VESTINDO A FANTASIA DE GENTE...
Eu vinha de longe, lá do outro lado da calçada, quando eu o avistei.
Ele, um personagem clássico do folclore carnavalesco, não estava sob os holofotes das avenidas mas enfeitava a comédia diária dos Homens, petrificado numa esquina daquela cidadezinha turística a encenar a alegria dos teatros humanos.
Era perfeito na postura e na indumentária que trazia, dum colorido gritante a chamar a atenção de todos, e nitidamente invocava todas as crianças a tocá-lo, mesmo aquela remota criança que todos dizem habitar o íntimo dos adultos.
Fazia um chamariz duma loja de brinquedos educativos.
Quando me aproximei pude vê-lo mais de perto sem, no entanto, cruzarmos nossos olhares. A perfeição da sua figura me gerou dúvidas...quanto à sua natureza, humana ou não.
Sob um calor infernal trazia as mãos à cintura das suas brilhantes e folgadas pantalonas de cetim carmim, vestia uma camisa leve, de fundo claro com poás verdes e gigantes, o laço duma imensa gravata borboleta dourada e extravagante lhe escondia o pescoço e trazia na face uma carregada maquiagem que delineava seu largo sorriso de palhaço.
Então estava confirmado: ali se configurava um alegre palhaço.
No calendário não era Carnaval mas qualquer festa pode ser temporona dentro dum espírito de alegria contagiante.
De súbito eu enxerguei uma lágrima tatuada sob um de seus olhos que mais parecia fazer parte da face dum pierrô estilizado.
Fantasia de pierrô? Mas não era ele um palhaço? Aquilo me inquietou.
Por um instante tive vontade de tocá-lo ao menos para me certificar se seria ele um boneco com fantasia de gente ou seria gente com fantasia de boneco.
Nada de tão esclarecedor que pudesse mudar o palco da próxima avenida.
De toda sorte eu o senti como um "ser misto", um palhaço- pierrô, sujeito às intempéries dos blocos dos diversos carnavais, e para mim me bastou traduzi-lo assim.
No Carnaval da vida, numa aparente e tão inerte fantasia, há seres únicos em personagens tão idênticos quanto antagônicos que intimamente coexistem sob a percepção da óptica de cada um de nós e foi assim que, num ato de respeito, optei por não tocá-lo.
Dobrei a esquina devagarzinho a deixá-lo para trás naquela sua fantasia que de certo modo também era minha, na certeza de que tudo que não tangenciamos com a realidade das mãos levamos eternizado nos nossos sonhos.
Então retomei na avenida e segui em frente no meu eterno Carnaval, todavia, na minha concreta alegoria de gente.