Digno de Nota
I
Minha memória mais remota é da tranquilidade de uma grande sala sem janelas, a temperatura era sempre mantida um pouco fria; eu ficava acomodada com minhas colegas, lembro que eram muitas delas, bem juntinhas umas das outras, o que nos mantinha aquecidas. Eu não conseguia ver muito ali empilhada como estava, mas podia ouvir passos sempre que uma porta muito pesada se abria, o silêncio retornando depois que ela se fechava com uma pancada assustadora. Me contaram depois de onde nós tínhamos vindo, da capital, onde éramos impressas em série, quase iguais, só nosso número diferia. Não sei se era boato, mas fazia sentido: todas nós carregávamos a figura de uma onça, coisas que chamam de marca d'água, a mesma fitinha e o mesmo número cinquenta, em algarismos e por extenso; também duas assinaturas, bem pequenas, e uma frase falando num tal de Deus. Bem, como eu disse, minha memória só alcança até aquela sala confortável, mas registra muita coisa desde então; se não for lhes ocupar o tempo à toa, eu poderia contar algumas.
Um dia ouvimos um barulho diferente, um estrondo que assustou a nós todas. Aquelas com uma visão privilegiada narravam o acontecido e todas espalhávamos suas palavras. E o pânico era geral: uns homens encapuzados haviam aberto um enorme buraco numa das paredes e estavam sequestrando minhas amigas aos milhares, jogando-as dentro de sacos pretos que eram levados para dentro do buraco. Eu não fiquei tão assustada: aquela vida monótona estava me deixando neurótica, e mal podia esperar para ver o que ia acontecer. Não demorou a que eu fosse parar em um dos sacos, e aí fomos chacoalhando por um bom pedaço até sermos arremessadas em outro lugar, onde esperamos um pouco. Ouvíamos barulhos de gente, mas na época não éramos capazes de entender nada, e eles pareciam não nos escutar: foi aí que eu descobri que a voz da cédula vibra numa frequência inaudível para os humanos.
Fomos transportadas uma e outra vez, aí ouvimos sons do que eu descobriria depois ser algo chamado música, sons de vidro se quebrando, muita gente falando e umas coisas diferentes que eles fazem com a voz, depois eu aprendi que eram gritos e risos. Tudo era aprendizado para mim, todos aqueles sons novos, só a escuridão total que não me agradava. Um dia me tiraram do saco e me puseram em uma caixa um pouco rasa, que fazia um barulho de metal quando fechava. Pude ver muito pouco do ambiente, parecia ser um galpão; eu obviamente não conhecia essa palavra, ou palavra alguma, mas depois eu explico como aprendi língua de gente: vou contar sem ficar me interrompendo com isso, ou vamos longe demais. A caixa, que era uma mala, foi carregada por um homem que assobiava até um carro grande, que ficava tremendo e fazendo barulho. Quando paramos, ele desceu com a mala, conversou muito tempo com outro homem de voz fina, depois os dois conversaram com uma mulher e nos levaram a um lugar onde abriram a mala e passaram a desfazer os maços em que estávamos atadas e a contar uma a uma: foi meu primeiro contato com os números, a primeira coisa que aprendi em língua de gente. Lembro quando a mulher me pegou e olhou contra a luz, vi que estávamos em uma sala delimitada por divisórias que não iam até o teto. Era a maior sensação de liberdade que eu já tinha experimentado, estava feliz. Vi que só contaram e analisaram dois maços, e aí passaram a retirar da mala e a contar os maços inteiros. Houve mais alguma conversa e então o homem que me trouxe pegou mais quatro maços e deu dois a cada um dos outros. Eu estava em uma pilha em cima da mesa, o homem que me trouxe foi embora e nunca mais o vi.
Depois a mulher me colocou numa caixa verde, com um painel de botões na frente, e voltou a escuridão. Pensando bem, não foi meu primeiro cofre, porque a sala de onde fui levada era nada menos que um imenso cofre. Ficamos lá conversando, metade de nós ainda muito assustada, a outra metade terrivelmente excitada com um mundo inteiramente novo. No dia seguinte, abriram o cofre e nos jogaram em um saco de pano, dois na verdade, e entramos em outro carro que fazia barulho, dava para ouvir a mulher da véspera e um outro homem. Rodamos até chegar a um lugar onde fomos recebidos primeiro por uma moça de voz irritante e depois por uma senhora rouca, que falava enquanto caminhava até uma sala onde fomos postas em uma mesa e expostas à claridade fluorescente de outra sala de divisórias. Aí eu passei pela experiência mais inusitada. Nós éramos colocadas em um aparelho e escorregávamos uma em cima da outra em uma velocidade estonteante. Aconteceu outras vezes depois, mas, como eu já disse, tudo era descoberta. Ainda ouvi a voz das duas mulheres enquanto minhas colegas eram acomodadas em mais um cofre, este maior que o anterior. A porta se fechou atrás de nós, mas se abria às vezes ao longo do dia. Estávamos em companhia de cédulas que não conhecíamos, até umas verdes, diferentes, com rostos de sujeitos esquisitos. Eu não sabia então que lugares como aquele seriam como uma casa, a que voltaria várias vezes ao longo de minha vida útil.
II
Passou um bom tempo, eu ainda não tinha uma noção exata de dias, em que aquela porta se abria a intervalos, deixando entrar alguma luz; às vezes retiravam algumas de nós aos maços, às vezes traziam mais. Fiquei muito amiga de uma cédula azul, que trazia um peixe estampado; ela também era bem jovem e nenhuma de nós sabia que ela tinha o dobro do meu valor, talvez por isso ainda não fosse esnobe e arrogante como outras que encontraria depois. Uma vez, logo que a porta se abriu, entrou alguém na sala e a moça deu um grito; a outra pessoa era um homem. Ali eu aprendi um som que os humanos fazem para pedir silêncio; dali em diante só ouvimos gemidos abafados, que não sabia dizer se eram de prazer ou desespero, e um grunhido ritmado, que foi se intensificando até dar lugar a uma respiração ofegante. Eu estava extasiada. Que mundo interessante!
Até que um dia me levaram, através de um pequeno corredor; por instantes pude ver quatro cabines com um computador e um vidro separando aquela saleta de um salão grande, repleto de gente. Fui depositada em uma gaveta, com outras colegas iguais a mim, e pela primeira vez conheci outras cédulas: vermelhas, que traziam uma arara, roxas, com uma garça, outras azuis, mas com o desenho de uma tartaruga; havia também uns pedaços redondos de metal, de vários tamanhos. Foi com a experiência de minhas novas vizinhas que fui aprendendo cada vez melhor o que eram os números, e pude entender enfim que eu era uma cinquenta. Ou o que significava 8499A, que era o fim do meu número de série, e como me chamavam até então; aquelas veteranas me puseram o apelido de Tata.
Eu tinha ficado no fundo da pilha, e várias vezes a gaveta se abriu até que eu fosse retirada; tchau Tata, boa sorte no mundo, desejaram as colegas. Fui entregue a uma velhinha, eu já conhecia cada vez melhor os humanos, e sabia que ela era mais velha; já começava a ser capaz de interpretar a entonação da voz deles, e vi que ela era muito educada, assim como a caixa que eu mal pude conhecer. Fui guardada em uma bolsinha que fazia um estalo seco ao fechar; quando ela se abriu, fui parar em uma lata de biscoito, e fiquei lá muito tempo. Eu ouvia o rádio ligado quase o dia todo; às vezes ouvia uma jovem que conversava com ela; ficava cantando e lavando louça. Uma vez eu ouvi a porta abrir e se fechar, a velha saiu. A jovem deixou a limpeza da casa e fez uma enorme bagunça no quarto, abria todas gavetas e revirava todas as caixas, até que abriu minha lata. Fui para em um bolso de calça. Dali a pouco a velha voltou, eu entendi da conversa que a moça precisava sair mais cedo, algumas palavras eu já reconhecia. Ela pegou um ônibus, depois outro, e chegou em casa onde duas ou três crianças faziam algazarra.
Conversou um pouco com um senhor aparentemente idoso, e ouvi barulho de cozinha; mais tarde chegou um homem, as crianças fizeram mais algazarra. Aí ela me tirou do bolso, eu e mais várias iguais a mim, e eles começaram a discutir até os gritos; nós ficamos largadas sobre a mesa, então deu para ver tudo, até quando ele começou a bater nela. Ela chorava estendida no chão quando ele meteu a mim e a mais três colegas no bolso da camisa e pôs as restantes numa gaveta no quarto. Saiu gritando mais um pouco, caminhou em uma rua em que havia barulho de ônibus e entrou em um lugar onde havia música e as pessoas falavam alto. Um pouco como o galpão por onde eu tinha passado. Passou lá muito tempo, e dava para ver quando ele levava um pequeno copo à boca, estava com muita sede. Aprendi mais algumas palavras, que eles repetiam o tempo todo, só depois fui descobrir que eram palavras sujas. Ele praticava uma brincadeira com bolas sobre uma mesa e um taco de madeira; eu via tudo quando ele curvava o corpo para frente. Quando já era tarde (eu já aprendia a medir o tempo), ele nos tirou do bolso, os amigos dele se juntaram em torno, parece que era muito dinheiro; mas eu acabei voltando para o mesmo lugar, e se juntaram a nós umas notas menores amassadas e fedorentas. Despedi-me da Cláudia, que me acompanhava desde o grande cofre da minha infância.
Quando chegou em casa, pronunciou uma frase que, pela movimentação que se seguiu, entendi que significava uma ordem para esquentar a comida. Aprendi muito de língua de gente ali, todos falavam alto e onde eu fiquei, na mesma gaveta com as outras, era muito perto da sala; devia ser uma casa pequena. Ouvi outras brigas violentas e choro, algazarra dos meninos, e o idoso, que falava sozinho quando o casal saía. Todo dia o homem recorria à gaveta, e fomos ficando poucas rapidamente. Um dia eu voltei a ser escolhida, e passeamos no bolso de sua camisa aberta. No caminho para o bar (palavra que logo aprendi), ouvimos alguém abordá-lo, pelas costas, e pedir o dinheiro (palavra que aprendera muito antes). Ele se virou e entrou em luta com o ladão: foi ferido; eu via lá do chão onde havíamos caído.
III
O bandido nos recolheu com a mesma mão ensanguentada que segurava o canivete. Correu até um beco, guardou o canivete num bolso e a nós em outro, e pulou um muro. Ouvi barulho de água, estava lavando as mãos. Depois percorreu uma distância e escalou um portão de ferro; alguém abriu a porta e gritou, uma mulher, ele a ameaçou e saltou para o chão. Correu até um daqueles lugares com música, talvez fosse até o mesmo. Deu para escutar ele pedir a tal branquinha umas quatro vezes, até que as vozes cessaram de súbito, passos pesados se encaminharam a ele, eram dois. Começaram a questioná-lo rispidamente, sua voz era trêmula, e arrastaram-no para fora. Meteram a mão no bolso onde eu estava e tiraram a Sílvia, a Joyce, a Tânia e a mim, entendi quando reclamou que era "só isso", repartiram-nos entre os dois e lá fomos pra outro bolso, todas amassadas. Pudemos ouvir o rapaz sendo espancado por vários minutos, e então entramos no carro que fazia um barulho gozado, que ouvi várias vezes aquele dia. Quando saí do bolso, estava em um supermercado, e o homem que me tinha tomado por último pediu um pacote de cigarros: foi quando fui parar em outra daquelas gavetas divididas.
Depois disso eu circulei um bocado. Comprei livro, cachorro quente, gasolina, servia de troco quando alguém aparecia com uma garoupa (e o funcionário sempre reclamava); conheci carteiras, bolsas e outros bolsos malcheirosos, descansei em caixas-registradoras, voltei ao banco, quer dizer, não o mesmo, outros, até o dia em que fui parar na carteira de um sujeito aparentemente rico. Tinha a companhia sempre de outras onças e garoupas, e como ele nos deixava em um balcão na sala, dava para perceber que a música era diferente, as pessoas falavam baixo e cada uma de uma vez. Foi o período em que eu aprendi palavras mais complicadas. Um dia alguém me tirou da carteira, e não era ele: devia ser seu filho, que usava uma jaqueta de tecido sintético colorida, em cujo bolso eu fui parar, sozinha. Ele desceu o elevador e entrou no carro, arrancava fazendo barulho com os pneus e escutava uma música repetitiva muito alto. Desceu do carro, andou alguns passos e cumprimentou alguém numa linguagem que me era estranha; foi muito rápido: ele me pôs na mesa e recebeu alguns pacotinhos plásticos. Estive na carteira do sujeito de fala engraçada algum tempo, um dia eu o ouvi conversar com um daqueles sujeitos com botas, que tinha uma risada cínica, e eu mudei de mão mais uma vez.
Passei um tempo com ele, e descobri que aquele tipo de gente se chama policial, descobri porque a mulher dele ficava muito preocupada com sua profissão - a mim, parecia um jeito fácil de fazer dinheiro. Bem, lá na casa deles também havia uma moça que cuidava da casa, e não é que eu reconheci a voz da mesma que havia me tirado da caixa de biscoitos da velhinha? Eu estive com a esposa dele até o dia em que fui dada em pagamento à empregada. Não esperava que ela me reconhecesse, já disse que somos todas quase iguais. Na gaveta dela, não encontrei nenhuma de minhas antigas colegas, nem o marido estava por perto: teria morrido aquele dia? Um dia ela me usou para pagar a padaria, e alguém que parecia ser o dono me pôs na carteira no fim do dia. Em casa, ele jantou com mulher e filhos, e disse que ia sair para uma reunião da maçonaria; escutei ele conversar com uma mulher, discutiam o preço, ela entrou no carro e ensinou como chegar no "ambiente". Ouvi todos aqueles barulhos que eu já sabia o que significavam, e no fim eu fiquei com ela. Da bolsa dela, ainda a ouvi trabalhando três vezes, até que bem de madrugada ela se encontrou com um tipo grosso, que exigia sua parte do trato. Com ele eu fiquei pouco, por sorte, ele me usou em outro supermercado.
De lá, eu voltei a um outro banco, estive no cofre muito tempo, fiz amizades, até aprendi um pouco do idioma daquelas notas verdes. Um dia levaram a mim e a muitas outras para o caixa, mas eu não fui para a gaveta. Um homem que não aparentava ter todo aquele dinheiro nos pôs em uma maleta e nos levou; quando a maleta se abriu, vi um homem muito elegante, que sorria. Ele naquela mesma tarde se encontrou com outro homem, e pude entender que se tratava de uma licença de qualquer espécie, que aparentemente custava todo aquele dinheiro. Despediram-se de forma muito cortês: como é bom estar com gente de bom nível! Outra pessoa apareceu e me levou até o banco. Veja só, era o meu primeiro banco! Fiquei até emocionada. Muito tempo passei lá, acostumei-me à rotina - a vida na rua já perdera a novidade. Até que ouvimos um barulho enorme, gritos, um tiro foi disparado. O rapaz que abriu o cofre estava pálido, e atrás dele um homem de capuz o pressionava a encher um saco preto. Aquilo disparou em mim uma nostalgia... Aí se ouviu o barulho que fazem os carros de polícia, era bem no exato instante em que o funcionário me tirava do cofre. O homem de capuz se assustou e atirou. A cabeça do pobre rapaz foi estilhaçada, e o maço do qual eu era a primeira cédula ficou encharcado em sangue. Por isso estou aqui, esperando para ser incinerada, por um crime que não cometi. Mas não me importa, posso dizer que vivi muito nesse tempo. E que os seres humanos são fascinantes!