Dance

Eu a comia com o corpo, cara. Uma mulher que se come com o corpo não deve jamais ser negligenciada, perdida, passada para trás. Errei. Convivo na solitude de uma culpa que é e não é minha. Que foi e não foi minha. Você sabe como se come uma mulher com o corpo? Eu também não; o problema é que você só se dá conta disso depois que tudo acabou, depois que já tem outra arreganhada na sua frente, e você só se vê com pau, dedos e língua como ferramentas sexuais. Eu criava tentáculos: a comia com as coxas e com os dentes; a comia chupando seus pés e seu clitóris; a comia lambendo seu períneo e torcendo seus mamilos; a comia gozando gritando e balbuciando "eu te amo" ao pé do ouvido, exausto, em exaustiva ataraxia. Eu mentalmente perscruto isto sobretudo pelo interesse de buscar o que engendrou a minha decadência e culminou nesta inevitável perda que tanto me dói, mas, também, com um mórbido interesse expiatório: só me verei em verdadeira paz após constatar que todo o esforço que fiz foi invalidado não pela minha promiscuidade traiçoeira, mas sim pela aspereza gélida em que de repente aquele gêiser de volúpia que ela era se transformou; pela belicosa criatura que se metamorfoseou/materializou em parcimônia, complacência e frigidez. Aqueles lábios, irmão, que antes de serem tocados, e durante muito tempo, foram fruto da minha mais ferrenha cobiça; aquele jeito de olhar o mundo pela perspectiva de uma criança, mas com um toque do próprio demônio nas íris acastanhadas e... Minha menina! Deixou-se abater por alguma repentina moléstia de esposa balofa e transformou toda a minha querência em incoerência; transformou toda a minha vitalidade em maratonas etílicas e conturbadas, vazias de sentido – tão mais vazias de sentido quanto a insistência do sol em proporcionar vida a quem não a deseja – alguém como eu, alguém como eu sem você com suas saias xadrezes de ninfa, Lu. Desprovido de coragem para enfrentar outro dia meu semblante errôneo no espelho. Frouxo, afogueado das mágoas, dançando para o rádio a pedidos de um suicida da minha idade. Dançando, dançando, dançando, dançando...

01/02/2012 - 09h30m

Joy Division - Transmission

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 01/02/2012
Reeditado em 01/02/2012
Código do texto: T3474992
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