Campo Minado

"Essa porra é um campo minado. Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui?" - Racionais Mc's em "Fórmula Mágica da Paz".

Eu estava finalizando a última das duas caixas quando ouvi a porta se abrir. Entre uma fungada de nariz ou outra, preenchi as duas com basicamente duas dúzias de livros, meia dúzia de camisas, outra meia dúzia de camisetas e três calças - além de edredom, travesseiro, tênis e etc. Depois de duas décadas tudo o que eu tinha para levar embora era isso. Além da alergia memorável. E do desgosto incorrigível.

Estava debruçado sobre a caixa quando a sombra se fez presente no meu quarto.

- Ol... Onde você vai?

- Embora.

- Por quê?

Não respondi.

- Vai embora pra onde?

- Daqui.

- Pra onde?

- Já respondi. - Nisto, espirrei cinco vezes - Amanhã virá um cara pegar minha cama e o computador.

- Tá bom, então.

Depois de duas décadas, um dar de ombros é toda a manifestação de amor e surpresa que recebo. Não é de se admirar a hereditariedade da minha indiferença.

Ter a cama só no dia seguinte significaria arregaçar com as caixas e estendê-las no chão do quarto e sala que havia alugado perto da USP. Bem longe de todo o passado que eu pretendia deixar pra trás. Longe de tudo. Difícil início.

- Vai pra casa da sua namorada?

- Não.

- DÁ PRA ME FALAR PRA ONDE VOCÊ VAI?

- DÁ PRA CALAR A BOCA? NÃO VÊ QUE ESTÁ ATRAPALHANDO MEUS PENSAMENTOS?

Estendeu a mão, como se fosse me repreender no tapa.

- Encosta em mim pra ver o que eu faço!

Fui lacônico, frio, empregando o tom certo, aplicando o olhar certo.

- Isso não deveria ser surpresa - Falei - afinal, passou da hora de eu sair da casa da mamãe, não é?

- Mas assim, de repente? O que houve?

Nessa hora a chaga doeu, queimou.

- Sabe - respondi - é admirável o seu cinismo. Eu cansei de avisar - continuei, falando de forma mansa, enquanto por dentro explodia com uma raiva fria, com uma mágoa lacerante - o que estava me incomodando. E o que você fez? Me deu as costas. E o que você fez? Diariamente negligenciou e diminuiu a profundidade do que eu sentia. Cheguei ao fundo do poço quebrando a mão por algo que, se você, e somente você, tivesse tomado as rédeas, não teria acontecido. - Aqui dei uma pausa pra respirar; a coisa toda me sufocava. Tendo me recomposto, finalizei. - É aquela história dos "incomodados que se mudem, né!?".

Um minuto se passou em silêncio. No minuto seguinte uma celeuma invadiu a casa; vozes que eu não saberia dizer de quem era - e não saberia mesmo, posto que não conhecia a quem elas pertenciam.

- Vê? Essa merda se transformou num chiqueiro comunitário, daqueles bem barulhentos e com gente que cospe no chão que lhes acolhe. Eu cansei, porra, cansei dessa merda; cansei de passar o dia dando duro, lidando com gente que quer minha cabeça rolando, enfrentando essa porra de cidade fria; cansei de conviver com um milhão de desconhecidos por dia que diretamente não me fazem mal e ter que, em casa, me sentir a pior pessoa do mundo. E por quê? Porque o único bom senso que tem aqui é advindo dos testículos do filho da puta que me colocou nesse seu ventre venenoso.

Claro, houve um show de socos no meu peito, tentativas negligenciadas de abraços, lágrimas soluçantes e pedidos de desculpas. Quando o acesso emocional acabou - tendo eu passado ele olhando pro teto -, simplesmente a afastei pelos ombros, olhando nos olhos, não sentindo absolutamente nada além de ojeriza, e falei:

- Fica bem aí, tá?

Coloquei a mochila nas costas, empilhei e ergui as duas caixas, e tomei o caminho da porta que, no entanto, estava obstruída por uma figura aparentemente desolada.

Talvez pensando nas falhas que cometera. Ou não: talvez pensando no alívio que teria dali em diante, sem o filho inútil e misantropo; sem o filho que nunca suportou os parentes agregados, frutos de seu casamento falido com um esterco ambulante; sem o filho monossilábico; sem o filho que preferia livros a churrascos com amigas vagabundas; sem o filho que esperneava quando era arrastado à merda de igreja; sem o filho que enchia a gaveta com embalagens de camisinhas e que peremptoriamente sempre se recusou a lavar louça; sim, talvez fosse essa a possibilidade predominante em seu silêncio absorto.

- Dá licença - falei.

Tendo atravessado a porta do quarto sem maiores problemas, me deparei com um adolescente - que jamais havia visto, inclusive - na sala, assistindo ao jogo do Corinthians, com os pés pretos num sofá que há apenas dois meses eu havia comprado.

- Tira o pé do sofá, seu filho da puta - falei.

Caminhando até o ponto de ônibus, concluí que a linha tênue que me separava das pessoas que esfaqueiam ou atiram na família toda e depois se matam estava realmente fina.

Já no ponto de ônibus, diante da entrada principal do Cemitério da Saudade, fiquei lá, olhando os mausoléus, lápides; senhoras entrando com buquês de flores, funcionários sujos de terra saindo pra fumar; ouvindo pássaros cantando e o farfalhar das árvores, sentindo uma inveja indizível dos que ali tiveram termo definitivo em suas existências.

Era domingo, e demorei duas horas e meia pra chegar no meu muquifo, do outro lado da cidade. Estivera lá no dia anterior, passando pano no chão e tirando algumas teias de aranhas gordas do teto do banheiro e, mesmo assim, a primeira impressão ao entrar no negócio não era lá das melhores. Minha respiração parecia fazer eco, lá. A umidade das paredes com certeza espicaçariam minha rinite. Suspirei profundamente, lembro-me bem.

Tendo esvaziado o conteúdo das caixas sobre um lençol, rasguei-as, estiquei-as no chão e joguei um outro lençol por cima. Peguei escova e pasta de dentes e fui até a pia da cozinha - o banheiro se resumia à privada e ao cano chuveiro (que eu teria de comprar o mais rápido possível) -, porém, a água saiu escura, com ferrugem. Sorri, e fui até o pequeno tanque que eu teria de dividir com os moradores das duas outras casas alugadas. Lá, havia uma cueca suja de bosta tapando o buraco - só me dei conta depois que abri a torneira e água fez com que o cheiro maravilhoso subisse.

O que de início me pareceu um bom negócio - dado o meu desespero - passou a me cheirar furadas e mais furadas - como sempre. O aluguel compreendia 70% do meu salário. Eu teria de vender meu Vale Refeição para me manter com comida, água, luz e...

... Pensar era desesperador.

Deitei, sentindo as saliências das dobras das caixas nas costas, cruzando os braços na nuca, com pontadas no baixo ventre lembrando que não tinha papel higiênico e nem mercado aberto, curtindo o funk alto do meu vizinho de quintal, colocando o relógio pra despertar às sete da manhã, sem ferro nem tábua pra passar minhas camisas, sem chuveiro, etc., com o suicídio sendo sempre a maior dádiva da vida, etc., apertando os olhos, respirando, ouvindo Rainer Maria (I waited up all night and my thoughts were all of desolation) até que por fim, finalmente, devo ter adormecido. Não tranquilamente, nem sonhando sonhos lindos: apenas prestando o serviço de descanso ao corpo; apenas o intervalo entre uma sucessão infindável de desgraças e outra.

Etc.

Domingo, 30 de Outubro de 2011.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 30/10/2011
Reeditado em 30/10/2011
Código do texto: T3307208
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