SAGRADA ÁGUA, PROFANA TRANSPARÊNCIA
Numa vila, atrás do por do sol, havia uma aldeia. Nela, morava um povo de hábitos tranqüilos e previsíveis. A vida prosaica escondia a rugosidade dos que ali viviam. Nos fins de tarde, em calmaria, a enseada fazia redondilhas nos fundos quintais das casas simples dali.
Se olhasse atentamente veria em seus arredores um fiapo de água que, pacientemente, corria para alegria de todos. Era um riacho de águas acanhadas, mas, persistentes.
Neste filete dágua, ao arrebol, uma cena: de um lado uma mulher de longos cabelos acena para um homem do outro lado. À margem... Homem profano, de chapéu na mão, retribui aceno ao sabor do vento norte, que sopra mansinho.
A mulher, cheirando a lavanda, curva-se ante a trouxa de roupa a espera de lavar. O homem cheirando a esterco agacha-se, e com as mãos em conchas, partilha água com seu cavalo.
Nas águas, imagens refletidas passam despercebidas à vista dispersa do homem e da mulher.
Na margem feminina do riacho um bordel deságua da face sagrada da mulher. Enquanto na margem masculina, um nicho santo desenha o rosto suado do homem.
Do alto, uma ave sobrevoa a cena e fotografa a mulher sagrada refletindo no espelho d’água o profano dela. E o homem profano dizendo sem o saber seu sagrado-ser.
No chão rasteiro da terra, sai o homem em seu cavalo a galopar em busca de outro poço e fica a mulher, a esfregar a alma encardida para livrar-se do fosso.