A Cavalgada das Valquírias

O impacto fora tão violento que até os “airbag” do motorista e do passageiro haviam estourado. No piso retorcido do carro, garrafas de uísque, latas de cervejas e energéticos misturavam-se ao vermelho rubro do sangue que encharcava sandálias de salto alto, tênis de marca e bolsas de grife. Por cima do entulho, corpos desconjuntados de cinco jovens, três moças e dois rapazes que um dia foram bonitos agora jaziam desfigurados pela alquimia de álcool, imprudência e velocidade.

O socorrista Marquinho e os outros dois colegas tinham pressa na retirada das vítimas. Um cabo de alta tensão do poste que sofrera a colisão contorcia-se como uma víbora furiosa à procura do tanque de combustível que vasava copiosamente. Urgia afastarem-se o mais rápido possível dos destroços do veículo despedaçado que se dependurava por cima do poste caído.

Cuidadosamente Marquinho e os outros socorristas retiraram uma das vítimas de dentro dos destroços do carro de luxo e a deitaram no outro lado da avenida próximo ao meio-fio, depois, retornaram ao veículo na tentativa de retirada dos outros passageiros.

Conseguiram resgatar uma moça, na verdade uma adolescente com forte odor de bebida destilada, e, quando estavam atravessando o meio da Avenida Jorge Teixeira os tímpanos dos socorristas praticamente estouraram com o barulho da explosão do tanque de combustível. A força do deslocamento do ar jogou socorristas e vítima ao chão, uns sobre os outros.

Ainda atordoado o grupo arrastou a jovem para perto do meio fio e olharam impotentes para a bola de fogo e fumaça que envolvia o automóvel destroçado.

Por uns poucos segundos o socorrista Marquinho pensou ver uma jovem loira de cabelos longos trajando jaqueta e calça comprida de couro negro por entre a cortina de fumaça que se espalhava pela avenida. A jovem parecia que estava no meio do fogo e carregava em seus braços uma das vítimas, que agonizante, debatia-se como se lutasse para se soltar dos braços da jovem que ostentava um sorriso enigmático.

Quando Marquinho correu em direção à jovem loira a fim de auxiliá-la no socorro ao ferido ainda ouviu de um dos colegas o grito de aviso:

-Cuidado, seu maluco! Cuidado com o cabo de alta tensão... Acho que depois da explosão não ficou nenhum vivo, se é que tinha algum...

Marquinho deu a volta na fogueira que ardia por cima do poste tombado, esquivou-se dos fios da rede elétrica que soltavam fagulhas e procurou a jovem loira e a vítima, não viu ninguém. Intrigado, indagou dos curiosos que se aglomeravam próximo ao carro sinistrado e nenhum curioso soube informar sobre a jovem descrita pelo socorrista e nem sobre a vítima que ela salvara das chamas.

-Meu caro! Você está ficando maluco? Você acha que depois da explosão e dos fios de alta tensão que estão em volta do carro, alguém ia ser insensato o bastante para se aproximar do local?

Surpreso com o inusitado da situação Marquinho desesperado tentava convencer o grupo de curiosos da existência da mulher misteriosa que salvara um dos passageiros:

-Cara, eu vi! Tinha uma mulher loira, toda vestida de preto com uma das vítimas nos braços. O sujeito se debatia como se quisesse se soltar dos braços da mulher.

Um bêbado que se encontrava por perto murmurou para outro que, de latinhas na mão, olhavam com indiferença para o fogaréu.

-Vai ver o cara da ambulância viu foi a Dona Morte carregando o bacana que se ferrou no acidente. Caraca! Acho que o motorista deveria vir a uns duzentos por hora quando bateu no poste. Nem em cinema 3D eu vi uma cacetada tão grande.

Marquinho ainda estava fazendo perguntas aos curiosos quando os colegas o chamaram de volta para o trabalho.

-Meu amigo, vamos dar atenção para esses dois aqui, os que ficaram no carro, há esta hora já estão carbonizados... Agora é responsabilidade dos bombeiros e legistas.

Marquinho ainda insistiu:

-Eu vi... Eu juro que eu vi uma mulher retirando uma vítima do carro... EU JURO!

-Tenha dó, Marquinho! Antes da explosão só estávamos nós e mais ninguém perto do carro.

-NÃO! NÃO! Não, não foi antes da explosão, foi depois... A mulher retirou a vítima logo depois da explosão. A vítima ainda estava se debatendo.

-‘Tá maluco, cara! Para mim, todos morreram no impacto... Se havia alguém vivo, com certeza estava desacordado... E depois da explosão com certeza também ficou carbonizado, ou seja, mortinho da silva. Agora deixa de bobagem e me ajuda a posicionar o Colar Cervical nesta menina, talvez ela ainda tenha alguma chance... O outro já está morto.

- o –

A ambulância parou cantando pneu em frente ao Hospital João Paulo II. As portas traseiras da ambulância abriram-se de par-a-par e a equipe de socorristas desceu empurrando a maca móvel em direção ao Pronto Socorro lotado de bêbados, alguns em coma alcóolico, outros esfaqueados ou baleados; acidentados de todos os tipos, de motos, carros, bicicletas e até um skatista com o pulso quebrado esperava atendimento médico.

As madrugadas de sábado para domingo em Porto Velho eram pródigas na produção de pacientes nos PS dos hospitais da Capital.

- o –

O socorrista Mateus chegou perto de Marquinho, colocou a mão no ombro do colega e sentou-se ao seu lado no para-choque da ambulância.

-Pronto! Deixei a paciente aos cuidados da equipe médica. Ouvi dizer que ligaram para os pais da menina... Parece que vão leva-la para um desses hospitais particulares da cidade. Quem pode, pode né não? Quem não pode fica por aqui mesmo no açougue do João Paulo II.

-Que bom! Quem sabe ela até consegue sair dessa com vida. E não fala assim não, Mateus, o pessoal aqui faz o que pode.

‘Tá! Eu sei...!!! – E dando uma cotovelada carinhosa nas costelas do amigo, Mateus perguntou preocupado:

-Marquinho, o que foi que aconteceu lá no local do acidente? A impressão que a gente teve é que você surtou... Me diz uma coisa...! Você anda dobrando plantão em hospital privado?

-Não é nada disso Mateus! É que só agora me ocorreram umas lembranças... Umas coisas que eu não tinha dado a devida atenção... Presta atenção para o que eu vou te falar... E isso vai ficar só entre a gente... O que eu vou falar para você não pode vazar daqui... Entendeu?

-Pôxa, cara! ‘Tá me estranhando? O que se fala no plantão morre no plantão. Assim você até me ofende. ‘Tá de SACANAGEM, né?! Fala aí... O que é que está pegando?

As confidências sempre presentes na pausa entre um socorro e outro e que serviam de válvula de escape para o estresse constante foram interrompidas bruscamente:

-MARQUINHO... MATEUS... Enquanto descansa, carrega pedra! Vamos moçada... Todo mundo embarcando na Unidade Móvel... Outra cacetada das feias... Agora foi na esquina da Avenida Pinheiro Machado com a Jorge Teixeira... Pertinho do local da ocorrência que a gente acabou de atender... Uma “HILUX” e um “golzinho”... O “golzinho” pegou a caminhoneta no meio... Jogou a “HILUX” na vala do canteiro central... O policial que está no local informou que os cinco ocupantes do GOL, incluindo o motorista, estão gravemente feridos... O carona da camionete morreu na hora, o motorista da “HILUX” está preso nas ferragens... E parece que está muito mal.

- o -

Antes mesmo de a ambulância estacionar no local do novo acidente, Marquinho vislumbrou entre os curiosos que se aglomeravam juntos aos carros sinistrados a loira misteriosa. Ela estava acompanhada de uma morena de cabelos tão negros e sedosos que cintilavam à luz dos postes. A loira agarrava o pulso do motorista do GOL tentando arrancá-lo do meio das ferragens enquanto a morena puxava a cabeça do carona da “HILUX”.

-Olha lá, Mateus! O que é que aquelas mulheres estão fazendo ali, perto das vítimas? Será que os policiais que estão atendendo a ocorrência não sabem que não são permitidos civis se aproximarem dos feridos?

-Que mulheres, Marquinho? Ali só tem a turma do sereno, os policiais e os feridos.

-Mateus! PUTA QUE PARIU! Tu és cego, cara? Olha lá! Olha lá... Cada uma com um ferido...

-Porra nenhuma, cara! Ali só tem abelhudo peruando o acidente. Aliás, não tem uma mulher sequer, só os marmanjos bêbados de sempre... PELO AMOR DE DEUS...!? Cara, tu estás precisando de férias... Meeesssmo... E urgente!

Marquinho preferiu ficar calado, desceu do banco do carona e correu em derredor da ambulância para ajudar o colega a descer a maca móvel e a caixa térmica de primeiros socorros ao tempo em que perguntava aos policiais militares que guardavam a cena do acidente:

-Policial... O que essas mulheres estão fazendo junto aos feridos?

-Que mulheres, rapaz? Desde que nós chegamos não permitimos a aproximação de nenhuma pessoa sem autorização... ‘Tá maluco, cara?

-Com o devido respeito, policial... Maluco é a puta que...

-Puta o quê, cara... Escuta aqui ô... Vou te dar duas opções, maluco... Talvez três! – E erguendo polegar, o policial começou a enumerar: primeira, ficar calado e ir atender os feridos; segunda, te levar preso por desacato e... Terceira, TE ENCHER DE PORRADA! Escolhe aí, malucão! É cada uma que me aparece... Tem que ter muito saco! Se manda, meu...! Se manda e vai fazer o teu trabalho!

-Mateus...! Ô MATEUS...!!! Fala para o cara aí, porra! Diz pra ele que tá cheio de mulheres junto aos carros... Cada uma com uma vítima... Olha lá... Antes eram duas agora são sete... Olha lá... CACETA!!! Será que somente eu que estou vendo essa mulherada ao redor dos carros?

Gentilmente os colegas de Marquinho o pegaram pelo braço e o levaram de volta para a ambulância onde um deles rapidamente aplicou-lhe um sedativo e voltou para juntar-se à equipe.

Sob o efeito do sedativo, Marquinho, meio grogue, meio lúcido, saiu da ambulância e caminhou alguns passos, depois se sentou na calçada e pôs as mão por sobre a face tentando entender o que estava se passando com ele.

“Que coisa absurda era aquela? Como é que ninguém via aquelas mulheres voejando em volta dos feridos? Como é que pode?”

Imerso em suas angústias e dúvidas, Marquinho não percebeu que a loira misteriosa sentara-se ao seu lado e o olhava fixamente.

O socorrista quase deu um pulo quando percebeu a misteriosa e linda mulher que, sentada ao seu lado, o olhava com um sorriso de Mona Lisa nos lábios carnudos e rubros. A cabeleira dourada esvoaçava suavemente embalada com a brisa matinal radiante pelos raios de um Sol incipiente que tentava romper as trevas da madrugada. Seus olhos de um verde esmeralda profundos evocavam os mais estranhos desejos e temores escondidos nas profundezas de seus instintos mais primitivos.

O verde dos olhos da estranha mulher o atraia com um magnetismo hipnótico. A jiboia e o pardal.

Marquinho piscou diversas vezes e com um esforço supremo recobrou o controle sobre suas ações e fixando o olhar na boca carnuda da mulher para não ser atraído novamente para o abismo dos olhos dela, perguntou de supetão:

-Quem é você? Qual o seu nome? Na verdade, quem são vocês?

-Nós somos as Valquírias!

-Valquírias? Como Valquírias? Todas vocês se chamam Valquírias?

-Sim! Todas nós!

-Que palhaçada é essa? ‘Ta querendo tirar com a minha cara, garota? Aliás, vocês estão interferindo no trabalho dos socorristas... O acesso aos feridos é somente para o pessoal autorizado.

-Nós não interferimos em nada... Na verdade, o único que nos vê é você e ninguém mais... E essa condição tem nos dados muitos aborrecimentos... Sempre que estamos fazendo o nosso trabalho e você está presente nós temos que limpar a sua mente depois, e isso é muito trabalhoso, muito desgastante... A sua mediunidade extrapola o razoável, você é um sensitivo muito poderoso.

(...!?)

-É isso mesmo... Deixa eu te explicar... Nós somos antiquíssimas e fazemos esse trabalho há séculos e pouquíssimos mortais têm essa tua capacidade de nos vê... E poucos mantêm a serenidade... Na grande maioria quando os mortais nos vêm quando eles não perdem a sanidade são diagnosticados como esquizofrênicos, em suma, são tratados como loucos, o que da na mesma.

-Valquírias... Valquírias... Espera aí! Na teogonia nórdica eram umas mulheres, na verdade, deidades belíssimas que sob as ordens de Odim percorriam os campos de batalhas para recolher a alma dos guerreiros mais bravos, os heróis... É isso?

-Correto!

-E que história é essa que somente eu posso vê-las?

-Você é um sensitivo de rara mediunidade... É só por isso... Não sabia?

-Não! Não sabia... O que sei é que sofro de enxaquecas horríveis e sei também é que eu tenho uma vaga lembrança de vocês... Pensando bem... De você... Sempre que tem um acidente feio envolvendo bêbados, drogados e inconsequentes, eu tenho a vaga lembrança de ter visto o vulto ou o teu perfil perto dos mortos... Quase sempre puxando o braço ou a perna de um deles... Em outras vezes carregando-os nos braços... Lembro que hoje mesmo eu te vi carregando um ferido... O infeliz estava se debatendo e gritando...

-É verdade! O nosso trabalho é esse... Levá-los para o destino final deles... E eles nem sempre aceitam cavalgar conosco... Para eles, os bêbados, os drogados ou simplesmente, os ignóbeis, cavalgar na nossa garupa nem sempre é agradável. Para muitos deles, a grande maioria, a nossa aparência é simplesmente aterrorizante... Entendeu...? Não...? Então, deixe-me explicar melhor... Essa aparência de deusa, de Valquíria, nós assumimos somente para os dignos, para os abjetos nós assumimos a forma de Equidna, um monstruoso ser mais terrível que uma Quimera, sua filha. Daí, o horror que eles sentem quando nós os recolhemos.

Perplexo com o rumo da conversa Marquinho levantou-se e ficou caminhando em círculos pela calçada. Depois, parou em frente à loira e encarando-a, agora sem o menor receio, questionou-a:

-Escuta aqui, Maria...

-Valquíria! O meu nome é Valquíria! Te onde foi que você tirou esse nome... Maria?

-Ora, ora! Para mim, você será Maria Valquíria ou Valquíria Maria... Não pode ter um grupo de pessoas com o mesmo nome... É insano... Ilógico... Continuando... Maria Valquíria. Tem um detalhe que não está batendo com a tua história... Um detalhe muito importante... Crucial!

-Que detalhe?

-Até onde eu sei... As Valquírias, que no nórdico antigo, literalmente, quer dizer “as que escolhem os que vão morrer” não era o nome de vocês e sim, a denominação, que, por estranho que possa parecer, tem uma grande diferença. E mais, as Valquírias recolhiam as almas dos bravos para leva-los à “Valhala”, o paraíso dos heróis, e não o rebotalho das batalhas, os covardes, os infames... Na sociedade atual, em um percentual expressivo dos acidentes, o que se encontra é essa escória que se droga, se embriaga e pega o volante para matar e estropiar, e depois se esconde nas dobras do manto da lei.

-Marquinho, esse tipo de problema tem que ser resolvido pelo teu povo, pelos mortais... Não é problema nosso. O trabalho do meu grupo é recolher o ‘animus’ dos morrem que violentamente, e, como eu disse, leva-los para o destino final deles.

-A contradição continua... Por exemplo: os feridos que estão no gol são meros trabalhadores, e o cara da “HILUX” é um empresário, famoso pela prática de filantropia. Como você pode ver vocês estão recolhendo o... Como é mesmo o nome? “ANIMUS”... Isso mesmo, “animus” das pessoas erradas.

A loira deu um sorriso irônico e retrucou:

-Antes de qualquer coisa vamos esclarecer que sim, somos conhecidas como Valquírias e que temos os nossos próprios nomes, porém, eles são simplesmente impronunciáveis no português. Depois eu te explico sobre a nossa presença sobre os mortos de hoje.

-Mortos? Até onde sei somente os passageiros que nós não conseguimos resgatar no primeiro acidente e o carona da “HILUX” morreram, a moça e os demais passageiros do GOL e da camionete estão vivos. Portanto...

-Portanto... A jovem que você retirou do carro no primeiro acidente acabou de exalar o último suspiro. A propósito, o nome dela era Maria... Maria Rosa. Morreu sem dor, tranquila. Essa nós não vamos levar, outros se encarregarão dessa passagem.

-Ué? Eu achei... Bem... Quer dizer... Você está dizendo que existem outros, quero dizer, outras, iguais a vocês? Como assim?

E agarrando a loira misteriosa pelo braço se pôs a sacudi-la dizendo.

–E como é que você sabe que a garota morreu, se ela está no hospital e, pelo que estou vendo, você não atendeu nenhuma chamada do celular? Aliás, nem sei se você tem celular... Sua... Sua... Seu demônio!!!

A loira fez um gesto de enfado do tipo que se faz quando se explica algo complicado para alguém que está confuso e sem entender o que está escutando, e, para demonstrar algo parecido com carinho ou mesmo intimidade, ela passou a mão levemente pelos cabelos do rapaz, respirou fundo e respondeu:

-Querido! Pode até parecer pedantismo de minha parte... Eu até entendo o nó que estamos dando na tua cabeça, porém, existem mais coisas misteriosas entre o céu e a terra do que é capaz de discernir os teus parcos conhecimentos... Portanto, vamos por partes:

PRIMUS - desde tempos imemoriais nós nos encarregamos de recolher as almas ou espíritos, como queira, dos heróis das batalhas, porém, com o advento da era moderna e o fim das guerras heroicas, épicas, somando-se a tudo isso o esvaecimento da fé em nossa existência e o aumento dos massacres sem honra, sem sentido, o nosso papel se inverteu, em vez de levar os heróis para o paraíso, passamos a coletar os infames, os degenerados, os malditos para o limbo... E pode acreditar... Essa nova função nos dá mais prazer agora do que antes;

SECUNDUS – antes cavalgávamos cavalos alados levando na garupa os dignos, agora, arrastamos os ímpios, os ignóbeis, montadas num Hipogrifo, e, para desespero desses desgraçados que idolatram os ritmos, Sertanejo Universitário, Funk, Pancadão, Techno e outras baboseiras mais, nós os arrastamos em seus últimos delírios ao som da ópera de Richard Wagner.

TERTIUS e último – e como supremo castigo para eles e deleite para nós, através de indução, colocamos nas mentes desses degenerados no modo randômico, claro, um trecho da nossa ópera preferida composta por Wagner, ou seja... O início do TERCEIRO ATO da ópera DIE WALKÜRE (As Valquírias).

Sem atinar para absolutamente nada do aquela estranha mulher estava falando o socorrista Marquinho piscou várias vezes para tentar concatenar as ideias e perguntou meio abobalhado:

-E que trecho seria esse?

-Ora meu caro, que outro trecho seria senão a “Cavalgadas das Valquírias”?

-Certo! Vá lá que eu entenda essa doideira toda... Acontece que continuam três pontos obscuros nessa história toda.

A loira com uma das mãos segurou os cabelos longos e sedosos junto à nuca e com a outra tirou do bolso traseiro da calça de couro uma tira de tecido de seda e com ele amarrou as madeixas no estilo “rabo-de-cavalo”. Depois de sacudir a cabeça para sentir o efeito do arranjo ela fez um sinal para Marquinho convidando-o para sentar-se novamente no meio-fio do acostamento da avenida.

-Meu querido, dos mortos do primeiro acidente, somente a mocinha que você resgatou era digna... Entrou de gaiata naquele acidente... Iludida, estava acompanhando uma vizinha de apartamento que, sem ela saber, era garota de programa e namorada de um cocainômano que estava no volante... O viciado, que, a bem da verdade, estava com o nariz entupido de cocaína e os “chegados” dele, o outro cara e a namorada, aplicaram um “boa-noite cinderela” na adolescente e a estavam levando para satisfazer as taras sexuais deles. Como você pode ver, tirando a garota, não tinha nenhum santo naquele grupo.

-Pode até ser... E os envolvidos nos outros acidentes?

-Aí é a que coisa fica interessante... O grupo do “GOL” tinha acabado de assaltar o caixa eletrônico de uma agência bancária lá no centro da cidade... Porque é que você acha que estavam correndo tanto?

Sem se dar por satisfeito Marquinho ainda inquiriu a mulher.

-‘Tá legal! ‘Tá legal! E o cara da “HILUX”? O motorista? O cara é um empresário respeitadíssimo na alta sociedade local. Aliás, está preso nas ferragens mais ainda está vivo, pelo menos por enquanto.

-Engano seu... Dois enganos, na verdade! A morena que você viu ao meu lado está recolhendo o safado agora mesmo... Dá só uma olhada como grita e se debate, o covardão.

Marquinho olhou para onde a loira apontava e vislumbrou por entre os curiosos, policiais e socorristas o motorista da “HILUX” gritando e se debatendo enquanto era arrastado pelas garras de um estranho animal conduzido pela linda morena.

-Como pode? O cara é um pai de família respeitado. A morena não pode recolhê-lo assim... Desta maneira...

-Que respeitado que nada, Marquinho... Deixa de ser ingênuo... O filho-da-puta é um dos maiores pedófilos que essa cidade já teve... O pedaço de bosta sevicia até os próprios filhos... Esse, eu pessoalmente vou me encarregar dele... Vai ser o meu brinquedo preferido.

-E o carona, fazia o quê?

-O carona era o agenciador do escroto. E, só para você ficar sabendo... Eles estavam a caminho de uma casa humilde lá no subúrbio, no final do Bairro Caladinho para pegar uma criança de apenas oito anos...

Sorrindo com ferocidade a loira levou dois dedos à boca, assobiou e um cavalo branquíssimo com asas cobertas de plumas prateadas surgiu do nada, ali, do lado deles.

Depois de montar agilmente na sela de pelica negra elegantemente ornamentada de veludo vermelho ela comentou entredentes enquanto pressionava com leveza os calcanhares nas ilhargas do Pégaso instigando-o a alçar voo:

-A colheita hoje, meu caro Marquinho, foi farta...

Já no alto a loira olhou para baixo, beijou na palma da mão e soprou em direção ao embasbacado socorrista.

- o –

Mateus se aproximou do amigo, abraçou-o com o braço esquerdo e vagarosamente o levou para a ambulância.

Deixando-se conduzir sem oferecer resistência, Marquinho deitou na maca, a equipe fechou as portas traseiras e após ligar as luzes estroboscópicas de advertência o líder do grupo acionou o motor de partida e direcionou a ambulância para o PS do Hospital de Base.

- o -

Depois que o médico de plantão liberou Marquinho, o amigo Mateus se ofereceu para leva-lo para casa.

-E aí, Marquinho? Que doideira foi aquela? De longe, enquanto vistoriava as vítimas eu dei uma olhada lá para a calçada onde você foi sentar e te vi andando em círculos, aparentemente conversando com alguém, porém não vi ninguém... Depois eu vi que você olhou para cima e acenou com a mão com se estivesse cumprimentando alguém... Dando adeus... Sei lá...! Cara! Na moral, ‘tá sabendo? Realmente...!!! Vou falar para o chefe te dar férias com a maior urgência possível... Você está estafado... ‘Tá só o bagaço... ‘Tá lôco, meu!

-É verdade... Eu estava acenando para as Valquírias... Elas estavam levando os caras na garupa... Estavam indo em direção da Ursa Maior... Meu! Como eles estavam apavorados...!!!

-Quê! Pirou de vez!!! Que história é essa de Valquíria...? Cavalgando...? Ursa Maior...? Apavorados...? Quem...?

-Deixa eu te explicar... Não... Melhor não... Quer saber? Me leva para a minha casa e deixa essa história pra lá... Cara! Se eu te contar um décimo do que aconteceu nesta madrugada vocês me internam num hospício e jogam a chave fora.

(...!!!???)