Criança

Lembro-me de uma criança que se odiava e não sabia. Seu comportamento autodestrutivo quando contrariado denotava seu descontentamento com os outros? Não, consigo mesmo - sendo fustigado pelas doces lembranças intrauterinas, interrompidas por uma luz anunciando uma vida de escuridão. Uma vontade reprimida de arrancar os olhos de seus pais pelo castigo de tê-lo posto no mundo sufocando-o dia após dia, ano após ano. Tornar-se-ia um psicopata? Desses que perpetram chacinas em colégios ou cinemas? Não, descobriu a literatura e, nela, descobriu que havia um mundo aprazível criado por pessoas desprezíveis como ele próprio se tornaria - como seus pais malditos o eram. Ficou mais calmo. Descobriu por intermédio de livros com pilhas de dejetos de baratas e ratos uma verdadeira terapia. Já não tinha mais os constantes acessos coléricos; já quase não se recordava mais das blasfêmias e dos urros ininteligíveis que caracterizavam sua represada vontade de estrangular alguém. Cresceu ponderado, recatado, dono de uma misantropia invejável e admirável. Odiava as pessoas com fervor, mas era educado com elas. Procurava não sorrir - retribuía gracejos com os olhos fitos no chão. Tornou-se bom. Imbuído de seu ódio silencioso, ficou cortês como uma raposa de fábula. É conhecido por ser zen. É tido como zen por gente que empurraria de um abismo sem pestanejar. Por sua precisão lacônica nas palavras, é tido como retardado mental por gente que não consegue concluir um raciocínio sem ter atropelado toda e qualquer concordância verbal. Como uma aranha que tece seus fios esperando um banquete, ele espera o momento de sua vingança contra todos os culpados por suas dores e traumas - incluindo nisto ele próprio; saboreia com regozijo cada possibilidade plausível de sucesso; cada pequeno passo correto dado em direção ao derramamento expiatório do sangue de seus inimigos. Lembro-me de uma criança que cresceu, que tornou-se o homem feito que afivela o cinto diante de um poste, dá um piparote num cigarro apagado que pendia no canto da boca e caminha em direção à casa dos pais sentindo o cano do ferro frio na virilha, com disposição férrea de fazê-los sofrer todas as dores do castigo de tê-lo cagado nesse mundinho sem vergonha cheio de injustiças e de ar pra quem não merece respirar. Inclusive ele próprio, que suspira e abre o portão atento ao rangido que por tantos e tantos anos desprezou.

17/11/2011 - 22h22m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 17/11/2011
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