A diarista
 
     Ela não era nenhuma diarista indicada de boca não! Era terceirizada com carteira assinada e tudo. Outra coisa: ela lavava as janelas da cobertura por dentro e por fora, entendeu? Por fora! Não é para qualquer uma lavar as janelas do décimo sexto todo dia não! Ela levava os cachorros para passear e catava o cocô deles. Colaborava com a limpeza pública e privada, deixando os vasos sanitários tão branquinhos e brilhantes que poderiam servir de espelho. Isso! Seus patrões poderiam enfiar a cara no vaso que se veriam refletidos lá dentro. De tão polidos. O vaso, não os patrões. Agora vinha a patroa e a acusava de roubar os copos??? Vê lá se ela roubaria copos. Seria mais vantajoso sequestrar os poodles e pedir resgate.
     Era pobre, sem dúvida, mas burra não. Sabia ler e escrever e só abandonou a escola para cuidar da mãe doente. Vendia flores aos casais nos barzinhos, recitando poemetos de amor que lia no Arauto do Norte. Certa madrugada, um estudante de direito comovido deu-lhe um minidicionário. Ela ficou encantada. Encapou-o, desenhou uma carinha sorridente e até batizou o exemplar com um nome: Nicanor. Leu o Nicanor todinho, circulando nele as palavras que achava mais engraçadas abricó, cafuné, balacobaco, chinfrim, geringonça, quiprocó... “Nossa, Nicanor! Essa foi ótima! Urucubaca...”
     Com quatorze anos, já trabalhava em casa de família. Levava os jornais velhos para o cortiço, quando se distraía fazendo palavras cruzadas. Aos poucos, foi se interessando pelas notícias, recortando e colando num caderno as manchetes inusitadas, "Padre que voava dependurado nos balões desaparece", "Trepadas mal sucedidas: cachorro apavora clientes de um motel", "Manual contra zumbis é distribuído na Inglaterra", "Múmia rouba banco nos Estados Unidos", "Homem consegue prever o futuro das pessoas pelas nádegas"... E assim foi se tornando esse tipo raro de gente sábia, mas sem diploma e oportunidade. Ficava pouco tempo nos empregos, não por preguiça ou por incompetência, mas por não se conter e expor a asneira alheia, perguntando o significado dos vocábulos: “Você sabe o que significa Matusquela, Doutor Oswaldo?” Não, o seu quinto patrão, um desembargador,  não sabia. E o que ele fez? Demitiu-a, afinal ele era doido de ficar com uma desaforada em casa? Por fim ela se tornou aquela criatura vernacular que tirava a poeira das casas e tornava os móveis tão lustrosos que chegavam a refletir os defeitos fisionômicos dos seus ilustres habitantes. Patético, mas verdade.
     Não tinha dinheiro para viajar ao exterior e é bem provável que nunca teria, porém viajava nas narrativas dos livros que comprava nos sebos e suas emoções não eram menos verdadeiras por isso. A viagem era virtual, mas a emoção era real. Que comprovassem os cientistas por meio da ressonância magnética.
 Pois é, ela sabia o significado de patético, narrativa, virtual e ressonância além de muitos outros. Sabia inclusive que Cleópatra era possivelmente bem feia, de acordo com uma moeda de prata de dois mil anos que revela que a rainha egípcia tinha a testa estreita, o queixo pontudo, os lábios finos e o nariz adunco. Aliás, acrescente-se ao seu vasto vocabulário o significado da palavra adunco!
     Talvez seja por isso que a atual patroa começou a pegar no pé dela: a única coisa que a madame tinha era dinheiro. Na semana passada, a burguesinha criticou seu nome:
     "Marjorie... Não sei por que pobre gosta tanto de nome estrangeiro".
     Ela retrucou:
    "Tenho orgulho do meu nome, significa
 A que tem supremacia, a propósito, a senhora sabe o significado do seu nome, Dona Ofélia?"
  Não aguentou naquele dia e respondeu mesmo. Azar. A madame ficou incomodada uns três dias, deve ter pesquisado na internet e, na última semana, deu para aumentar as provocações.
     Entretanto ela não daria àquela cobra o prazer de ficar nervosa.
    Foi ao parque municipal e se pôs a respirar dia-frag-ma-ti-ca-men-te. Leu numa revista que era bom para os nervos. Também pensar em coisas positivas... Merda! Não conseguia!  Inspirar e exalar profundamente até que sim, mas os pensamentos eram slides com pequenas variações do mesmo semblante: Dona Ofélia acusando-a de ladra. Ladra! Ladra! Ladra!
   No parque, ela mantinha os punhos e os olhos fechados. Assentada no banco em frente ao lago, ela era uma mulher que lutava consigo mesma.
   Foi então que lembrou da terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo ladrar, que possuía os significados l
atir, gritar, esganiçar.
       E ela gritou.
    Um grito agudo que pareceu parar o parque em fotografia sépia: transeuntes, empregadas e desempregados estáticos, quase num só gesto amedrontado e curioso. Chegou a ter a sensação de que o gritou criou marolas na superfície do lago verde musgo.
     Agora, com os olhos bem abertos,  se lembrou de que o mundo não era formado apenas por ela e a patroa. Não existiam somente essas duas palavras. Ao seu lado esquerdo havia um pipoqueiro que jogava piruás aos pombos. Acima, via-se a quintessência de uma quaresmeira; à direita, um rosto cheio de rugas risonhas.

       Ergueu-se.
     Por que colocar os holofotes sobre ela e a patroa sendo que ali, naquele presente, havia ela e uma infinidade de outras coisas-palavras? A patroa que se resumisse à situação que criara.
      O Universo é um poema de infinitos versos muito maior que os insultos da dona Ofélia.
    "As muitas palavras me curam" pensou "o importante é saber ler seus diversos significados. “ E concluiu “vou registrar isso no meu diário.”

    Comprou algodão doce e um ingresso para o pedalinho. Ajeitou-se de pernas pro ar na precária embarcação e ficou lá:  flutuando no meio do lago, imaginando que comia as nuvens com as quais brincava de longe, com o olhar.
Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 11/02/2012
Reeditado em 11/02/2012
Código do texto: T3493537
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