COISAS DA VIDA

Coisas que acontecem e a gente fica pasmada de ver, sem saber como e porque acontecem. As curvas do caminho. As pedras. Os tropeços. As voltas do mundo. Não se diz que o mundo dá muitas voltas? O destino... Ah, o destino! Meu compadre Joaquim Alexandre traz-me a mais incompreensível queixa da rotina de um homem casado. Bom chefe de família, caseiro. Do tipo que renuncia a tudo na vida - descanso, lazer, saídas com amigos, tudo, para se dedicar ao lar, à mulher e aos filhos. Homem sem fuga aos compromissos matrimoniais. Adorava a esposa. Por sinal, contava com uma boa parceira, compreensiva, sem mostras de ciúme, sem reclamações, sem problemas ou dificuldades. Ele é que não gostava de sair. Por ela não, se fosse do seu gosto, podia estar à vontade, chegar mais tarde, papear com amigos, tomar umas... Até namoricar, cometer alguma estripulia que fosse, ela não se incomodava.

Corre bem sua meia idade. Tranqüila e amena, pacífica. A mulher zelosa no lar, cuidadosa e carinhosa com os filhos, atenta com aos afazeres, e as coisas domésticas, dedicada ao marido, muito dedicada. Dormia cedo, logo depois de pôr as crianças na cama. Morada no interior, cidade pequena. Todas as coisas e todas as pessoas perto de todas as pessoas e todas as coisas, inclusive a igreja. Farmácia, armazém, padaria, médico, dentista, estavam bem aí. Só estirar umas pernadas. Levantava cedinho, para a missa, enquanto o marido, cujo compromisso de trabalho começava as nove, dormia até mais tarde. Mais do que ótimo. Mil maravilhas. Amor, confiança, relacionamento conjugal, cama, tudo bem. Passa o tempo, esse monstrinho, pacifico e frio, sem sensibilidade, que só sabe sorrir com as pessoas ou das pessoas que não sabem rir com a vida ou não têm paz e tranqüilidade para isso, por falta de bem estar, de boa pousada e mesa. Ih! O tempo sorri gozador insensível, das pessoas que não têm condições de rir.

Um dia, aí pelos 50 anos de idade, Graziela, a esposa do meu compadre, recusa-se a acolhê-lo na cama. Não diz por que. Ele espera dois dias. Ao buscá-la, nova recusa. Pergunta se está doente, se há algum problema. Resposta:

- Não, não pode, é pecado.

- Como?

- Sim, é pecado. A gente faz essas coisas para ter filhos, cumprir a lei de Deus – crescei e multiplicai. Eu já passei da idade. Não regro mais...

- Como?

- Ta na bíblia, na lei de Deus. Você não lê a bíblia sagrada...

- Onde você leu ou ouviu isso, mulher?

- O padre é quem diz.

- Como? O padre? O padre diz isso? Quando e onde você ouviu o padre dizer essa bobagem? Dessa bíblia?

- No confessionário! Onde é que padre fala das coisas de Deus, senão no sermão e no confessionário?

- O padre! No segredo da confissão! Mais esta! Esse padre ta mal intencionado. Desembucha essa história mulher! Mulher, mulher, o que você anda fazendo com esse padre? Será...

- Não será nada. Não ando fazendo nada. Ele disse e eu creio.

- Pai... Ta bom. Você fica com o sermão do padre, eu procuro outra mulher. Mudo de casa. O padre faz sua feira?

- Ah? E os filhos?

- Os filhos, vão comigo os que quiserem. Os que não, se arrumem com você, seu pecado e o sermão do padre. Esse padre...

- Aí eu vou à justiça!

- Justiça! E quando eu disser ao juiz que você me recusou por causa do sermão do padre no confessionário? Que é que acha que ele vai decidir? Te nega a pensão e te manda de volta para a minha cama. Aí serei eu que a recuso em definitivo. Por infidelidade.

- In... In... Quê?

- In-fi-de-li-da-de!

- Mais... E evitar o pecado é infidelidade? Credo cruz! Te arrenego, fanhoso!

Confesso que fiquei besta quando o compadre me disse isso. Pensei, pensei, pensei sem achar palavras. O compadre estranhou meu silêncio. E parece que o tomou como suspeição. Perguntou:

- Não diz nada? Sabe de alguma coisa que não quer dizer? Essa história de sermão... Padre é bicho safado!

- Não, não, não! Não sei de nada, nem tenho suspeição nenhuma. Estou é besta de ouvir. Sem acreditar. Parece que a comadre ficou biruta. Ou ta ficando. Como é que minha mulher, na mesma idade da sua e na mesma situação de menopausa, confessando-se com o mesmo padre, nunca me falou coisa parecida? Não dá pra entender!

- Pois é! Pra você ver! Compadre, eu desconfio que aí tem coisa!

- É, é mesmo pra desconfiar.

Afinal combinamos. Eu iria conversar com a comadre, sondar, aconselhar, e, se necessário ouvir o padre. Depois de ouvi-la, adverti que não havia pecado nenhum, minha mulher tinha a mesma situação e não me recusava, nunca mencionara essa orientação do padre. Sem que ela oferecesse senão evasivas e a repetida sustentação de ser pecado sim, estava na bíblia, me perguntei se a comadre não caminhava para a demência. Por via das dúvidas ouvi o padre. Ao mencionar a informação de que ela dizia que ouvira de si, no confessionário, tomou um susto.

- De mim? No confessionário? Ta ficando doida! Pode levá-la ao médico, ta ficando doida!

Aí eu fui realmente ao clínico que a atendia. Este não sabia, rodou em subterfúgio, não podia revelar as doenças e os problemas dos pacientes, os seus segredos eventualmente revelados... Faz parte da ética... Assunto de marido e mulher, nada a ver com médico... E porque o marido não se convencia da recusa e não buscava uma amante, sabia lá... Era assunto dele. Tive dúvidas. A bem dizer, desconfiei das reticências e subterfúgio. Agradeci e deixei o consultório com uma suspeita. Investiguei. De anos o médico e a paciente eram amantes. A certa altura este, enciumado do marido, quis ser o dono único e sugeriu a fantasia. E agora, como dizer ao compadre? Coragem para essa verdade cruel? Botei duro na comadre.

- Olha, comadre, não adianta remendo. Não pega. Investiguei sua vida com o doutor. Antes que aconteça uma desgraça, deixa a casa de teu marido e vai viver com o teu clínico. Em algum outro lugar, aqui não, que seria perigoso. Não quero dizer-lhe essa verdade cruel. Amanhã, depois, cedo ou tarde ele descobre. E podem morrer dois, indo o terceiro para a cadeia. Teus filhos ficam ao abandono.

A reação foi de pranto convulsivo. Estavam apaixonados de muito tempo e ela há muito simulava aceitar o marido, até o ponto de não suportar o remorso.

- Essa desculpa foi invenção dele, desabafou. E ele é casado, tem mulher e filhos não quer me assumir.

- Pior, comadre, você se fez adúltera com um canalha! E seus filhos de quem são - dele ou do compadre?

- E eu sei...

- Então eu vou contar a verdade. É bom que se prepare para o pior e dê um sinal disso ao canalha do seu amante. Podem cair no tiro!

Deixei-a chorando. Dois dias depois o compadre me procurou dizendo que a esposa havia desaparecido. Tive de contar-lhe a dura verdade. Em seis meses ele estava com outra e com essa criou os filhos, seus de gene ou não – seus de amor. O médico silenciou, simulando que de nada sabia. E a comadre, que fim levou? Era uma cinquentona muito bonita, desejada.

Dez anos depois, um pouco mais, em viagem de recreio, encontro-a em uma cidade muito distante, sentada no passeio de uma rua do centro histórico, freqüentada por marginais, ainda que recebesse a visita de muitos turistas em busca de curiosidades e coisas antigas. Uma cuia na mão. Pedia esmola aos transeuntes. Mal a reconheci. Ao ver-me, caiu em pranto. E falou simplesmente que o amante a recusou e deu um dinheiro, aconselhando que procurasse outro lugar para viver. Não tinha profissão, escolaridade, o preparo mínimo que ensejasse a oportunidade de um emprego, um trabalho. Não havia para quem apelar. Não podia ficar na cidade. Saiu silenciosa. Silenciosa viveu em outro lugar. De prostituição. Depois de faxineira na casa onde começara vendendo o corpo. Ao fim, posta no olho da rua. Na rua vivia e na rua esmolava.

Consegui, com apoio de amigos, interna-la em um asilo de desamparados. Não soube mais de si, desagradava-me saber. Do ex-marido sei. Casou-se segunda vez. Criou e encaminhou os filhos. Passou à vida eterna semana passada, sem saber dela. Notícia nenhuma, se era viva ou morta.

Pensamento maldito: na verdade morrera ao deixar sua casa. A mim, pela participação nos fatos, ficou a inspiração para o registro da triste história. O médico? Ainda vive. E bem.

João Justiniano da Fonseca