TEOGONIA
Se eu tivesse aprendido alguma, Maria Eunice, talvez eu me permitisse agora fazer uma oração, ao invés de ficar fazendo inúteis reflexões sobre esta janela para o mundo, nesta noite de lua nova. Preces e orações, dizem os teólogos, contribuem para tornarem nossas almas energeticamente mais densas enquanto reflexões feitas a esmo, sem uma unidade morfológica que lhe dê um sentido lógico, ou uma consistência de plano elaborado para algum propósito, só contribuem para queimar mais rápido a energia do universo. Sim, Maria Eunice. Isso pode ser um paradoxo, mas é verdade. O mesmo processo que é responsável pelo surgimento e organização do universo também o conduz para a sua morte. Você já pensou em quanta energia a natureza – ou quem a controla− precisou reunir para vencer a entropia da matéria e começar o processo que resultou no fenômeno da vida e depois disso, no ser humano? Sim, porque o ser humano é o resultado do esforço sinergético do Espírito que rege o universo, esforço esse que Ele fez e continua fazendo para organizar a própria desorganização que Ele gerou com a sua explosão inicial. Se ficou difícil de entender pense em Deus como se Ele fosse uma daquelas bexigas de aniversário, cheia de balas dentro dela. De repente ela explode e atira balas para todos os lados. Só que, no caso Dele, são balas de milhões de megatons, muitas delas maiores que o nosso sol. Se colidirem umas com as outras não teremos um universo habitável, mas sim um oceano cósmico de infinita radioatividade. Então Ele teve que inventar a lei da gravidade, para fazer com que corpos menores fiquem presos nas órbitas dos corpos maiores e estes, por sua vez, tendo cada um que carregar a sua “família”, não entra na órbita de outro corpo de igual densidade energética. Cada um mantém uma órbita própria, evitando entrar no campo de gravidade do outro. Assim restabelece-se o equilíbrio no universo físico e bota-se ordem no caos. E com o universo das nossas sociedades também é assim, Maria Eunice. Há uma hierarquia, onde os “mais competentes” mantém em suas órbitas os menos “competentes”. Quer dizer, também existe uma lei da gravidade que mantém o equilíbrio nas sociedades humanas. Da mesma forma que no espaço cósmico existem nebulosas, galáxias, sistemas planetários, planetas, satélites, e asteróides que não pertencem a nenhum sistema, mas que vivem eternamente perambulando pelo espaço sem se fixar a nada, também entre nós existem Estados, famílias, empresas, generais, soldados, patrões e empregados, tudo formando uma hierarquia de funções e responsabilidades que mantém a coisa toda em equilíbrio. E existem também os asteróides, como eu, que teimam em não se prender a sistema algum, embora saiba o quão inútil e mentirosa é essa proposta de vida.
Sim, você tem razão. Você me disse várias vezes que essa minha mania de ficar fazendo confidências à noite é resultado de pura insônia. Que se eu fosse um trabalhador comum que rala duro durante o dia, não ia querer ficar acordado à noite, uivando que nem lobisomem para a lua cheia, ou suspirando que nem donzela medieval para a lua nova. E se fosse também um pouquinho religioso, se tivesse uma teologia ao invés de uma teogonia, f
aria uma oração e iria dormir.
Sim, é bem possível. O homem que bem reza, bem dorme. Está escrito. Todavia, na estrada da vida que estação está mais perto da morte que o sono dos justos que não tem conta nenhuma para acertar com a vida? Eu se me sinto tão inadimplente... Talvez por isso não consiga dormir. Como pagar as minhas contas com a vida? Ela é como a minha empregada. Todos os dias ela vem para arrumar a casa, lavar a minha roupa, organizar a minha bagunça. Deixa tudo arrumadinho á tarde e encontra tudo bagunçado na manhã seguinte. É assim com a minha vida. Termino o dia prometendo que o dia seguinte será diferente, que vou manter tudo arrumadinho, do jeito que a minha empregada deixou. Mas daí chega a noite, ela entra pela janela, como uma amante clandestina, e tudo vira uma bagunça outra vez.
Sim. A noite, é assim mesmo que eu a vejo. Ela chega como tarde e com respeitosa cerimônia eu a assisto trocar de roupa. Veste o seu escuro baby doll e torna-se noite. Todos os dias tenho com ela um conúbio amoroso, que resulta sempre nestes atrapalhados filhos do espírito, que abandono pela manhã. E saciado no meu prazer intelectual, fico na janela do quarto esperando surpreender a manhã seguinte depois de despedir a minha amante noturna, que então se tornou madrugada, com um até breve afetuoso.
Decididamente eu não quero mesmo dormir. Quando eu morrer terei a eternidade toda para isso; e se a eternidade não for mais que um instante, como penso que deve ser, morrerei com mais prazer porque sei que estarei retornando no instante seguinte. Ás vezes penso que seria bom morrer definitivamente para me libertar desta inquietude que me mantém acordado à noite e não me oferece sequer a esperança de descobrir porque me inquieto. Morto, eu não teria preocupações de espécie alguma e não seria mais este foco de convergência energética para onde um Deus indiferente ao meu destino como individuo, mas muito plugado no destino da sua criação, dirige suas setas criadoras no seu eterno trabalho de síntese universal. Sim, porque eu talvez não tenha nenhum interesse para Ele enquanto indivíduo, mas tenho certeza que o que faço Lhe interessa. Se Ele me pôs nesta janela, para especular, a esta hora da madrugada, é porque este ato é necessário na fórmula que Ele compôs para o universo. Ele nada faz ou deixa que se faça, que não seja necessário.
Mas também pensar que jamais me inquietarei novamente me inquieta ainda mais. Pensar em mim, morto, é uma visão desesperadora, porque não consigo me conciliar com a visão daquela máscara definitiva com que entrarei no derradeiro mistério desta vida. Desta, Maria Eunice, porque eu não sei se existirão outras depois, como tenho certeza que já houve antes. E muitas até, pois eu acredito que já vivi muitas vidas, em outras formas, desde que saí da primeira célula até chegar a esta grande síntese convergente de infinitas combinações energéticas que resultou neste ser pensante, aqui, nesta janela sobre o mundo, nesta noite de lua nova.
De qualquer modo posso consolar-me com o pensamento de que não morrerei nas próximas horas nem nos próximos dias, porque gozo de boa saúde e não estou pensando em suicidar-me. Meu coração sabe disso por isso está batendo despreocupado. Meus pulmões também sabem disso por isso executam seu trabalho de fole sem a menor ansiedade. Deus também sabe disso e a mulher que veio dormir comigo esta noite também sabem disso, por isso essa cruel indiferença que eu percebo neles, pois me parece que Deus não escuta o que eu digo e ela ressona tranqüila, num sono sem metafísica, enquanto eu fico aqui interrogando a noite em busca de respostas impossíveis. Parece que só eu permaneço acordado neste universo, onde todos dormem, sonham e parecem se contentar com isso. (...)
Se eu tivesse aprendido alguma, Maria Eunice, talvez eu me permitisse agora fazer uma oração, ao invés de ficar fazendo inúteis reflexões sobre esta janela para o mundo, nesta noite de lua nova. Preces e orações, dizem os teólogos, contribuem para tornarem nossas almas energeticamente mais densas enquanto reflexões feitas a esmo, sem uma unidade morfológica que lhe dê um sentido lógico, ou uma consistência de plano elaborado para algum propósito, só contribuem para queimar mais rápido a energia do universo. Sim, Maria Eunice. Isso pode ser um paradoxo, mas é verdade. O mesmo processo que é responsável pelo surgimento e organização do universo também o conduz para a sua morte. Você já pensou em quanta energia a natureza – ou quem a controla− precisou reunir para vencer a entropia da matéria e começar o processo que resultou no fenômeno da vida e depois disso, no ser humano? Sim, porque o ser humano é o resultado do esforço sinergético do Espírito que rege o universo, esforço esse que Ele fez e continua fazendo para organizar a própria desorganização que Ele gerou com a sua explosão inicial. Se ficou difícil de entender pense em Deus como se Ele fosse uma daquelas bexigas de aniversário, cheia de balas dentro dela. De repente ela explode e atira balas para todos os lados. Só que, no caso Dele, são balas de milhões de megatons, muitas delas maiores que o nosso sol. Se colidirem umas com as outras não teremos um universo habitável, mas sim um oceano cósmico de infinita radioatividade. Então Ele teve que inventar a lei da gravidade, para fazer com que corpos menores fiquem presos nas órbitas dos corpos maiores e estes, por sua vez, tendo cada um que carregar a sua “família”, não entra na órbita de outro corpo de igual densidade energética. Cada um mantém uma órbita própria, evitando entrar no campo de gravidade do outro. Assim restabelece-se o equilíbrio no universo físico e bota-se ordem no caos. E com o universo das nossas sociedades também é assim, Maria Eunice. Há uma hierarquia, onde os “mais competentes” mantém em suas órbitas os menos “competentes”. Quer dizer, também existe uma lei da gravidade que mantém o equilíbrio nas sociedades humanas. Da mesma forma que no espaço cósmico existem nebulosas, galáxias, sistemas planetários, planetas, satélites, e asteróides que não pertencem a nenhum sistema, mas que vivem eternamente perambulando pelo espaço sem se fixar a nada, também entre nós existem Estados, famílias, empresas, generais, soldados, patrões e empregados, tudo formando uma hierarquia de funções e responsabilidades que mantém a coisa toda em equilíbrio. E existem também os asteróides, como eu, que teimam em não se prender a sistema algum, embora saiba o quão inútil e mentirosa é essa proposta de vida.
Sim, você tem razão. Você me disse várias vezes que essa minha mania de ficar fazendo confidências à noite é resultado de pura insônia. Que se eu fosse um trabalhador comum que rala duro durante o dia, não ia querer ficar acordado à noite, uivando que nem lobisomem para a lua cheia, ou suspirando que nem donzela medieval para a lua nova. E se fosse também um pouquinho religioso, se tivesse uma teologia ao invés de uma teogonia, f
aria uma oração e iria dormir.
Sim, é bem possível. O homem que bem reza, bem dorme. Está escrito. Todavia, na estrada da vida que estação está mais perto da morte que o sono dos justos que não tem conta nenhuma para acertar com a vida? Eu se me sinto tão inadimplente... Talvez por isso não consiga dormir. Como pagar as minhas contas com a vida? Ela é como a minha empregada. Todos os dias ela vem para arrumar a casa, lavar a minha roupa, organizar a minha bagunça. Deixa tudo arrumadinho á tarde e encontra tudo bagunçado na manhã seguinte. É assim com a minha vida. Termino o dia prometendo que o dia seguinte será diferente, que vou manter tudo arrumadinho, do jeito que a minha empregada deixou. Mas daí chega a noite, ela entra pela janela, como uma amante clandestina, e tudo vira uma bagunça outra vez.
Sim. A noite, é assim mesmo que eu a vejo. Ela chega como tarde e com respeitosa cerimônia eu a assisto trocar de roupa. Veste o seu escuro baby doll e torna-se noite. Todos os dias tenho com ela um conúbio amoroso, que resulta sempre nestes atrapalhados filhos do espírito, que abandono pela manhã. E saciado no meu prazer intelectual, fico na janela do quarto esperando surpreender a manhã seguinte depois de despedir a minha amante noturna, que então se tornou madrugada, com um até breve afetuoso.
Decididamente eu não quero mesmo dormir. Quando eu morrer terei a eternidade toda para isso; e se a eternidade não for mais que um instante, como penso que deve ser, morrerei com mais prazer porque sei que estarei retornando no instante seguinte. Ás vezes penso que seria bom morrer definitivamente para me libertar desta inquietude que me mantém acordado à noite e não me oferece sequer a esperança de descobrir porque me inquieto. Morto, eu não teria preocupações de espécie alguma e não seria mais este foco de convergência energética para onde um Deus indiferente ao meu destino como individuo, mas muito plugado no destino da sua criação, dirige suas setas criadoras no seu eterno trabalho de síntese universal. Sim, porque eu talvez não tenha nenhum interesse para Ele enquanto indivíduo, mas tenho certeza que o que faço Lhe interessa. Se Ele me pôs nesta janela, para especular, a esta hora da madrugada, é porque este ato é necessário na fórmula que Ele compôs para o universo. Ele nada faz ou deixa que se faça, que não seja necessário.
Mas também pensar que jamais me inquietarei novamente me inquieta ainda mais. Pensar em mim, morto, é uma visão desesperadora, porque não consigo me conciliar com a visão daquela máscara definitiva com que entrarei no derradeiro mistério desta vida. Desta, Maria Eunice, porque eu não sei se existirão outras depois, como tenho certeza que já houve antes. E muitas até, pois eu acredito que já vivi muitas vidas, em outras formas, desde que saí da primeira célula até chegar a esta grande síntese convergente de infinitas combinações energéticas que resultou neste ser pensante, aqui, nesta janela sobre o mundo, nesta noite de lua nova.
De qualquer modo posso consolar-me com o pensamento de que não morrerei nas próximas horas nem nos próximos dias, porque gozo de boa saúde e não estou pensando em suicidar-me. Meu coração sabe disso por isso está batendo despreocupado. Meus pulmões também sabem disso por isso executam seu trabalho de fole sem a menor ansiedade. Deus também sabe disso e a mulher que veio dormir comigo esta noite também sabem disso, por isso essa cruel indiferença que eu percebo neles, pois me parece que Deus não escuta o que eu digo e ela ressona tranqüila, num sono sem metafísica, enquanto eu fico aqui interrogando a noite em busca de respostas impossíveis. Parece que só eu permaneço acordado neste universo, onde todos dormem, sonham e parecem se contentar com isso. (...)