Flores para Letícia
Passei a vida inteira com o desejo de receber flores, agora com setenta anos minha casa está cheia delas e de um admirador anônimo. Não sei se as acolho com a alegria de quem recebe rosas ou se as vejo como um objeto insignificante. Se tivesse 40, 30, 20 anos estaria correndo de alegria. Agora nem correr posso mais. Meus passos são trôpegos e não sei o que farei das flores. Se as olho por mais de um minuto, ameaça-me a juventude de riscos. Que sentido agora pode haver num admirador?
Tive namorados que me presentearam. Porém nunca com flores. Tive um marido que um dia me trouxe uma única rosa. Agora a casa está cheia delas e me revela no espelho. Ando pelos aposentos todos. Busco a Letícia que poderá se alegrar com estas flores. Quando, ah! Que susto! Não sabia de meu espelho tão grande! Aí me vem uma vontade imensa de me ver, parte por parte. Olhar-me com olhos de flores. Tiro peça por peça. Como se tivesse fazendo um número para uma platéia. Primeiro fico descalça. Tiro a blusa. Encontro rugas no pescoço. A platéia some. Fico só. Já não é um número. Aqui está uma mulher só, percorrendo anos vividos. Tiro o sutiã. Os seios estão murchos e caídos. Dispo a saia, reviro-me no espelho. Tenho a sensação que meu bumbum está ainda atraente, cheio e pouco caído. A hora de ficar sem a calcinha é o momento de me entregar para meu corpo. Ele está ali inteiro e cheio de marcas. Uma dor atravessa-me. Queria ser a mulher daquelas flores. Mas não, com certeza erraram de endereço. Eu sou uma pessoa que caminha para a morte. E ela é cruel, não diz: espera. Que saudades daquela pele lisa, daqueles olhos sem rugas, daquela energia de outrora. Confusa, sem querer me vestir me pus, novamente, a andar pela casa. Eu quero me apresentar a cada objeto em sua totalidade. Aqueles móveis sem fala sabem de mim, convivem comigo em minha energia. O que deveria ser? Depois de caminhar bem devagar me agarrando a todos os móveis, descubro a culpa das flores. Se não fossem elas poderia estar na casa de alguma amiga, ou em um cinema. Qualquer lugar, qualquer coisa. Não estaria impedindo-me de viver ocupações rotineiras. No entanto, eu estava ali me vendo através daquelas coisas coloridas. Esbarrei num vaso de rosas vermelhas. Machuquei o dedo. O sangue escorria. Aí eu não pude mais. Disparei num choro compulsivo. O tempo não volta atrás. E era aquele o meu querer. Cadê a menina que jogava amarelinha, brincava de roda? Se foi, eu me fui mais que metade, eu me fui, quase toda. As lágrimas iam diminuindo a dor. De repente deparei com as flores e as amei, como se meu choro houvesse limpado minhas reminiscências amargas. Então, peguei um dos bilhetes dos arranjos. Li: “Letícia, você é uma pessoa que faz toda a diferença em mim.”. Conferi o endereço, realmente era o meu. Não tinha mais como duvidar. As flores eram para minha alegria. Neste instante, eu corri. Ainda podia correr. Olhei-me outra vez, nua como estava, naquele espelho imenso. Vi meus olhos, mesmo estando circulados por rugas, tinham um brilho transparente e verdadeiro. Minha boca tinha um canto sensual, o jeito de se mover. Meu sorriso era franco. Meu corpo cheio de marcas era reto e elegante. A morte ia de mansinho chamar-me mais tarde. Que fosse um dia de vida. Eu vivia e as flores eram minhas. O espelho me fazia pulsar. A vida inteiramente jorrava em mim. Meu coração palpitava.
Decidi ir ao cinema. Tomei um banho mais demorado que os outros. Pois, eu acariciava cada parte de meu corpo como quem se reencontra e se deixa levar pelo presente que é.
No outro dia, recebi flores novamente. Crisântemos amarelos e muito floridos. A diferença é que vinha um convite para irmos a uma confeitaria e era assinado, pedindo resposta com o telefone ao lado. Que surpresa! As flores vinham de José Maria. O dono da loja que fica na esquina de minha casa. Ele é um homem mais ou menos de minha idade e de uma grande elegância e educação.
Desnecessário narrar os detalhes de meu encontro com o homem que me enviava flores. O mais importante ele havia me feito realizar: descobrir o quanto a vida é total em cada instante. Um instante ciente de vida, um instante despreocupadamente ao léu, um instante que se respira a gratuidade parece conter a beleza de uma vida inteira.