, e deixou seus colegas a rirem de mim, do palhaço com flores na mão! Que idiota!'

Eu estava arrasado, ferido, revoltado!

Ameaçava chover. Nada mais restando a fazer, fui embora. Atirei com raiva as flores numa caçamba de lixo parada na esquina.

Caminhava com as mãos nos bolsos, odiando mais aquele lugarejo!

Atrás de mim, de dentro da caçamba, em meio a braços, pernas, troncos e cabeças, um par de olhos grandes e acastanhados via eu me afastar. Uma lágrima rolou ali, antes que eu virasse mais uma esquina e desaparecesse da cidade.

Bete Allan
Enviado por Bete Allan em 21/02/2012
Reeditado em 23/06/2015
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