Um Dia no Meio do Inverno

As pessoas circulavam na capital mais meridional do país cobertas com todos casacos, gorros e cachecóis que tinham, vapor saía de suas bocas quando falavam. Era o inverno mais rigoroso em várias décadas. Mas dentro do centro comercial Rio Center a calefação garantia um ambiente mais confortável, e os clientes eram vistos carregando a roupa de frio nas mãos. Em uma das lojas, especializada em cosméticos e perfumaria, Thiago trabalhava com seu habitual joie de vivre, em uma calça preta de couro sintético e uma camisa branca com detalhes bordados. Atendia às clientes com toda atenção e prestatividade, conhecia muito bem a linha de produtos. Nem abalava seu bom humor o fato de que Sílvia, a gerente, detestava-o, e fazia o possível para tornar seu dia um inferno, todos os dias, com uma folga por semana apenas. Ela era uma solteirona bastante elegante, metida em um tailleur malva; trabalhava havia muitos anos ali, e seu perfeccionismo beirava o doentio. No caixa do cinema trabalhava Cíntia, uma jovem de ascendência alemã que fazia faculdade pelas manhãs e seria em breve enfermeira. Era doce e cordata, vestia-se com recato, e frequentava a mesma igreja evangélica que Leopoldo, alguns anos mais velho, funcionário de uma loja de calçados, ali mesmo. Ele era um rapaz sério e trabalhador, não bebia, e sonhava com a promoção a gerente, quando poderia usar o paletó verde da loja. Era também muito belo, um negro de feições salientes, apesar de tímido, e foi Cíntia quem teve que deixar claro seu interesse para que ele agisse. Estavam juntos já havia dois anos, e ele tinha que esperar a última sessão para levá-la para casa, onde os pais dela, ansiosos pelo casamento, aguardavam-nos.

Sílvia recomendou a Thiago que não se demorasse em seu intervalo para fumar: o movimento estava aumentado com todo aquele frio; obviamente era o que ela sempre falava, com uma cara azeda. A loja onde trabalhava Leopoldo ficava no caminho para a saída, e ele parou para admirar o rapaz, enquanto fingia ver as vitrines. O ritual era antigo, e deixava o jovem religioso muito constrangido; preferia simplesmente fingir que nada acontecia, mas a cada vez que olhava para ver se o outro já se fora, os olhos se encontravam e ele tinha uma sensação indefinível. No fumódromo, Thiago encontrou um amigo, um amigo com quem já tivera um caso. Ele sabia da paixão do outro pelo vendedor de calçados, e garantiu que tinha a solução. Tirou do bolso do casaco um vidro de perfume: está em fase experimental, mas eu já vi funcionar; você precisa borrifar o bofe com isto e certificar-se de que você é a primeira coisa que ele toca. O amigo desdenhou, que crendice idiota, o outro insistiu: não vai te custar nada experimentar, quer dizer, custa cem reais. A curiosidade o venceu, pagou. Fumou um segundo cigarro, ia ter que escutar muito na volta.

Ele viu quando Leopoldo passou em frente à loja: devia estar indo almoçar com a namorada na praça de alimentação, ela estava chegando aquela hora. Explicou à chefe que ia almoçar mais cedo, não tinha tomado café, ela resmungou, mas autorizou. Lá estava o casal, ele não tinha bem um plano, sentou-se de modo que sua grande paixão não o visse. Tirou o frasco do bolso e o segurou na mão, o mais discretamente possível; passou pela mesa deles, mas calculou mal o tiro, e, com ajuda do sistema de ventilação, as gotículas aspergidas foram parar no rosto dela. Ela se virou e segurou-o pelo braço, estava disposta a tirar satisfações, mas, quando o viu, um sorriso de abriu em seu rosto, perguntou que perfume era aquele, começou a puxar conversa, enquanto Leopoldo, por mais que o rival fosse obviamente homossexual, não gostava nem um pouco daquilo. Ela disse que se lembrava dele, ele trabalhava em tal loja, ela ia passar lá mais tarde. Ele deu um jeito de se desvencilhar e se despediu, voltou sem almoçar para a loja, e ficou sem comer até de noite. Cíntia tratou Leopoldo com indiferença daí em diante.

A gerente da loja estranhou sua volta abrupta, e viu quando ele guardou alguma coisa na gaveta. Tão logo Thiago foi ao banheiro, ela abriu a gaveta e pegou o perfume, experimentou; era diferente, cítrico. Um cliente entrou, um rapaz negro; ela era um tanto racista, mas não quando se tratava de vender, recebeu-o cheia de afabilidades, e tocou-o no ombro. Ele disse que não queria comprar nada, só queria conversar com um rapaz que trabalhava ali. Ela imaginou coisas, e ficou enciumada; começou a reparar no rosto do rapaz, em seus lábios grossos, na força de seus braços. Disse que ele fora embora, estava passando mal, deu um cartão dela, sugeriu que ligasse, acrescentou seu número pessoal, no que eu puder ajudar... Leopoldo não entendia nada. Thiago saiu do banheiro quando o outro acabava de sair, pediu licença para fazer um telefonema. Achou estranho quando ela não reclamou nem um pouco. Pediu um café e discou, exigia do amigo um antídoto, e fez uma cena quando descobriu que não havia. Voltou ao trabalho.

Enquanto isso, no caixa do cinema, as colegas de Cíntia estavam surpresas de ouvi-la elogiar tanto aquele homem, de fato bonito, mas gay até a medula, quando até ontem era a namorada bem comportada de um homem tão responsável. Confabularam e decidiram que uma ia conversar com Leopoldo quando pudesse, e uma ia procurar Thiago, para sondar aquele mistério. Este último conferiu a gaveta e descobriu o sumiço da poção, ficou desesperado, mas não teve dúvidas: questionou sua chefe com rispidez, garantiu que se tratava de algo muito perigoso, ela desconversou. Sem saber o que fazer, voltou a ligar para o amigo, desta vez dentro da loja mesmo; contou o incidente com a namorada de seu amado, e que a megera da sua chefe havia roubado o frasco. Ela ouviu tudo, e entendeu o funcionamento da mágica.

Leopoldo mal conseguia trabalhar, preocupado com o comportamento de Cíntia, e tão distraído estava que sofreu uma reprimenda; aquilo era péssimo para seus planos. De repente viu entrar na loja a coroa que lhe dera uma cantada mais cedo; como se não bastasse! Ela inventava que precisava comprar um presente, fe-lo mostrar alguns modelos, e quando teve a chance deu-lhe uma borrifada do perfume. Ele, entretanto, mantinha-se distante, e, quando viu entrar uma colega de Cíntia, pediu licença à cliente e a cumprimntou com dois beijinhos. Ficou olhando fixamente para a moça, respondeu que não lhe preocupava o que Cíntia fizesse, desde que pudesse todo dia contemplar uma beleza tão sublime quanto a dela. Sílvia xingou em voz alta e disse que voltaria depois. A colega da namorada do vendedor se assustou e também voltou ao trabalho, ávida por compartilhar mais aquela novidade. Leopoldo esteve ainda mais aéreo, e o gerente comentava reservadamente que era uma pena, sua promoção estava para sair a qualquer momento.

Havia um longo intervalo até a próxima sessão, e Cintia pediu para sair uns minutos. Fez questão de ser atendida por Thiago, e encarava-o com um ar embasbacado o tempo todo. Ele explicava que aquele perfume que ela conhecera estava em fase de testes. Sílvia ouviu tudo aquilo e resolveu pregar uma peça no funcionário: tirou da bolsa o frasco com propriedades fantásticas e o borrifou no pescoço do rapaz, é esse? A até pouco pia senhorita lhe agarrou pelos ombros, deu uma bela fungada sorvendo o perfume exótico, não resistiu e deu-lhe um belo beijo. Desculpou-se com a gerente, mirou lasciva o rapaz, que de repente descobriu que gostava de meninas, só não havia aparecido a certa. Ele alcançou Cíntia na saída e trocaram os telefones; o resto do dia ficaram trocando mensagens, combinando de saírem.

De repente entra na loja ninguém menos que Leopoldo; ele se sentia constrangido tanto com Sílvia quanto com Thiago, mas queria muito uma marca que só se vendia ali, para presentear a colega da provável ex. Ela obviamente insistiu em atendê-lo, numa patética tentativa de sedução. O que ela não percebeu foi que cometeu um erro: o frasco do amigo do Thiago e os frascos da marca que Leopoldo pedia eram parecidos, e ela acabara guardando a poção no mostruário. Foi o primeiro que ele escolheu, borrifou a mão. Thiago, que espiava de longe, percebeu, e viu ali sua chance de recuperar o frasco. Foi um golpe rápido e preciso, mas foi impossível evitar que se tocassem. O cliente ficou uns instantes olhando para o funcionário, voltou a conversar com a gerente, que não gostou nada daqueles olhares, finalizou a compra, encarou novamente Thiago e saiu um pouco constrangido. Leopoldo estava confuso, ele nunca pensara em homens, aquilo não tinha sido nada, mas agora começava a ver seu antigo admirador com outros olhos. Seu gerente perguntou se estava tudo bem, ele se desculpou pelas ausências, não se repetiria.

Thiago nem se lembrava que o propósito inicial era seduzir Leopoldo, ficou incomodado com seus olhares indiscretos; só pensava no esplendor loiro que estaria aquela hora na bilheteria do cinema. Ela também só pensava nele, mas estava sentindo uma leve dor de cabeça. Ocorre que havia de fato um antídoto para a fórmula mágica, um que nem os inventores conheciam, e era uma trivial aspirina. A mesma colega por quem seu ex-namorado esteve brevemente apaixonado providenciou o remédio para Cíntia. Depois de cinco minutos, ela pensou em Leopoldo, resolveu ligar, sem saber bem por quê. Foi a vez de ele desprezá-la, sua voz já ganhava trejeitos efeminados. Ela se desesperou, mas não podia sair naquele horário, o pico de movimento na bilheteria. A fofoca das colegas prosseguia, elas acabaram chegando à conclusão, ou bom palpite ao menos, de que havia um feitiço circulando, e só podia ter sido a aspirina a desfazê-lo.

O comportamento de Leopoldo estava cada vez mais estranho, e o gerente perguntou se ele não queria sair mais cedo, ele disse que estava tudo ótimo. Quando uma das moças da bilheteria entrou insistindo em que ele tomasse um comprimido, que seria um misto de hormônios que o faria irresistível para qualquer pessoa que ele tocasse, ficou desconfiado, mas aceitou. Resolveu mudar de ideia e aceitou ser dispensado por aquele dia; correu até a loja onde seu bofe trabalhava, inventou qualquer desculpa para se aproximar de Thiago, que fugia. De repente o antídoto funcionou, não sabia o que estava fazendo ali e tinha saudades de Cíntia. Subiu até onde ela trabalhava, ela ficou feliz em vê-lo, agradeceu pelo presente, e disse que poderia sair em alguns minutos.

Sílvia, enquanto isso, seguia enciumada dos dois, resolveu tentar falar com Leopoldo no fim do expediente, que estava próximo. Thiago começou a ficar preocupado por não receber mais mensagens de Cíntia, até que ela mandou uma sugerindo se tratar de um engano. Pediu para sair um pouco mais cedo; ela autorizou, incumbiu outra funcionária de fechar a loja e resolveu seguir Thiago à distância. Ele se dirigiu à praça de alimentação, onde se pode dizer que tudo começou, e viu novamente o casal reunido. Ficou tão possesso com a traição de Cíntia que teve uma atitude impulsiva: abordou os dois, deu um tapa na moça e agarrou o pescoço do pobre rapaz. Os seguranças estavam longe, e, desacostumados a qualquer incidente naquele lugar tranquilo, não puderam evitar um bárbaro assassinato. Sílvia, que assistia a tudo, não pôde crer ao ver seu amado sendo morto, e, quando pôde reagir, tirou da bolsa sua pequena pistola, a qual nunca usara, aproximou-se e atingiu Thiago no peito. Ela foi detida em flagrante, a moça prestou depoimento e foi liberada. Chegou em casa de ônibus, tarde, não quis explicar nada. Tomou uma caixa inteira de um remédio controlado que tomava; está no hospital, mas fora de perigo.