Acertando as contas

O ônibus encostou na rodoviária, estava pronto para encarar uma viagem intermunicipal de uma hora mais ou menos, havia pouca gente, portanto não senti necessidade de colocar meus pacotes no compartimento de carga e decidi carregá-los comigo, sentei em um banco mais ou menos no meio do ônibus, na poltrona do corredor e coloquei minhas sacolas nos bancos atrás do meu.

Logo logo começou a entrar um grande fluxo de pessoas, uma moça sentou no banco do corredor atrás do meu, e colocou minhas sacolas no assento ao lado da janela. Me virei para ela e pedi que me alcançasse as sacolas.

Ela aparentava ter uns 20 e poucos, uma moça bonita mas com um jeito meio estranho ao meu ver, algo me dizia que se tratava de uma pessoa egocêntrica, enfim, sempre fui bom em ler as pessoas mesmo. Ela me alcança as sacolas, observo que abaixo das sacolas no banco tinha um cordão com um tipo de pingente, desses de usar no pescoço, aquilo não era meu, mas enfim, acabei pedindo para ela me alcançar também.

Se tratava de uma estrutura redonda de metal, com um furo no centro onde o cordão se amarrava. Era um tanto espesso, apesar de não ter muito diâmetro, havia algumas inscrições nele, dizia: “Grupo JCC São Paulo”. Sem saber o porque coloquei no pescoço, acho que para parecer que realmente era meu, pois aquela moça do banco de trás estava me observando, podia sentir.

Logo que o ônibus partiu, um rapaz sentado no banco do corredor do lado oposto ao meu passou a me olhar também, enfim, sentia que alguma coisa estava errada. Mais alguns minutos ele não se conteve e cutucou meu braço, olhei para ele com uma cara pouco amigável e fiquei esperando ele falar.

- Oi tudo bom? – Falou o cara

Apenas acenei com a cabeça fazendo uma cara de desaprovação.

- Esse cordão que tá usando no pescoço, desculpa perguntar, fiquei curioso… você faz parte desse grupo?

Dei mais uma olhada no cidadão da cabeça aos pés e mandei um sonoro “não enche” para ele, vi que a moça sentada atrás de mim prestava atenção em cada palavra.

Ela se ergueu revoltada do banco, de uma maneira que eu já tinha imaginado que iria acontecer, botou a mão no meu ombro e disse em um volume considerável: “ei, se um irmão perguntar se você faz parte do grupo, você não pode negar”.

Virei para ela rindo sozinho, eu fiquei curioso e queria saber que porcaria de grupo era aquela do pingente e eis que ela joga a primeira pista pra mim. O sujeito do meu lado olhava para ela com um certo ar de reprovação e eu respondi olhando para ela: “foda-se”.

Me virei e fiquei curtindo a viagem, reparei que mais um outro rapaz lá da frente me encarava, eles eram três, isso eu já sábia… mas que raio de grupo era esse? Por que eu peguei esse raio de cordão? Enfim, esse nunca foi o meu estilo….

Desci na rodoviária de São Paulo, estava uma correria doida por lá, enfim, nada fora do normal. Aquele trio do ônibus desce e ficou conversando enquanto me olhavam, isso já tava me cheirando e encrenca, mas enfim, ignorei, peguei um táxi e segui meu rumo.

2

No dia seguinte saí cedo e encarei um expediente chato de trabalho como a maioria das pessoas tem que encarar, enfim, todo emprego tem seus dias parados. Mais claro que meu dia não ficaria assim por muito tempo, se não nem me daria o trabalho de descrevê-lo para vocês. As coisas voltaram a se complicar quando voltei para casa. Entrei e não havia ninguém na sala como de costume, apenas uma luz vinda do escritório, adentrei meio com o pé atrás pois sabia que algo estava errado. Abro a porta e encontro minha mulher jogando cartas com quatro figuras, três delas eram aquelas do ônibus… felos da ….

- Oi amor – Diz Luciana se levantando e me dando um beijo – Te apresentar aqui um grupo de pôquer que conheci pela internet, essa aqui é a Camila (a moça atrás de mim no ônibus), esse é o Izac (o cara que me perguntou do grupo), esse é o Nicolas (o que estava na frente do ônibus) e esse é o Carlos (esse tenho certeza que não estava no ônibus).

Cumprimentei eles com um aceno rápido tentando esconder minha cara de surpresa… Grupo de pôquer? Coisa de maluco, todos usavam roupas escuras, pra mim parecia mais uma banda gótica.

- Vou pegar um café pra gente – Disse Luciana saindo do quarto.

Aproveitei que ela se ausentou e me aproximei da mesa encarando eles um por um.

- Então… grupo de pôquer né? – perguntei.

- Relaxa, só estávamos curiosos e decidimos fazer uma visita pro irmão- disse Izac.

Irmão? Seriam crentes doidos? Óbvio que não. Então eles ainda consideravam a hipótese de eu ser um deles? Ou estariam apenas brincando comigo?

- Certo… mas eu não os convidei pra minha casa- falei cruzando os braços.

- Relaxa irmão, amanhã de manhã a gente vem te buscar pra ir pra sede- disse Camila.

Eles se levantaram, se despediram de mim, deram uma desculpa qualquer para Luciana e se foram.

Não sei ao certo, eu podia ter dito que não sabia do que estavam falando e que apenas passei a mão naquele raio de cordão caído no banco de um ônibus da rodoviária… mas eu não fiz, não era assim que eu normalmente agia mas a curiosidade estava além da conta, aquele povinho estranho tinha me tirado do sério e agora eu já tava bem envolvido com esses malucos, mais do que eu gostaria.

3

Eram oito e meia da manhã e não sei porque cargas d’água eu estava parado na frente de casa esperando um desses caras vir me buscar. Logo logo vem um carro preto quarto portas, não conheço o motorista, mas vejo Izac no banco do carona e Camila no banco de trás. O carro para exatamente na minha frente.

- Entra aí – diz Camila abrindo a porta de trás

Respirei fundo e entrei.

- Esse aqui é o Marcos, coordenador da equipe – diz Camila me apontando para o homem de aproximadamente 30 anos que conduzia o carro. Puta merda, coordenador da equipe? Óbvio que devem saber que eu não sou um deles.

- Bora pra Sede, Marcos – diz Izac.

Passam uns 20 minutos e estamos bem no centro, ele para em frente a um prédio preto de quatro andares, abre o portão da garagem do mesmo com um controle e entra. O estacionamento é daqueles subterrâneos, haviam vários carros, todos de marcas caras.

Descemos do carro e rumamos a um elevador, sentia que Camila me olhava como se tivesse me analisando, fazia o possível para me manter firme e parecer estar calmo, algo que eu não estava.

Subimos ao terceiro andar, logo que o elevador se abriu já vi portas duplas de vidro com películas com a sigla JCC, nesse momento todos me olhavam, peguei e tomei a frente adentrando as portas. Havia um conjunto de mesas, com computadores, papelada e tal como qualquer escritório, as pessoas lá dentro todas aparentavam seus 20 e poucos anos e alguns deles sem blazer deixavam a amostra seus coldres com armas… puta merda, aonde eu me meti?

O Grupo foi me conduzindo mais ao fim da sala, enquanto outro cara se aproximou deles.

- O grupo da segurança do chefe avisou que ele chega em 30 minutos – avisou o cara para Marcos.

- Perfeito, informa que o espião industrial da fábrica 3 encontrou o criador – respondeu Marcos.

MERRRDAAAA, que porra era essa? Um grupo que protege algum riquinho e sai matando gente? Enfim, estava nervoso demais para raciocinar qualquer coisa, só sabia que eu não devia estar ali.

- Bom irmão, aqui é a sede da cidade. Te trouxe aqui para você conhecer a equipe. – Falou Marcos

- Realmente, uma boa estrutura vocês tem aqui – Falei tentando parecer técnico de algo que eu nem sabia o que era – Só não posso me estender muito que tenho alguns compromissos.

- Certo, não queremos atrapalhar seu trabalho, vou te levar para casa e quem sabe a noite a gente se encontra pra uma confraternização. – Disse Marcos.

- Me parece uma boa ideia – Falei.

- Certo, então te vemos a noite irmão – Disse Camila apertando minha mão e me olhando de um jeito como se conseguisse ler meus pensamentos.

Desço novamente, entro no elevador, agora era o Marcos e eu apenas… não me parecia boa coisa. Assim que saímos do estacionamento Marcos pegou um rumo diferente do qual a gente veio… um calafrio tomou conta do meu estomago.

- Ei cara, você não esta indo me levar em casa ? – Perguntei.

- Não – disse Marcos.

- Olha só cara, você pode me deixar aqui mesmo que eu vou de ônibus – Falei.

- Eu vou parar ali adiante naquele beco – Falou Marcos.

PUTAMERDAPUTAMERDAPUTAMERDA… agora eu tava ferrado.

- Olha só cara, não precisa fazer isso – Falei

Marcos apenas riu e encostou na entrada do beco.

- Olha só – disse ele apontando para um pavilhão que havia no fim do beco – quem sabe tu não desce e entra lá para ser o que tu finge ser.

- Que eu finjo ser? – tentei enrolar.

- É… um de nós – Disse Marcos.

Respirei fundo por alguns instantes, olhei novamente para Marcos, abri a porta e fui a passos trêmulos até a porta do pavilhão.

4

Estava frente a frente com aquela grande porta vermelha de ferro que se destacava no fim do beco. Hesitei por mais alguns instantes antes de bater na porta, mas por fim acabei fazendo.

Um senhor de cabelos grisalhos mas com grande porte físico abriu a porta e me olhou sorridente.

- Então você é o novato – disse ele – Bem vindo ao nosso curso de iniciação, essa primeira etapa tem quinze dias de duração, os quais você passará aqui em regime de quartel, depois disso o resto do treinamento acontece na sua fase probatória.

- Quinze dias aqui? Mas e meu emprego? E minha mulher? –perguntei.

- Olha só, para a patroa você inventa algo, quanto a emprego não se preocupe, o Sr. Jean Carlo é muito generoso – respondeu o senhor.

Jean Carlo? JC… agora as coisas começaram a fazer um pouco de sentido, Jean Carlo é um mega empresário, vários negócios pela cidade e uma mega corporação que dirige com mais algumas pessoas.

Foi um passo pesado e difícil, mas eu adentrei aquele galpão.

A partir desse dia eles ensinaram várias técnicas de espionagem e contra espionagem, escutas, câmeras, e uma outra série de coisas que as pessoas normalmente só vem nos filmes. Nesse período ocorreram vários jantares e outros encontros com aquele grupo do ônibus e fui me aproximando e até acabei gostando daqueles malucos. Todos abandonaram suas casas ainda jovens, recrutados pela tal JCC e se consideravam realmente como irmãos, a única família com quem conviviam.

Boa parte da motivação do grupo existir e outras informações sobre o que realmente faziam não me foi revelada, claro, eu era um maldito novato em um grupo insano de mercenários.

As coisas só foram mudar no final do meu décimo quinto dia, uma comunicação chegou, o pessoal se reuniu para discutir, consegui ouvir o que falavam, era uma ordem para matarem o outro rapaz que foi lá em casa, Carlos. Era algo sobre ele ter decidido sair para levar um vida normal, estava se relacionando com uma outra moça da equipe e ambos queriam cair fora… coitados.

Saí de perto para não desconfiarem que eu estava escutando, sentei em uma sala e fiquei analisando aquele pingente que ainda guardava comigo, pela primeira vez percebi um risco que mostrava que as partes pareciam encaixadas. Pressionei e nada, mas assim que tentei girar , uma ponta USB igual a de pen drives se revela… olho para os lados para ter certeza que não havia ninguém por perto, após o conectei ao computador. Lá havia uma espécie de codificação que invertia letras do alfabeto para criar uma criptografia própria, muito similar ao alfabeto carbonara. Criptografada, havia uma lista com nomes e celulares da equipe, endereços de empresas e etc.

Mal saí do computador escondendo o pingente, Izac entrou na sala.

- E então Irmão, queremos que nos acompanhe hoje a noite, o chefe achou importante – Disse Izac

- E o que vai acontecer hoje a noite? – perguntei

- Vamos resolver um caso de traição, apenas esteja pronto – respondeu Izac se retirando.

No cair da noite partimos em uma van, todos estavam quietos e distantes, eles sentiam remorso… podia sentir isso. Será que conseguiriam matar um “irmão”? e porque o “chefe” me queria aqui? Para ver o que acontece com quem sai?

- Chegamos – diz Izac

Ele, Marcos e Camila desceram do carro. Izac pediu para eu ficar de vigia no carro, disse que eu ainda não estava preparado para participar de uma ação. Fiquei lá pensativo, pois eu estava prestes a descobrir a que ponto essas pessoas que eu aprendi a gostar são realmente humanas ou apenas marionetes… enfim… a resposta não demorou , aconteceram três disparos e logo os três voltaram rapidamente para a van. Nenhuma palavra durante a viagem de volta.

Assim que chegamos novamente ao pavilhão, esperei eles se retirarem aos dormitórios e fugi por uma janela sem pensar duas vezes, eu já tinha me aproximado demais, muito mesmo, ligo para Luciana e digo que esta na hora dela partir. Saio sem rumo… vou para o hotel mais vagabundo da cidade, pois é onde eu deveria estar.

5

Saí mais ou menos às dez horas da manhã do dia seguinte, acordei naquele dia certo que já sabia de tudo, aquele cordão embaixo das minhas coisas no ônibus foi colocado por eles, eles me selecionaram, me observaram e me recrutaram.

Primeiro fui pro lugar que eu chamava de casa, apenas para ver a porta arrombada e Luciana caída em um poça de sangue. Eles descobriram minha fuga muito rápido. Fiquei ali olhando para ela… às vezes desejava que ela realmente fosse minha esposa, era uma pessoa dedicada ao trabalho e muito amável… não conseguiu escapar a tempo… foi pega de surpresa por eles.

Acabei me distraindo e nem ouvi os passos atrás de mim… era um deles, esse eu não conhecia muito bem, apenas de vista… eu senti ele se aproximando.

- Pensou em fugir irmão? – disse ele

Me virei calmamente… olhei para Luciana… olhei para ele e sorri… isso 1 segundo e meio antes de sacar minha nove milímetros e dar 3 tiros na cara do filho da puta. Agora a merda já foi feita, devia agir de longe, acabei me aproximando por curiosidade e uma colega morreu… hora de limpar a bagunça e fazer o que me mandaram vir fazer.

21 horas, o movimento era alto naquele prédio de 4 andares, havia vários deles lá dentro… um bando de jovens malucos que foram recrutados por um riquinho corrupto para cuidar das indústrias, da segurança e fazer pressão em comerciantes e proprietários de terra a venderem tudo por um preço miserável. Eles já sabiam da morte do colega e estavam reunidos tentando me achar a todo custo. Logo que descobriram que matei um eles redobraram a segurança do prédio, sorte que entrei antes… eu não durmo em serviço.

21:10… detono o disjuntor, agora estamos todos com a pouca iluminação de emergência, uma vantagem para olhos treinados. Escuto movimento… eles estão vasculhando o prédio, não tenho tempo a perder. Furtivamente vou à sala de reunião me escondendo atrás das mesas. Naquela sala estavam Izac e Camila conversando… deixei propositalmente que me visem. Me olharam um tanto surpresos como se não me reconhecessem mais, antes de se mexerem Izac já caiu morto no chão com a minha faca cravada em seu pescoço.

- Mas como? – se questionou Camila assustada – a gente te estudou, te escolheu.

- Eu fiz vocês me escolherem, eu fiz vocês me darem o pingente… era tudo parte de um plano e o plano não era de vocês – Expliquei pouco antes de estrangular a moça.

Era uma questão de planejamento, e agora que já tinha três mortes desse trabalho, não me parecia mais tão mal planejado assim. Fazer com que me escolhessem mas não me aproximar demais, foda-se, me aproximei, mas enfim, o trabalho estava sendo feito.

O contratante? Um menino de dez anos… o preço? Um pacote de bolachas. Talvez ele sinta remorso por ter me “contratado”, mas com o tempo ele supera. O coitado perdeu seu pai e sua mãe… mortos porque não queriam vender o sítio no qual viviam da agricultura para um burocrata cheio do dinheiro… Jean Carlo… Eu não precisava de dinheiro, eu não precisava de motivos, não conhecia o garoto nem a sua família, mas de alguma forma eu sabia que devia agir. Ok, admito, era consciência, era meu passado me remoendo porque eu sabia muito bem o que o garoto sentia… eu senti na pele… eu perdi tudo, tudinho… e eu me vinguei, não queria que ele fizesse o mesmo, preferi fazer por ele.

Continuei nas sombras pegando quem passasse de surpresa com a minha faca, pois não queria fazer barulho, não ainda. Deixei apenas a faxineira viva.

Jean Carlo esperou com segurança reforçada que eu fosse lhe matar, por varias semanas, o que não aconteceu. Próximo ao final do ano saiu no jornal que todos na casa estavam mortos devido a um veneno encontrado no reservatório de água… meu trabalho estava feito.

Jonas Tiago Silveira
Enviado por Jonas Tiago Silveira em 05/01/2012
Reeditado em 24/10/2019
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