A Bela Dama
Acordei de ressaca, como de costume. A boca estava amarga e sem saliva O meu peito doía, e minhas pernas estavam dormentes. Levantei da cama, a muito custo, estranhando a pouca luz que entrava no quarto. Há essa hora o sol deveria está esquentando toda minha cama, porém, não estava. Coloquei a cabeça para fora da janela e olhei para o céu. A luminosidade do dia estava bem diferente do normal. O dia estava claro, sem nuvens, mas não se via qualquer vestígio do astro rei. Era uma claridade morna, enfadonha, sem brilho. Fui até o banheiro e lavei o rosto. Tentei olhar-me no espelho. O espelho estava bastante embaçado, ou coisa que o valha, e por mais que eu esfregasse não conseguia ver meu reflexo. Fiquei muito tempo tentando ver meu rosto, não obtive êxito. Desencanei, e me dirigi à cozinha. Abri a geladeira e procurei inutilmente uma garrafa d’água. Não tinha água nenhuma, alias, não tinha nada, só vento. Estava com muita sede e não me importei de beber água da torneira da pia. Bebi muita água, e ainda assim, fiquei com sede. Ressaca terrível. Percebi que meu estômago roncava. Consultei meu relógio de pulso e ele estava também embaçado. “Caralho, que merda!” exclamei em voz alta. Voltei para o quarto sentindo muita dificuldade para andar. Minhas pernas pareciam ter se transformado em duas toras de madeira, de uma tonelada cada. È a porra do meu problema de circulação. O sangue parece estar empedrado dentro de minhas veias, consequência dos muitos cigarros, e da falta de exercícios. A dor no peito não era familiar, nunca senti dor igual, e ela estava me castigando. Troquei de roupa e desci. O andar do meio é ocupado pela minha mãe e meu irmão. A casa que moro tem dois níveis, contando com o térreo são três. O térreo é do meu pai. Formamos uma família bem estranha e nada unida. Procurei por eles e não os encontrei. Fui à varanda, e olhei para baixo, vi minha mãe e meu irmão conversando, na calçada em frente à casa, com meu velho pai. “Alguma coisa muito séria deve ter acontecido para juntar esses três”, pensei. Gritei lá de cima para eles, curiosamente, eles não escutaram, ou, fingiram não escutar. Eles tinham muitos motivos para me ignorar, andei pisando na bola, e eles estavam enfurecidos, cada um com seu motivo específico. Nossa convivência não andava muito amistosa ultimamente. Apenas nos suportávamos. Resolvi descer e perguntar o que estava se passando. Quando cheguei lá embaixo, eles tinham acabado de sair no carro de meu pai. “Hei, hei” gritei algumas vezes, foi em vão, o carro tinha partido. Olhei para um lado e para o outro e avistei um táxi vindo em minha direção. Acenei. Ele parou. Eu entrei. O carro de meu pai estava parado há alguns metros à frente, em um semáforo. Falei, “siga aquele carro cinza”, “pois não”, respondeu o motorista. Reparei, logo em seguida, que era uma motorista. Uma linda motorista, diga-se de passagem. Ela tinha longos cabelos negros, de finos fios, olhos escuros e vestia um comprido vestido preto de tecido suave e fosco. Estava muito alinhada para dirigir um táxi. Falei com ela olhando pelo retrovisor.
_Vai a uma festa depois do trabalho?
_Não. Eu não tenho tempo para festas. Trabalho sem descanso algum.
_É que você está muito arrumada.
_Essa é minha roupa de trabalho. E me olhou, pelo retrovisor, com seus profundos olhos negros e frios, ou melhor, congelados. Cheguei a me arrepiar com aquela olhada.
_Ah tá. Respondi e encerrei a prosa.
O ar-condicionado do carro estava no máximo, bem frio mesmo, contudo, agradável. Minhas pernas deram uma trégua na dor, meu peito parou de arder e relaxei. O mundo fora do carro parecia que estava em câmera lenta e, incrivelmente, o veículo parecia flutuar sobre aquele infernal trânsito. A viagem estava tão confortável, eu estava tão apaziguado, que por um momento esqueci de observar o carro de meu pai. Acho que cochilei. É, eu cochilei, e fui despertado por uma cutucada, do dedo indicador, da bonita taxista. Abri os olhos assustados, então ela disse:
_Chegamos
_Onde? Perguntei
_Desça e veja você mesmo. E não demore, tenho muito pra fazer ainda.
_Você não precisa esperar, eu vou voltar com meu pai. Passei a mão pelo bolso da calça à procura da carteira para pagar a corrida. Não a achei, tão pouco algum dinheiro. Levantei os olhos e a mulher me olhava serenamente. Fiz cara de bobo e disse:
_Espere aqui, vou pegar dinheiro com meu pai e volto já para lhe pagar.
_Não se preocupe com isso. Tenho a certeza que você vai voltar comigo.
Desci do carro. O lugar parecia com um parque. Era muito arborizado e ventilado. Tive convicção de que nunca estive naquele lugar. Andando um pouco mais descobri que se tratava de um cemitério. Realmente nunca estive ali. Nunca fui a enterros. Nem de pessoas próximas. No máximo, comparecia aos velórios e jamais, sob hipótese alguma, olhava a pessoa no caixão. Tenho muito medo desses assuntos. Fiquei bastante apreensivo, e não fazia nenhuma idéia de quem pudesse ter morrido. No entanto, só poderia ser alguém da família da gente. Lembrei, então, do tio Zito. Ele morava num asilo há muitos anos e tinha Alzheimer. È isso, foi o tio Zito, coitado. Continuei caminhando e avistei meu pai, minha mãe e meu irmão. Eles estavam parados, um do lado do outro, ouvindo o sermão de um pastor. Aproximei-me respeitosamente e parei ao lado do meu pai. Ele não se virou pra me olhar. Deveria está bravo comigo ainda. Ele apresentava uma fisionomia abatida e triste, minha mãe também, meu irmão, como sempre, parecia indiferente, inabalavelmente indiferente. Não tinha mais ninguém, além de nós quatro. Parece que seu Zito não cultivou muitas amizades durante sua vida. Nenhum filho, amigo, ou mulher compareceu para chorar por ele. Encerrado o culto, o pastor deu um pequeno aceno com a cabeça e se retirou rapidamente. Meus pais e meu irmão se retiraram logo em seguida e passaram por mim como se eu fosse um desconhecido. Sequer me olharam. Fui atrás deles e falei:
_Pai, espera, eu vou voltar com o senhor.
Ele deu mais dois passos e parou, fez menção de voltar, ficou parado por alguns segundos e seguiu em frente sem se virar. “Ele ainda está muito puto comigo”, pensei.
A curiosidade me fez chegar mais perto do jazigo da família. Comecei a ler a mensagem da lápide. “Nasci, vivi, vivi e vivi, enfim, morri” Aquilo me espantou, já que aquela frase era minha. Era o meu epitáfio. Desci a vista por toda a placa de bronze e nesta hora uma sensação de vazio e desespero se apossou de mim quando li o final da mensagem. Estava escrito em grandes letras douradas:
“Pedro Raul Alcântara Filho 11/11/1982 a 05/02/2011”
“Puta que pariu! Puta que pariu, eu estou morto!”, “Não pode ser! Não pode ser!”. Eu gritava com alvoroço, quando ouvi uma voz feminina dizer:
_Pode sim. Levantei meus olhos e reconheci a bela dama vestida de negro.
Ela fez um sinal para que eu a seguisse. Segui resignado. Chegamos ao seu táxi. Ela abriu a porta, eu entrei e sentei. Ao meu lado repousava a famosa gadanha da mulher de negro. Ela se juntou a mim e partimos. Fui levado para meu devido lugar.