Você é a Desgraça Necessária de Cada Dia, Amor

O mundo de ponta cabeça e essa ardência nos olhos; ouço meu mijo se chocando com a água da latrina; um filete de sangue sai do meu nariz e escorre pelos meus lábios e queixo, enquanto eu arqueio as costas, tento me equilibrar, tento me manter em pé, e tento fechar o zíper e o botão da calça. Me encaro no espelho suado, suado, cuspindo sangue, assoando sangue e sentindo tonturas. Já estou tão acostumado às ruindades que me cercam que a possibilidade de isto tudo culminar na minha morte não me assusta.

Sorrio, lavo as mãos, meto um tufo de algodão no nariz e volto ao lugar que me dá alento nas madrugadas: volto ao telefone. Ele está inerte. De acordo com o prisma da minha embriaguez, ele sobe e desce; de acordo com o pouco de racionalidade que me sobrou, ele está inerte. Fico desesperado pelo silêncio dele, e a esperança que reside nalgum canto recôndito do meu coração sufoca meu medo de ele não tocar. E eu preciso ouvir sua voz, meu amor... Preciso muito, entende? Sinto-me doente nessa hipocondria de me sentir doente por causa da ausência do placebo que você me é. Ainda é? Por que não mais? Há dias que espero um contato seu; há dias que mal durmo; há dias que me sinto idiota por toda a dependência que tenho da sua voz e das suas zombarias. Sinto-me aviltado pelo vício que você me é. Me é? Eu gostaria que seu sorriso desaparecesse da minha memória. Juro. Juro que eu gostaria que as reminiscências do seu perfume desaparecessem do meu septo. Juro. Juro que gostaria que seus olhos brilhando pra mim naquela noite de inverno ganhassem obscuridade suficiente para se extinguirem do meu peito doentio. Você é má, eu sei e sempre soube - eu sempre soube que a mesma maldade que te fazia me pisar com o bico do salto e derreter velas no meu corpo nu um dia te faria me abandonar sem sequer uma explicação. Foi nessa dualidade que me perdi; o ter e não ter ao mesmo tempo; a cisma Shakesperiana com iminentes desgraças e... Você é a minha desgraça necessária de cada dia, amor.

Já amanheceu outro dia e nada. O ar fresco da manhã e as os primeiros raios de sol invadem aqui. E nada. E nada, e outra vez adormeci e acordei ao lado de um aparelho apático. Outra vez ele materializa o que você é. De novo foco uma visão sem foco no holograma da sua imagem, naquele dia que nos abraçamos e beijamos numa escada rolante de Metrô, e que você prometeu não me soltar.

E me soltou.

E sumiu.

E me deixou sendo o desenho do Banksy.

Me deixou sendo o balão de amor voando alto e longe.

E me deixou sendo aquele que estica o braço em vão.

Procurando tocá-lo.

Reavê-lo.

Sem poder.

04/02/2012

The Draft - Impossible

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 04/02/2012
Código do texto: T3480187
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