Resto do que fui um dia
Quem sou eu?
Fui me dar contar disso esta tarde. Eu não sei mais quem sou.
Mas não se trata de perda de memória. Muito pelo contrário, minha memória está tão boa que me lembra a toda hora daquilo que já não sou mais.
Parece que na nossa língua falta uma palavra, aquela que poderia dizer quem sou eu.
Foi assim, havia uma criança caminhando displicentemente pela rua, roupa por lavar, cabelo por pentear, talvez até banho tivesse em atraso. No momento em que olhei para ela me lembrei, era um dos órfãos da dona Carmosina, coitado.
Dona Carmosina era uma viúva, jovem ainda, foi deixada pelo marido vítima de um infarto fulminante. Ficou com três filhos pequenos para criar e dívida no armazém para pagar. Seu marido lhe deixou além desses três filhos, uma conta para ela pagar em cada boteco e muita roupa suja para lavar.
A roupa suja era aquela que precisava lavar para sustentar os filhos e pagar as cachaças que o marido bebeu depois que acabou com o dinheiro da venda do seu barraco onde moravam. Mas essa ela lavou numa boa. A roupa suja que ela não suportou lavar foi com aquelas cobranças das mulheres de suas aventuras noturnas. Que ele fizesse suas farras com as prostitutas, mas não deixasse a conta para ela pagar, que ela não era santa.
Assim ela não suportou e se foi, tomou a cachaça que sobrara no litro até não poder mais, e depois foi pro quintal e tomou o veneno de rato que ela mesma havia posto dias antes. E agora os filhos ficaram órfãos de pai e mãe.
Por mais desgraçado que seja, por mais triste que seja a história, tem sempre uma palavra, um adjetivo ou um nome que define a situação. Quem perde o marido é viúva, que perde a mulher é viúvo, quem perde os pais é órfão. Mas e eu? Quem eu sou?
Quando perdi meus pais virei órfão, casei virei marido, eu tive filhos e virei pai, perdi a mulher e fiquei viúvo. Mas agora que perdi meus filhos, não sei mais quem sou eu.
Eu sou só no mundo, mas não é essa a minha dor. A minha dor é tão forte que não há um nome que possa designá-lo. Eu sou um pai que não tem filhos, pode? Claro que não! Quem não tem filho não é pai e nem mãe.
Um dia já fui filho, já fui neto, já fui marido e pai. Hoje não, hoje não sou mais um pai, sou apenas o resto do que fui um dia...