Chão
I
Eu estava atrasado para uma consulta médica. O semáforo ficou amarelo, eu estava um pouco longe; ainda acelerei, mas vi que era arriscado demais: havia fiscalização eletrônica. Maldisse a sorte, mas pensei que esses médicos sempre nos fazem esperar mesmo. Olhei instintivamente para o carro à direita, eu estava na faixa de fora; era um coroa gordo. Olhei pra fora da minha janela e tinha um sujeito vendendo pano de chão. Barba por fazer, cabelos grisalhos desgrenhados, uma camisa azul, que conhecera dias melhores, calça de moletom cinza, rasgada no joelho direito, e tênis de corrida que deviam ter dado a volta à terra. Passou por mim apregoando tantos por tanto, e recusei maquinalmente. Mas voltei a enquadrar seu rosto.
Impossível! Mas não podia haver dúvida. Ele já estava abordando o terceiro carro da fila, buzinei duas vezes, ele percebeu e veio correndo. Era ele. Eu sou bom fisionomista. Cinco anos antes, talvez seis ou no máximo sete, eu tive que esperar numa fila para trocar poucas palavras com ele, elogiar seu livro, e ter meu exemplar autografado. Sei de cor a dedicatória: "a um jovem escritor, perseverança no caminho das belas letras", em letras de forma, com uma assinatura simples, um traço que subia, descia e voltava para o centro, como duas pás de uma hélice, representando remotamente uma letra L. Seu romance foi um sucesso, muito mais depois que foi adaptado para o cinema, mas eu já o conhecia anteriormente por seus volumes de contos. Tinha um estilo que eu, um humilde aspirante, como a ele confessei, tentava em vão imitar. Sabia usar a informalidade e mesmo a vulgaridade com muito bom gosto.
O livro e o filme lhe deviam ter rendido um bom dinheiro. Talvez por isso tenha demorado para voltar a publicar, mas confesso que nem cheguei a terminar seu último livro: era muito abaixo de seus padrões. De qualquer forma, quem iria esperar que sua decadência fosse tão completa que um admirador seu fosse eventualmente comprar dele panos de chão, em um semáforo qualquer do centro da cidade? Pois foi o que fiz. Não tive coragem de perguntar aquilo que já sabia. Mas perguntei a primeira coisa que veio à mente: você está sempre aqui? Quando ele começou a responder, o sinal já estava verde e o motorista atrás de mim já buzinava. Na hora do almoço e no fim da tarde, foi o que disse. Eram onze e quinze já, o médico ia encher meu saco, foda-se.
Antes de ir trabalhar, passei em casa para buscar meu almoço. Fui até a estante e achei o volume. Tinha pouco mais de trezentas páginas, a edição era bonita, com uma capa escura e acetinada. O nome estava lá, em letras vermelhas, e no frontispício a mensagem de encorajamento. Eu obviamente desisti logo de ter literatura como um ganha pão, aliás nem por diletantismo eu a praticava ultimamente: tornara-me um advogado medíocre que suava para pagar aluguel e prestação do carro; não fosse por minha esposa estava frito. No escritório, nas pausas que fazia lia alguma passagem ou outra. Que verve. A crítica na época o louvava como o Bukowski brasileiro, alguns viam tons machadianos, mas ele nunca foi um imitador, tinha um estilo único. Alterei meu trajeto na volta, aliás, não estava exatamente voltando, não a minha casa ao menos. Tive que encostar o carro, pouco antes do semáforo, para garantir que ficasse retido, liguei o pisca-alerta. Um idiota passou buzinando, vai à merda. No amarelo, arranquei, estava na faixa central e fiquei sendo o segundo da fila. Lá estava ele. Buzinei duas vezes, ele tinha uma expressão de curiosidade ao me reconhecer. Talvez tenha pensado que eu era homossexual e queria propor alguma coisa. Pronunciou um diga patrão seco, algo que soava forçado em sua boca. Eu peguei o livro no banco do passageiro e mostrei a ele.
II
Seu Carrasco!, eu gritava, enquanto ele se afastava, mas sem pressa. Desci do carro, ele me encarou. Você é da tevê? Não! Eu era... eu sou um admirador seu, olha aqui. E afastei a capa para mostrar a dedicatória. Vamos conversar? Ele me fitou desconfiado por uns instantes. O semáforo ficou verde, o motorista atrás de mim, depois outros, começaram a buzinar; gente estressada. Me paga um parmegiana. Claro, entra aí. Seu Carrasco, eu mal pude... Luís. Luís, eu mal pude, eu não acredito até agora... Rapazinho, se você me chamou pra me julgar, pode encostar aí que eu desço e janto sardinha de novo. De forma alguma, calma, eu só quero entender, ajudar no que possa. E se é pra me tratar com condescendência, vale o mesmo. Não, putz... faz assim: eu não vou perguntar nada, você diz o que quiser. E calado ele ficou, com o próprio livro entre as mãos. Até que percebi uma lágrima furtiva que ele enxugou com as costas da mão direita. E olha pra frente! Eu conto, depois que você pagar um uísque.
Deixei o carro num estacionamento privado, era uma região um tanto metida a besta, e tive que acenar desafiadoramente ante pelo menos um olhar de reprovação pela companhia "desqualificada". Meu orçamento não me permitia comer ali com frequência, mas eu sabia do que Luís sentia falta, e aquele era o melhor parmegiana da cidade. Ele disse exatamente isso, sorrindo pela primeira vez. O maître foi outro a olhar com desdém. Eu pedi uma mesa reservada, ele atendeu contrariado. Dois uísques e duas águas com gás. Duplo, caubói. Dois duplos sem gelo, e duas águas. Sim, com gás. Ele folheava a esmo enquanto esperávamos. Parmegiana para dois. Esse livro, ele começou após a primeira golada, me esgotou. Me consumiu. Foram três anos por conta dele, quer dizer, reduzi minha atividade acadêmica a um mínimo, e nem isso levava muito a sério. Os alunos gostavam, sabiam que iam passar sem dificuldade. Bando de medíocres. Eu tirei férias para fazer pesquisa no Norte, acabou sendo um mês de putaria, o que é exatamente o que eu buscava. Mas aquele envolvimento, aquele entusiasmo, eu nunca mais terei. Então essa situação atual não é apenas pesquisa para a próxima obra?, arrisquei, apesar da promessa. Ele fez vibrar os lábios, sarcástico. Eu posso ser profissional, mas não tão profissional. Não, eu não sou mais escritor... eu não sei seu nome. Vinícius. Pois bem, Vinícius, o que você quer é saber como estou nesta merda. Vamos lá. Você não é jornalista, é? Saquei a carteira e mostrei a identidade de advogado.
Ele respirou fundo. Coito Interrompido foi um tremendo sucesso, como nem eu esperava. Eu me tornei praticamente uma celebridade. Depois do filme então, aí sim começou a entrar uma grana séria. Começaram as desavenças com minha mulher, que insistia para que aplicássemos, investíssemos em tal ou tal coisa. Mas o dinheiro vinha do meu trabalho, e eu sabia muito bem como empregá-lo. Rapidamente me acostumei a usar os serviços de acompanhantes mais caros, ao menos duas por semana. Descobri o jogo clandestino, que foi minha ruína eventualmente. Quanto mais experimentava estratégias para a roleta, quanto mais ganhava duas ou três rodadas seguidas, mais eu aumentava as apostas. Mas estou me apressando. Sinalizou o copo vazio e eu chamei o garçom, que atendeu com uma cara azeda. Não resisti. Saiba que este é um dos melhores escritores brasileiros da atualidade! Mas, meu senhor, eu não disse nada, com licença. Luís me olhou furioso. Não faça isso novamente, você está tentando me humilhar? Desculpa, não suporto esse tipo de... enfim, prossiga. Pois eu era uma celebridade literária, grande porcaria. Isso se refletia na universidade, minhas aulas eram concorridas, eu comecei a ficar arrogante, o velho clichê; mas aquelas jovens de repente se derretendo por mim, como eu ia resistir? Até que deu merda. Porra, ela parecia ter pelo menos vinte e três, não sei se pelo tamanho; era uma delícia de loira, e até que fazia comentários bem pertinentes, também não me tratava com uma veneração basbaque, tinha aquele sorriso sereno. Com essa eu comecei a me envolver, já fazia uns dois meses que a gente se via, quando a polícia me procurou em minha sala. Os pais dela eram evangélicos, ela supostamente também, e quando souberam que sua ovelha de dezessete anos, recém completos, tinha sido seduzida por um velho tarado (e eu reconheço ser um velho tarado), não tiveram dúvidas, e essa foi minha primeira confrontação com a lei. No fim eu só paguei umas cestas básicas, mas obviamente minha mulher ficou furiosa, e a custo me perdoou, e o departamento também não gostou nada. Deixei o processo administrativo correr à revelia, na verdade deixei tudo correr à revelia e não apareci mais lá. Nessa época eu já estava bebendo cada vez mais.
Sempre entrava uma graninha, o livro teve algum sucesso em quatro traduções, mas meu estilo de vida rapidamente consumia isso e eventualmente consumiu tudo, ou quase tudo, que havia acumulado. Eu escrevia cada vez menos, e a qualidade era obviamente inferior, eu mesmo percebia. Eu apenas me repetia, até que cansei de vez. A entrega que eu dedicara à literatura agora eu dedicava à devassidão. Eu me endividei, e passei a acreditar que publicando outro volume, ou acertando o 17 em cheio, tudo se resolveria. A editora achou que meu nome era ouro por si só e publicou um monte de bobagem, novas e antigas - refugo que com razão eu descartara. Eu li, atalhei, é mesmo lixo. Obrigado. Bem, eu comecei a receber ameaças, e resolvi andar armado. Um dia fui pego dirigindo bêbado e o trabuco no porta-luvas me rendeu uma confusão dessa vez bem mais séria com a polícia. Minha mulher teve que pedir ao pai dela a quantia da fiança, mas em mim mesmo ela perdeu de vez as esperanças. Ela tinha como pagar um bom advogado, eu mal podia pagar um parmegiana como este (que estava sendo servido) e o dinheiro que eu mantinha na conta conjunta para manter as aparências ficou todo para ela, assim como o apartamento. Eu disse que nessa situação ele mesmo podia requerer pensão. Ficou olhando pensativo. Chacoalhou a cabeça: não quero nada daquela megera. Vamos saborear este filé em paz, por enquanto. Obedeci.
III
Onde você está, seu mau caráter? Calma Soninha, eu esqueci de avisar, eu... um colega me convidou pra jantar, e... Que história é essa Vini, você detesta todos seus colegas. É, mas ia ter uma confraternização, ficava chato... ficava chato recusar, desculpa não ter ligado, volto daqui a pouco, tá, beijo. Ele me fizera prometer que não revelaria para absolutamente ninguém tê-lo encontrado. Ela vai me encher o saco.
Ele saboreou a única refeição decente em sabe-se lá quanto tempo, em silêncio. Respirou fundo, dr. Vinícius, o senhor tem um cigarro? Eu não fumo, mas pedi ao garçom um maço. Ele sacou uma caixa de fósforos e acendeu um cigarro. O garçom veio furioso lembrá-lo da proibição. Mas eu sempre venho a este restaurante e fumo! Meu senhor, então faz muito tempo que o senhor não vem aqui, e empinou ainda mais o nariz. Ele saiu restaurante afora com o cigarro aceso, suscitando protestos. Eu o segui. Ele fumava na entrada do restaurante, e isso também nada agradava ao maître, que abriu um portão lateral para que ele fumasse nos fundos. Entretanto nós paramos no corredor lateral, e janelas basculantes altas davam obviamente para o salão do restaurante.
Um filé desses só não é melhor que uma trepada. O álcool fez efeito em sua língua. Eu já comi muita mulher, sabe dr. Vinícius, eu pedi que dispensasse o título, que eu já sabia desde sempre ser sarcástico, já fodi muito. Já fodi jovem e velha, magra e gorda, já fodi loira e morena, ruiva e japonesa, já fodi namorada, puta, esposa, amiga. Uma vez, no Pará, jovem, eu conheci uma criatura fantástica: ela me fez gozar três vezes, sem intervalo. O amor de uma profissional tem às vezes essa intensidade, mas é só um divertimento perto de uma boa trepada com alguém que importa... Eu tive muitos amores, meu amigo, eu sou bom de cama, sabe, tenho um talento natural de convencer as mulheres... Ele ia se entusiasmando, e disse, quase gritando, uma frase que não reproduziria aqui. No instante seguinte o maître lá estava para nos expulsar. Eu nunca mais poderia frequentar aquele lugar.
Me dá um cigarro. O senhor não fuma. Só o fuzilei com o olhar e ele me deu. Fazia quase três anos, seu Carrasco. Não me olhe assim, eu te economizei uma grana. Sabe o que a gente vai fazer com essa grana, doutor? Estávamos entrando no carro. Vamos comer umas putas! Ah, de jeito nenhum, eu não posso gastar dinheiro com isso. Mas você já gastaria com o restaurante, de qualquer forma; vamos lá, você já está fodido com sua esposa mesmo. Fazia algum sentido. Com uma condição: você vai responder qualquer pergunta que eu fizer. Eu topo, chapa. Faz o seguinte, pega a perimetral.
Era um lugar horrível, a decoração tão brega quanto sempre, de terceira categoria. As moças eram feias pela maior parte, a caipirinha era caríssima e muito mal feita. Sentamos numa mesa perto do palco. Uma moreninha subiu para fazer strip. Então você diz que também escreve. Ah, muito mal, foi coisa de juventude. Você, parou de escrever? Ele não respondeu, fez sinal a uma falsa loura que lhe veio sentar no colo. Eu estava disposto a lembrá-lo do trato quando ele enunciou um não escrevo mais solene. Onde você mora? Moro em uma edícula sem janela atrás da casa de um padeiro. Você não recebe mais nada pelo Coito Interrompido? Meus credores ganharam meus direitos na justiça. Luís, você já ouviu falar na existência de advogados? Não importa, seu doutor (ele entendeu o pedido ao contrário), eu podendo comer como dá e comprar minha cachaça tá muito bom. Mas você não se esforça pra sair dessa situação? Você poderia ser professor, tradutor, um monte de coisas! É uma opção filosófica, filho. Antístenes. Só o cinismo salva. Porque qualquer convenção social é idiota demais pra ser levada a sério. Incluindo o sexo, e fez sinal a uma mulatinha, que veio render a falsa loura. Com ela ele trocou algumas palavras e em pouco tempo entravam para um quarto
IV
Ele me fez deixá-lo na estação de metrô, não quis revelar onde morava e não tinha telefone. Passei duas horas discutindo com minha esposa. De nada valia meu retrospecto de bom moço, e eu queria manter minha promessa. Ela também conhecia Coito Interrompido, pelo menos o filme, e era um terreno fértil para a semente do boato germinar. Ela insistia em que eu fora encontrar outra mulher, mas pareceu mesmo intrigada com o fato de eu chegar com um fardo de panos de chão, que ele esquecera no meu carro. Dormi exausto. Trabalhei dois dias sem que aquilo me saísse da cabeça. Imagine a quantidade de experiências inusitadas que Luís vivia em sua nova vida de ambulante depauperado. Se ele se dispusesse a narrá-las, com aquele estilo irônico, garanto que ia fazer sucesso, ia tirá-lo da pindaíba. Tinha certeza de que aquela conversa de opção filosófica era empulhação. O problema dele era o alcoolismo, e ele não parecia nem um pouco disposto a abandoná-lo.
Voltei ao cruzamento em que ele trabalhava, não o achei lá da primeira vez. No dia seguinte tive mais sorte. Disse que entrasse, que iríamos a um supermercado. Paga uma dose, doutor? Que escolha eu tinha? Depois de um boteco sujo dali das imediações, fomos às compras. Eu queria ajudá-lo, mas queria também saber onde morava, tinha certa desconfiança de que a história da edícula podia ser um edulcoramento de uma realidade ainda pior. Lembrei-lhe do nosso trato; por uma formalidade, a verdade é que já havia conquistando sua confiança. Perguntei, enquanto punha no carrinho um saco de arroz, há quanto tempo ele vendia panos. Ele disse que não cozinhava em casa. Na verdade, só tinha em mente a prateleira de bebidas. Eu escolhia algumas comidas enlatadas enquanto ele se abria aos poucos. Eu terminei de conquistá-lo com duas garrafas de conhaque.
Bem, com o divórcio eu fui ao chão. Eu já bebia bem, devo ter triplicado a quantidade e diminuído muito a qualidade. Todos os falsos amigos que eu granjeara no meu auge tiveram alguma desculpa pra não me receber provisoriamente, fui parar numa pensão perto da rodoviária. Aí eu dei em cima de uma moça que morava lá, feia, a coitada, mas eu estava bêbado o tempo todo. Enfim, eu fui expulso, e passei algum tempo debaixo de um viaduto. Os inquilinos originais não me acolheram, mas também não me expulsaram. Pedia restos em restaurantes e era escorraçado. Fumava bitucas que encontrava. Aquilo já era um pouco demais, e eu procurei minha ex-mulher, exigindo que ao menos minha máquina de escrever me entregasse. Estava quebrada, não valia quase nada, mas serviu para comprar algumas caixas de balas, que vendia, lá mesmo onde você me encontrou. Eu já comia um pão com manteiga todo dia, estava ótimo. Mas de repente apareceram umas crianças, com o pai delas ameaçando me furar com um canivete se eu não abandonasse aquele ponto. Ah, eu sempre fui bom de briga, doutor Vinícius: ele me fez isso aqui - e mostrou uma cicatriz no antebraço esquerdo - mas quebrei ele de porrada, e virei o rei do pedaço. Na verdade, em pouco tempo eu tinha meia dúzia de moleques trabalhando pra mim, e deu pra pegar outro quarto de pensão. Dessa vez fui eu que não aguentei, estava acostumado afinal com a vida na rua. Foi quando eu comecei com os panos, porque aquilo de vender bala era degradante, sabe? Eu tinha de impor respeito.
E que tipo de coisa inusitada você já viveu nessa vida... na rua?, provoquei. Estávamos pagando a conta. Muita coisa, meu rapaz, é uma vida cheia de interesse a seu modo. Uma vez, no cruzamento onde eu estava trabalhando, houve um engavetamento de três carros. Desceram, irritados, mas logo conseguiram conversar civilizadamente e acabaram descobrindo que um era meio-irmão de outro e o terceiro era primo distante dos dois. Vai calcular a probabilidade.Ou como o dia em que ouvi um carro buzinar, era um carrão, dentro estava um coroa com os olhos fechados, a película não era muito escura; achei estranho mas me aproximei, ele se assustou. Quando eu presto atenção, aparece uma jovem só de sutiã e o tiozão tá recolhendo a artilharia. Guardamos as compras no carro. Teve também a história de como eu fui parar lá onde estou morando, com o seu Fabrício. O padeiro. Ele comprou pano comigo um dia. Puxou assunto, conversamos brevemente, ele sorria bastante. Disse que ia passar ali no dia seguinte com alguns pães dormidos. Passou realmente, e com um sortimento de salgados e doces. Fez isso várias vezes. Ele gostava de conversar comigo, e um dia me questionou o fato de eu parecer ter uma formação intelectual incongruente com a posição social. Eu nem falava de nada intelectualizado, acho que ele se referia a meu português de escritor, que não consegui perder. Bem, eu me afeiçoara ao sujeito, a atenção de alguém nesses momentos, enfim... Eu revelei meu passado de escritor, pedindo segredo total, claro; ele até tinha ouvido falar no filme, prometeu que leria o livro. Aí passou a me trazer roupa velha, também. Eu sabia que ele estava só se livrando de coisas em que tinha que dar um fim, mas era um grande gesto, mesmo assim. Interrompeu a narrativa para dar algumas indicações do caminho, era um bairro afastado. Um dia, prosseguiu, ele me disse que tinha lido e tinha gostado muito do livro. Tinha uma pergunta a fazer: se eu não queria dar aulas de português a sua filha. A perspectiva de algum dinheiro de verdade me fez aceitar, embora não tivesse o menor jeito para ensinar gramática. Começaram as visitas semanais. Era uma mocinha de doze anos, estúpida como um jumento, percebi que não foi só um meio encontrado pelo seu Fabrício de me ajudar. Mas o que me interessou mesmo foi a mãe dela. Ela servia sempre um cafezinho, uns quitutes, uma quarentona com tudo em cima, seu doutor, e me olhava de um jeito! E eu, bem, fazia tempo que o máximo que eu comia era uma dessas craqueiras do centro, quando sobravam vinte mangos. Acontece que a mãe matriculou a filha na natação, no horário logo após as minhas aulas, e passamos a ficar com a casa para nós por algumas horas... o senhor imagina. Continua escutando: eles moram em uma casa com uma edícula minúscula, que estava alugada na época para um metalúrgico. A madama acusou o sumiço de uma joia, pôs a culpa no rapaz e o expulsou. Não sei se por si só, ou se instigado pela mulher, Fabrício me convidou para morar lá, por um aluguel bem camarada. E você está comendo a mulher do cara que te ajudou, interrompi. Mocinho, disse ele abaixando o volume do som, eu disse que se era pra me julgar que me deixasse quieto. Eu gosto de pensar que é uma forma de retribuir a ajuda, se bobear até ele pensa assim. Como? Eu acho que ele sabe. Suspirei, atônito. É aquela casa ali, vermelha.
V
Tomamos um corredor lateral e entramos em sua casa, que de fato era minúscula e sem janela. Era um cômodo só, com uma pia e um vaso, uma cama e uma estante com algumas peças de roupa, várias latas de sardinha e um garrafão, de pinga certamente. Flagrei também um exemplar de Quincas Borba, e perguntei o que fizera do resto de seus livros. Eu doei a uma biblioteca comunitária, esse aí é só pra hora das necessidades, um velho hábito. E o do jogo você teve que abandonar? Às vezes eu jogo dominó a dinheiro na praça tal, mas não é a mesma coisa. Bateram na porta. Ele abriu, era a dona Carmen, conforme ele me apresentou. Era mesmo uma coroa bem aceitável. Não, não estamos precisando de nada, obrigado. Ele me ofereceu da pinga, eu aceitei, mas era de péssima qualidade. Eu hesitei, mas tinha que entrar no assunto alguma hora: e a bebida, Luís, não será o que te impede de sair dessa condição? Ele me olhou furioso. Mas falou com franqueza. Eu me acostumei a esta vida, rapaz, não vejo muita saída. Eu não sirvo mais para escrever, era a única coisa... Por que não?! Interrompi o trabalho de acomodar as compras na prateleira. Tudo isso que você tem vivido é material perfeito para literatura! Eu não quero aparecer em público como alguém de quem as pessoas têm que sentir pena, ou mesmo um exemplo de superação, e ademais eu já estive lá, eu sei como esse meio é uma fogueira de vaidades... Mas todos são, Luís, você joga o jogo sem se deixar contaminar o quanto possa. Você acha que eu adoro meu escritório de advocacia? Bah, você faz parecer que viver na rua tem sido tão divertido que merece ser contado num livro. É uma vida dura, rapaz, um aprendizado. Eu não disse nada disso Luís... Ele me interrompeu, agora queria contar mesmo sem ser questionado.
Trabalhando nos semáforos você não tem banheiro, não tem água fresca, você não ganha um tostão quando chove o dia todo. Eu cansei de dormir faminto, e sujo, minha higiene por muito tempo foi com um caneco de água e um sabão em barra que eu tinha que fazer durar o máximo, só nas áreas mais vitais. Fora o frio: quando eu fiquei embaixo do viaduto, por sorte era verão, mas ainda assim algumas noites eram geladas. Eu já tinha vendido minhas roupas melhores, e me virava só com um conjunto de moletom distribuído por uma organização de caridade, este aqui aliás, e mostrou a calça rasgada. O papelão não estava resolvendo muito, aí eu encontrei nos fundos de um supermercado o motor da câmara frigorífica, e aninhado ali eu conseguia dormir. No terceiro dia me acharam e me acordaram com um balde de água gelada. Era frequente também que me roubassem a mercadoria, por mais que eu tentasse escondê-la; experimentei usar os panos como colchão, mas eles ficavam contaminados da minha sujeira, imprestáveis. Isso tudo sem contar o desprezo com que você é tratado o tempo todo; hoje eu já não ligo, mas... Não, Vinícius, eu não quero aparecer e contar que passei por isso.
Algum orgulho ainda lhe restava então, e isso era bom. E isso não enriquece ainda mais o relato? Aliás, você pode simplesmente dizer que fez tudo como pesquisa para o livro, vão admirar sua coragem. Ele pensou um pouco. Eu não quero mais escrever sobre mim mesmo, Coito Interrompido me esgotou, eu já disse. Faz o seguinte: escreve você, Vinícius, disse, dando uma palmadinha em minha perna. Eu assino, te dou uma porcentagem. Eu fiz um gesto de exasperação: eu não sei escrever como você, Luís, não tenho seu estilo, não tenho seu talento! Eu confio em você, você escreve, eu dou algumas sugestões. Não aceitei uma segunda dose. Era já de noite, e ouvimos o barulho do portão lá fora. Seu Fabrício, ele explicou. Conversamos um pouco sobre como é comum o recurso ao famoso escritor fantasma; fomos interrompidos por alguma altercação dentro da casa, mas não demos muita importância.
A ideia começava a me agradar, era um desafio: a mim mesmo, já desiludido do ofício da escrita, e à obstinação dele em aceitar sua condição aviltante. Luís, olha, pode funcionar sim. Mas eu não quero uma porcentagem, em quero outra coisa... Bateram à porta. Era o seu Fabrício, Luís nos apresentou brevemente. Eu percebi que ele mantinha uma mão para trás, e que no bolso de sua calça havia um volume. Seu Luís, eu queria te perguntar: isso aqui - e revelou, na mão que escondia, uma cueca - já foi meu, eu me lembro quando levei pra você; como foi parar no meu quarto? Ora, seu Fabiano, deve ter sido algum equívoco da Carmen e... Equívoco? Equívoco foi tentar ajudar você seu vagabundo! Ela já confessou tudo - e sacava um revólver enquanto proferia outros insultos. Eu pulei da cama onde estava sentado e me interpus entre os dois, tive que segurar o braço direito do padeiro, que lutava para se livrar. Luís deu um safanão em nós dois que nos levou ao chão, e aproveitou para escapar pelo corredor. Eu desarmei meu adversário e segui meu antigo ídolo e recente amigo, jogando o revólver por cima do muro.
Quando apareci em casa com um ambulante maltrapilho, ele mesmo não objetou a que eu finalmente contasse tudo a minha esposa. Ela achou a história fantástica, assim como a ideia do livro. Foi ela mesma quem convenceu o pai a pagar pela clínica de reabilitação, que era a parte no trato que Luís teria que cumprir, a única retribuição que eu exigia pelo meu trabalho, que no fim foi um prazer. Nos trinta dias em que esteve internado, eu o visitava duas vezes por semana, com um gravador. Ele mesmo, para passar o tempo lá dentro, começou a redigir contos, no papel mesmo; eu li e achei ótimos: outro estilo, a mesma elegância. Também fiz as vezes de seu advogado, recuperei os direitos de todos seus livros e arranquei uma pensão da esposa. Quando tudo isso saiu, ele deixou o sofá da nossa sala, para uma quitinete que ele já podia pagar por si mesmo - um adiantamento da editora foi também providencial. Nossos encontros continuavam, ele não pedia para alterar muito, acabavam sendo conversas animadas, regadas apenas a chá. O livro ficou pronto, foi publicado e fez sucesso imediato. Ele deu entrevistas, aceitou minha ideia de alegar que a mendicância foi só um laboratório. Depois de algum tempo, os mesmos produtores de Coito Interrompido propuseram filmar Chão Por Leito, mas queriam mudar o título. Luís Carrasco voltou a ter uma vida materialmente confortável, voltou a comer muitas mulheres, só não bebia nem jogava. O material que ele produzia enquanto eu me passava por ele também foi publicado mais adiante, na mesma época em que meu próprio volume de contos foi parar nas prateleiras com um prefácio dele.