Um 121 Todo Meu

O saco já estava pra lá de cheio.

NEUROSE: 1. TEM CONFLITO INTERNO.

Havia, aos poucos, me tornado um sociopata de primeira. Durkheim me entenderia.

A gota - a última gota - tinha acabado de pingar quando por fim mensurei a inutilidade da minha existência e decidi mergulhar do décimo primeiro andar direto para o asfalto.

NEUROSE: 2. AGRESSIVIDADE VOLTADA A SI MESMO.

Claro que não era a primeira vez que eu decidia isso e, nesta, porém, senti o gostinho da primeira vez - a primeira que seria a última.

Dá pra entender?

Eu estava sentado no banco de madeira do estacionamento do prédio de escritórios onde eu trabalhava quando um dos policiais - um raquítico com ares de arrogância que eu não ia com a cara - que ficava na guarita em frente ao prédio passou falando no celular, indo na direção do banheiro. Então, tive uma idéia das mais perversas. Oras, se eu estava mesmo determinado ao suicídio, o que custaria em matéria de inferno levar dois ou três filhos da puta comigo?

NEUROSE: 3. GRATIFICA-SE POR MEIO DE FANTASIAS.

Portanto, após poucos segundos de ponderações, com o plano instantâneo me cegando (PERSONALIDADE DELINQÜENTE: 6. SUPEREGO INADEQUADO) feito uma luz no fim do túnel, peguei o extintor que ficava ao lado da entrada do banheiro com uma mão - na outra carregava o banquinho - e entrei no recinto na ponta dos pés, com uma excitação inenarrável tomando conta de todo o meu ser.

NEUROSE: 5. DESENVOLVE RELAÇÕES EMOCIONAIS POSITIVAS.

Coloquei o banco ao lado da porta do reservado onde o policial aliviava as tripas com todo o cuidado do mundo, subi nele e esperei, com o extintor em mãos, tremendo, com meu coração ribombando acima de mil decibéis - pareceu-me.

PERSONALIDADE DELINQÜENTE: 10. PERTURBAÇÕES PSICOSSOMÁTICAS MAIS FREQÜENTES

O infeliz, não sei por que cargas d'água, saiu de costas e se inclinou diretamente em direção à saída, mas antes que pudesse ensaiar um simples passo já estava caído no chão, desacordado.

Desci do banco e fui até ele, que caiu de bruços. Virei o corpo do cidadão.

Não sangrava nem nada. Não saberia precisar se estava morto. Acho que não.

Mas a merda já estava feita.

Um 121 todo meu.

NEUROSE: 4. ADMITE SEUS IMPULSOS E OS RECONHECE COMO SEUS.

Ergui o extintor o máximo que pude e o desci com força, como se estivesse batendo uma estaca; sua base afundou um pouco pra dentro a face do defunto; o barulho foi seco; diria até que parecido com o raspar de uma pá no asfalto - ah, os bons tempos de servente de pedreiro!

Pelé, o gato preto que morava no banheiro - num canto havia seus potes de ração e água, além de uma caixa com um tapete dentro - veio ter conosco e ficou observando o desenrolar da história com sua típica impassividade e descomunal falta de interesse.

Bom, eu tinha um corpo pra me livrar, e não estava no lugar mais vazio do mundo - muito pelo contrário. Com certo sacrifício, arrastei o infeliz pra dentro do reservado e o posicionei na privada. Antes disso tomei posse de seu revólver. Eu estava fodido, e sabe o que pensava? Que quem está no inferno tem mais é que abraçar o capeta.

PERSONALIDADE DELINQÜENTE: ALIVIA TENSÕES INTERNAS POR AÇÕES CRIMINOSAS.

Os pedaços que ficaram incrustados na base do extintor seriam um problema, bem como o rastro de sangue até o morto. Claro, seriam um problema pra quem pretendesse estar vivo para enfrentá-lo. Não era o meu caso. E qualquer um que se opusesse à isto, levaria bala.

PERSONALIDADE DELINQÜENTE: 5. DESENVOLVE DEFESAS EMOCIONAIS.

Dizem que o assassínio vicia, excita, liberta; eu não sentia emoção alguma. Já fazia tempo que eu não sentia emoção nenhuma. O que eu sentia era a mesma coisa que sentira meia hora antes, quando um garçom atrapalhado derrubara uma guarnição de feijoada em cima de mim, sujando minhas calças claras e as mangas de uma blusa preta que havia tirado do varal pela manhã (filho da puta, o senhor, senhor garçom).

Só que desta vez eu era o filho da puta da história.

NEUROSE: 4. SUPEREGO AJUSTADO.

Agora estava com um revólver que não sabia usar; a única coisa que eu sabia era que havia alguma trava de segurança. Talvez não fosse tão difícil. Enfiei o bicho nas calças caminhei em direção à saída do local do crime, com o peito insuflado de orgulho, tão impávido quanto um militar americano.

PERSONALIDADE DELINQÜENTE: 1. APARENTEMENTE SEM CONFLITO INTERNO.

Não sabia se a arma estava carregada. Devia estar. Apertei o botão do elevador e fiquei esperando. Algumas pessoas dali mereciam um afago metálico no cérebro.

PERSONALIDADE DELINQÜENTE: 2. AGRESSIVIDADE VOLTADA À SOCIEDADE.

A porta se abriu e lá dentro estava uma coisinha linda e loira, com o mais empinado dos narizes, com a mais redonda das bundas e que se achava a coisa mais importante do mundo depois do oxigênio. Sorri à ela com maldade.

PERSONALIDADE DELINQÜENTE: 9. CARÁTER DEFORMADO.

Dei passagem - uma passagem bem estreita - à ela e soprei um "putinha" ao pé do ouvido; ela virou puta da vida e eu só levantei a camisa, mostrando a belezinha que estava com a ponta tocando meu pau inerme. Vi sua consternação se transformando em pânico. Disse à ela que vazasse, coisa que ela fez com maestria.

NEUROSE: 9. CARÁTER NORMAL.

Apertei o número 7 do mostrador e esperei. Esperei, me certificando de que não havia resquícios de cascas de feijão nos dentes. Não havia. Sorri um sorrisinho sincero, pueril, e comecei, finalmente, a me sentir bem.

31/10/2011 - 22h22m

Placebo - Special Needs

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 31/10/2011
Código do texto: T3309831
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