Vida Sabor Sangue

"Dorme comigo?", ela disse, sem saber meu nome, sem fazer com que eu soubesse o dela; tocou no meu ombro e perguntou e pelo braço me puxou. Diante de tal semblante não hesitei nem por um instante, e fui, com o coração acelerado de forma alarmante. "Mas promete que não me toca?", ela pede, eu balanço a cabeça. Não a tocarei, não a tocarei, repito, enquanto andamos pela calçada apinhada por pessoas hostis; com luzes de natal por todos os cantos; com inimigos por todos os cantos; com dúvidas em todos os cantos da minha cabeça bêbada. E andamos, desviando de postes, de sacos de lixo amontoados, de cães sarnentos e de mendigos com pinto de fora. O suor de sua mão ossuda mistura-se com o suor da minha mão calejada, e andamos, com o céu escuro em rodopio, com a garoa fustigando nossos cachos; com a garoa abrilhantando as omoplatas desnudas dela, que me olha de forma avoada por cima do ombro a cada cinco passos; cinco passos e ela vira e olha, e olha nossas mãos, e anda, e segue em frente, e não quer saber quem sou e se sou capaz de cumprir promessas a uma estranha depois de duas doses servidas de gim. Então ela pára. Paramos. Diante de uma porta dupla alta de um prédio de apartamentos com fachada de tijolinhos vermelhos e janelas brancas e ela enfia a chave e gira o trinco e entramos. Eu sorrindo sem saber e ela séria e sorrindo sem saber também, ou talvez sabendo e não se importando, como eu, rindo sem saber e sem me importar, apenas subindo um elevador abraçado com uma estranha molhada, de vestido cinza com estampas de hexágonos pretos, sentindo seus seios no meu torax, eu, me estranhando no reflexo côncavo do domo da câmera do elevador. A porta abre e a luz se acende e entramos e ela deixa que o vestido deslize pelo seu corpo, contra a luz que vem de fora, uma silhueta voluptuosa que prometi não tocar, e não toco; toco na mão que me é estendida e que me guia ao quarto e que me joga na cama e puxa minha camisa e minha calça e minhas meias e meu relógio e meu cabelo; mão que liga um abajur, que abre uma fresta na janela que permita que o ranger os freios e o tilintar da chuva na varanda invada o quarto. E ela deita, e fica de costas, e pede para que eu toque apenas seus seios, mas sem maldade, sem conspurcação, só o toque que ela precisa, só o afago que a tire de uma solitude irreversível; que a preencha com o vazio de toque frio de uma mão desconhecida; que te esquente com as curvas do meu corpo acompanhando as suas; que eu seja seu amigo, seu cobertor, seu protetor, nessa noite terrível de verão - então eu toco, preencho minhas mãos com a maciez aveludada de seios volumosos; apenas os envolvo na palma das minhas mãos, com os mamilos rijos despertando coceirinhas na Linha da Vida; seios quiromânticos, e nossos quadris pressionados, meu corpo reagindo de forma indiferente à minha promessa, se erigindo sem permissão rente às nádegas frias e redondas, tingidas pelo preto de uma comportada calcinha de algodão, enquanto a chuva cai e as pessoas riem e ela diz "obrigada por ter vindo" e adormece, nos meus braços, uma pessoa que não sei nada e que concomitantemente sei quase tudo, quase tudo. Até que também adormeço, enroscado numa indigente de cabelos curtos e negros e clavículas sobressalentes e tatuadas; adormeço sem maldade, não, não, sem maldade, sentindo-me puro e curado; tão aliviado e bêbado como no momento procedente a uma hemorragia nasal das fortes. Sentindo o gosto bom da vida. Da vida sabor sangue.

09/12/2011 - 11h00m

Escalera - Got to Change

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 09/12/2011
Reeditado em 20/03/2012
Código do texto: T3379868
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