E Assim, a Noite Atravesso

Olho para as teias de aranha nas quinas das paredes, absorto na tentativa de medir a espessura da tênue linha que me separa de uma agressão física que só terminará com a cessão dos batimentos cardíacos do ignominioso bode expiatório do meu ódio por tudo que respira e fala e supostamente pensa. Mas a pestilência que emana do ser que odeia assusta tanto quanto a pestilência que emana do ser que ama; outro dia mesmo estava eu, no maior dos bodes de mau humor, no trem, voltando para casa depois de um dia de labuta estafante, com toda a minha pele clamando por água gelada e sabonete e cama, quando sentou uma jovem mãe ao meu lado com uma criança impaciente, chorando aquele choro sem lágrimas que precede o sono; até então, nada que soasse discrepante da realidade do transporte público. Porém, na estação seguinte, entrou um desses vermes estúpidos, que são a cópia da cópia da cópia de uma laia de gente que parece ter sido escarrada pelo cu da Mãe Natureza; um merdinha passa-fome pobre de espírito metido a bandidinho fazedor de fitinha de carrinho na vilinha escrota onde foi criado sendo ignorado pelo sexo feminino; enfim, esse filho da puta sentou no chão e ligou música alta num celular. O de sempre. Mas a música estava realmente alta, e a criança parecia cada vez mais se sentir incomodada com o novo incômodo. Me vi de dentes e punhos cerrados, encarando-o com uma fúria demoníaca, pronto para saltar com os joelhos no queixo do miserável se ele ousasse repousar os seus olhos nos meus... Mas isso não aconteceu: uma mulher comprou a briga pedindo para que ele abaixasse o volume do aparelho, e a reação dele foi mandá-la se foder, porque ele não era moleque e queria ser tratado com educação. Meus olhos crispavam ódio. O embate oral continuou e findou sem que ele voltasse a cabeça diretamente pra mim. Isso me fez pensar que a valentia de determinados grupos só existe se os indivíduos desse grupo estão em grupo; eu não duvidaria se acaso ele estivesse acompanhado de dois ou três indivíduos a história fosse outra e eu me visse trocando soco com todos; sim, pois quando você não tem nada a perder e é corroído por uma animosidade dantesca por pessoas que ignoram o senso comum, a possibilidade da covardia diante de uma quase pungente possível surra inexiste. O ódio embota, anestesia; o ódio, quando disperso, quando execrado de maneira correta, ressuscita, rejuvenesce e te dá alento e força para prosseguir, enquanto o oposto, o amor, te enlanguesce, te transforma num maricas covarde e choraminguento.

Fito as paredes sem vê-las.

Remoendo um estômago tão vazio quando a própria vida.

Reminiscências regurgitadas em folhas de papel jazem ao meu redor, nas minhas tentativas frustradas de buscar uma explicação para tão contínua frustração que é acordar. Hoje, vejo tudo como mero monturo; foi-se o tempo que o caleidoscópio de perguntas sem respostas me fez pensar no suicídio - essa busca por respostas sem volta de respostas que não voltam.

Não sei nem o que sobrou de mim.

Não sei nem o que sou, não consigo me definir por um segundo sequer como algo que tenha propósito e precise continuar respirando.

De tanto sentir tudo eu não sinto mais nada; de tanto me importar com todos, hoje me vejo na obrigação de ficar sozinho para não morrer de tédio.

De tédio.

Querendo que o mundo desabe.

No mínimo.

Rilhando os dentes.

Invejando causadores de holocausto, e achando-os mimados com suas crenças cretinas, embasadas em delírios de grandeza, quando todos somos carne putredinosa; sim, patifes que conseguiram grandeza derramando sangue de gente não fez mal algum - além de nascer - a alguém .

A minha inveja é por não poder criar meu próprio holocausto, mas com toda a sofrida empiria dos bons.

Não precisamos dos maus.

Não precisamos de pedras no nosso caminho.

Precisamos de um exército que erradique a mesquinhez, a tacanhez e a falta de educação.

Erradicar a burrice auto-imposta da esmagadora maioria.

Através do derramamento de sangue impiedoso.

Porque só a morte muda. Ou a iminência dela.

Fito o teto, com todo o radicalismo do meu pensamento totalitarista fazendo meu sangue ferver e meu pau endurecer.

Fecho os olhos com a mão nele envolta.

Deslizo a mão pra cima e pra baixo, já com os olhos fechados.

Com carnificinas sem fim desfilando na minha retina entre mulheres de saias erguidas.

Trens descarrilando intercalando frames com golden showers.

Beatas em sacristias fazendo felching.

Vulcões explodindo e lavando Metrópoles.

Mil dedos num só cu.

Com os olhos fechados, com bocetas rosadas e paus vermelhos e prédios desmoronando diante dos meus olhos, eu ejaculo.

E mantenho os olhos fechados, descarrilando meu pensamento das sendas de sempre.

E mantenho meus punhos cerrados - unhas por cortar machucando as palmas -, centrado na seara inerme de sempre.

E assim, a noite atravesso...

25/01/2012

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 26/01/2012
Reeditado em 26/01/2012
Código do texto: T3463378
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