O DEFUNTO QUE CAIU DA ESSA.

 

 

 

Este é um conto, mas é um conto verdadeiro e não um conto inventado, pois ele era contado pelo meu pai com todos os exageros, assim como se faz quando se conta um conto, é claro.

O que eu vou relatar aconteceu quando o meu pai, (que Deus o tenha) era moço e contumaz freqüentador de velórios, não por solidariedade à família do “de cujus”, mas por completa falta de opções para o laser nesta pacata cidade.

Naquela época por volta de 1939 quando morria alguém, esse infausto acontecimento era considerado um feriado obrigatório, assim propiciava aos jovens daquela época um dia em que o trabalho era frouxo, por isso não estavam sujeitos as criticas pela vagabundagem do dia.

Havia morrido um senhor muito conhecido na cidade, ele sempre viveu sozinho, por certo, poucas pessoas conheciam o seu passado e se tinha um era respeitado, porque naquela época respeitava-se a vida alheia, entretanto hoje, eles viram, desviram o teu presente e o passado e se puderem reviram também o teu futuro.

Esse dito senhor de passado ignorado ou respeitado, todas as manhãs bem cedo tocava as suas lamúrias na sua gaita de fole, e esse hábito musical já servia de despertador para a vizinhança que não se importava com os acordes desse solitário vizinho.

Certo dia não se ouviu mais a gaita de fole, pois o infeliz amanhecera morto, talvez fulminado por um fatídico enfarto, mas o fato é que a vizinhança já o achou enrijecido e esparramado sobre a tarimba, um sinal evidente de que estava morto a várias horas, em virtude do visível enrijecimento cadavérico.

Nessas horas sempre se pode contar com o espírito solidário das pessoas, principalmente daquelas senhoras viúvas que gostam de manusear um defunto.

O fato é que o lavaram com toda a liturgia fúnebre, todavia e, de vez em        quando, davam aquela olhada de soslaio e furtiva às partes pudendas também enrijecidas.

Terminado o trabalho da lavação cadavérica, tiveram que pedir auxílio aos homens, pois não conseguiram juntar as mãos ao peito e nem fechar as pernas do endurecido senhor.

Com o esforço de alguns homens rudes acostumados com a lida da roça e do mar, enfim, conseguiram juntar os membros inferiores e os superiores do desbragado defunto, pois ainda não haviam vestido o infeliz para as exéquias de pobre.

As pernas e os punhos foram amarrados com tiras de pano, supostamente pano usado e podre.

A bem da verdade eram aquelas tiras de pano que se fazem para tecer as mantas, enfim, foi com elas que fixaram esses membros estendidos para que não se esparramasse de novo.

Naquele tempo não existia agência funerária com os seus esquifes ou caixões prêt-à-porter e, em função dessa dificuldade, o defunto era provisoriamente velado numa essa.

A essa era uma porta, que dado a premência da ocasião, era arrancada do seu lugar e apoiada sobre dois cavaletes ou caixões de querosene que, era geralmente posta na sala para a devida visitação pública e o exercício do obrigatório velório cristão.

Assim exposto o defunto nessa porta, um carpinteiro filantropo tirava-lhe a medida para a feitura de um caixão, e esse caixão artesanal quase sempre chegava atrasado.

Sobre o dito defunto se colocava flores das laranjeiras muito comuns nessa época, e que serviam para aromatizar o ambiente.

Acendiam-se duas velas e, ao lado do falecido, postava-se um copo com água benta e um ramo de arruda para o devido ritual das benzeduras, um costume muito comum nesta região de colonização açoriana.

Dependendo da quantidade das visitas ao velório, quando chegava à noite o pobre defunto já estava encharcado, obviamente que não conseguia ficar gripado, mas, por certo estava totalmente resfriado.

Fazia frio e à noite, o velório prosseguia com aquelas piedosas senhoras resmungando uma oração labial e, os homens como sempre, contando piadas e bebendo uma “água tordada” ou a tal da “mardita”, evidentemente que estamos nos referindo à companheira de todos os velórios: A cachaça.

Altas horas da madrugada, pois o galo já havia cantado pela segunda vez e alguns também já estavam cochilando, mas o defunto pobre coitado, amarrado sobre pressão fazia força silenciosamente sobre a essa.

Lá pelas tantas o defunto se atirou no assoalho derrubando a essa onde estava e alguns visitantes, dizem que o pessoal desse velório está correndo até hoje.

Depois de refeitos do susto e entendido a ocorrência do fenômeno, tiveram que juntar o defunto de braços estendidos e pernas abertas e colocá-lo novamente sobre a essa.

De manhã cedo chega o caixão fresquinho, tentaram colocar o de cujos, mas não houve jeito que desse jeito.

O negócio foi enterrá-lo enrolado numa manta, mas como não era esse o costume da região, houve bastante dificuldade em transportá-lo à morada final, pois tiveram que levá-lo de carro-de-boi.

Tenho observado que os velórios, independente da classe social do falecido, continuam os mesmos, a única mudança óbvia é a do defunto.

O fato é que os velórios são os mesmos, as rezas são as mesmas, as piadas são as mesmas, a cachaça não é mais a mesma, agora é o Scotch Whisky, apenas o defunto que é diferente, pois agora ele vai para a cidade dos pés juntos de automóvel.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Eráclito Alírio da silveira
Enviado por Eráclito Alírio da silveira em 13/01/2007
Reeditado em 13/01/2007
Código do texto: T345877